sexta-feira, 25 de junho de 2010

Para o pós-túmulo

Peço aos amigos, quando já não houver minha presença nesta casca, que não chorem mais do que o necessário. Desabafem, evitem que haja uma complicação por represamento de sentimentos fortes. Só isso.
Não guardem lembranças materiais, a não ser que realmente precisem delas. Precisando, são suas, mas certamente os poucos e frívolos bens que me tocam não lhes serão de grande utilidade.
Guardem de mim o melhor que dei a vocês. Não foram as palavras que a audição lhes fez esquecer, tampouco os abraços, que estes infelizmente não pude dar muitos. Guardem as lições de que servi, pois estas sim lhes serão de valia.

Peço ainda aos amigos que não se preocupem com o destino de um corpo vazio que já não serei eu, o destino pouco importa a quem não utiliza. Mas se decidirem prestar homenagens, uma última despedida, o que for, não sejam lúgubres.

Se forem sepultar, não ergam um mausoléu de cimento e mármore, oneroso e útil somente á apreciação de visitantes. Ergam uma praça. Não quero uma lápide fria e tétrica, mas alguns bancos que servirão para aproximar as pessoas e dar descanso aos exauridos, ou mesmo um momento de contemplação a olhos já cansados pela labuta insana que nos consome.

Plantem um jardim, plantem árvores frutíferas, arbustos e ervas aromáticas. Não se lembrem de mim com tristeza pela ausência. Sei que esta foi muitas vezes uma vilã que involuntariamente ajudei, peço que me desculpem, não pude estar ao seu lado para ceder um lenço e um ombro. Nossos planos nem sempre coincidem com os da vida, no meu caso os planos feitos foram todos ao lixo.

Não quero prantos senão entre risos, de saudades pelas bobagens que disse em um momento de insanidade, para alegrar alguém. Chorem quando a dor bater, mas deixem a ela e aos prantos no dia do baque. Luto não é bom, meus amigos. Necessário por alguns instantes, mas patológico se dura muito. As saudades virão, talvez alguém olhe a data na folhinha e estique a cabeça para fora da porta, para ver se já estou chegando, mas nesta condição não estarei, com o perdão do gerúndio. Saudades, porém, podem ser convertidas em algo bom e o tempo tem as ferramentas para tanto, deixem que ele as utilize.

Dessas bobagens, também me desculpem as que disse sem sentir. Vocês sabem, minha dicção sempre foi sofrível, minha capacidade de comunicação verbal tão pífia quanto minha beleza física. Nem sempre consegui me fazer compreender, com o tempo desisti e me ative à escrita, esta pelo menos não gagueja. As idéias embaralham com facilidade, vocês sabem, me conhecem um pouco.

Não escolham muito, qualquer lugar serve para um corpo inerte. Peço apenas que sobre ele venha uma muda de árvore, não uma decorativa, mas uma espécie grande e frondosa, sob a qual todos encontrem abrigo e sobre a qual as crianças de todas as idades encontrem entretenimento, refúgio, quem sabe até um local para meditação. Que seja grande como o abraço que gostaria de ter ofertado, para que ao menos assim o possa dar. Vocês terão filhos e gostaria que eles também pudessem usufruir.

Podendo, que haja brinquedos na praça, para que as crianças e os namorados levem de vocês qualquer tristeza remanescente, para que a renovação das gestantes lhes conforte, para que a janelinha de um sorriso pueril lhes troque a lágrima por um par de lábio esticados. Não se lembrem de mim com tristeza, com ressentimento nem com apego. Só se lembrem, pois às vezes alguém tem vontade torcer meu pescoço curto, puxar minhas orelhas até virarem asas, faz parte da vida.

Não poupem cores, nem tons, nem brilhos, nem luzes. Minha sobriedade já não estará presente, enfeitem à vontade e deixem que as pessoas admirem. Se forem se lembrar de mim, que não seja a do meu vestuário monótono, mas do quanto acolhi suas extravagâncias e respeitei seus gostos estranhos. Não compartilhei deles, estou longe de ter sido um amigo perfeito, ausente seria uma definição cabível. Desculpem. Pintem o quanto quiserem.

Peço, amigos, que as músicas não sejam tolhidas. Deixem o alento das cadências e das boas vozes atenuarem a egrégora de um sepultamento. Toquem de minhas músicas, mas não se furtem o direito de escolher as mais alegres. O mundo que terei carregado sobre os ombros já constitui pesar mais do que suficiente, morto já não o carregarei. Estarei então leve, sem nem mesmo a gravitação a limitar meus gestos.

Eu lhes pareci triste em vida, talvez o tenha sido, não faz mais diferença. Faz diferença compreender que sempre fui introspecto, concentrado em meu mundo particular que infelizmente não tive tempo de compartilhar, talvez um canto ou outro para um ou outro amigo, mas via de regra não consegui abrí-lo como não consegui chorar, rir ou gritar como vocês pediam que o fizesse. A alegria de meu riso mudo e curto, esmaecida aos olhos alheios, era colorida pelo interesse que vocês me dispensavam. Compreendam, as portas que não foram abertas, eu não sei como abrir. Talvez algumas não saiba que existem.

Rancores não fizeram parte do meu repertório, então não os trago para o além túmulo, fiquem sossegados. Talvez a frustração da qual não consegui me esquivar, mas não terá sido ela o algoz. Terei ido quando a carcaça que me veste já não puder mais me reter, quando for a hora de me ausentar e deixar a gravidade deste orbe denso e pouco afeito às delicadezas, que minhas mãos rudes aprenderam a manusear e trabalhar com o afã de quem terá amado as flores, para o quê lidou com a terra e a sujeira da vida. É do esterco seco que brotam as mais belas flores.

A vida não é boa, meus amigos, nem ruim, simplesmente é a vida. Bons ou ruins somos nós e de nós parte toda a alegria e toda a tristeza das quais nos regozijamos ou reclamamos. Então não deixem de incentivar o riso sincero e os protestos de bom grado que certamente os estranhos prestarão, vendo flores, frutos, arbustos e sentindo a temperatura amena da qual sempre terei gostado, raramente usufruido. Lembrem-se de que não será um cemitério, mas uma praça pública.

Não fui tão bom quanto gostaria, não terei (talvez) sido então o exemplo pleno de lisura para ninguém. Mas também mau não tenho sido. Terei ido com a consciêcia plena e quieta, ciente de que o meu alcance foi usado para o que deverei ter feito, que em momento algum me entreguei pela metade àquilo que me dispus a fazer, que terei sido chato quando necessário; gostaria de ser bonzinho o tempo todo, mas minha índole dura e a necessidade não o permitem.

Minhas rugas não enganam, mas também não me preocupam. Ainda há tempo, não sei quanto, certamente o bastante para evitar arrependimentos por não ter feito algo. Não se intimidem neste intervalo, meus ombros ainda estão quentes e meu abraço ainda é forte. A única doença que me ameaça sou eu mesmo, com a melancolia que, ironicamente, me ajuda a manter uma saúde mínima do que ainda visto. Ainda posso ouvir seus lamentos e compartilhar de suas alegrias, ainda posso dar e ouvir conselhos, afinal sou um homem adulto, já maduro e ciente do bem que alguns minutos falando pode fazer por vocês.

Me olhem nos olhos e soltem o que tiverem que soltar, não faz bem prender um veneno.



2 comentários:

Adriane Schroeder disse...

Lindíssimo... E a música é maravilhosa.

Nanael Soubaim disse...

Depressão também é inspiração.