sexta-feira, 31 de agosto de 2018

Dead Train in the rain XVI

   Estação dezesseis, a última da vida mansa. Peguem suas pedras e rolem morro acima pelo resto da vida, faz parte da viagem.


O único jornal da cidade dá destaque à festa cinematográfica. O editor afirma que já esteve em celebrações em cidades grandes (...) poucas vezes viu uma festa como aquela. Patrícia se sente o máximo. Renata, porém, sente medo. Se encontrou uma vez com Chico Xavier, ainda criança, ficou espantada com a força contida naquele corpo franzino(...) Não acredita estar pronta para isso, quase tremeu nas bases quando viu Naomi. Só quando termina de desabafar, vê que os pais estão sorrindo. Como ousam sorrir ante uma tragédia desta monta? Eduarda abraça e afaga a filha, a enche de beijos e de cafuné. Não dizem uma palavra, apenas paparicam o rebento durante toda a manhã, até que se sinta melhor. Ela melhora, mas ainda está assustada. Pedem-lhe, primeiramente, que ninguém mais saiba disso, o mercado de médiuns mercenários é muito forte. Combinado isso, avisam para não comer carne hoje, farão o culto no lar para tentar lançar uma luz no assunto. Por último chamam Patrícia e lhe pedem o mais absoluto sigilo, pelo menos até que a filha esteja devidamente preparada. Renato escreve uma carta para o Brasil, para conseguir apoio adequado para o assunto.

O culto acontece só com os três, não há mais espíritas na cidade. De sua casa, com um binóculo, Patrícia vê a casa da amiga às escuras, já usando o colar com a ginoclave. Não tem idéia do que se passa lá dentro. Sabe o que é o culto no lar, ela explicou para todos mais de uma vez, mas o mistério sobre o que está se passando especificamente naquele culto lhe tira o sono. Desaba na cama, rodeada de tantos presentes que ainda não conseguiu abrir todos os pacotes. Liga o seu preferido, o trem que seu pai lhe deu, com seus trilhos suspensos em vários níveis nas paredes. Enquanto observa o trem em movimento, adormece.

Nancy se pergunta o que tanto preocupa a filha. A cobre, que a noite está esfriando rápido, esperando que de manhã esteja mais calma. Hesita em desligar o trem, pensa por uns instantes e deixa ligado, ele está se mostrando uma canção de ninar muito eficiente. Não adianta conversar com Richard, ele não acredita em espiritismo. Vai à sala de estar e o que encontra? Justo ele estudando um exemplar do Livro dos Médiuns...

- Não se surpreenda, eu aprendi português. O facto de eu não acreditar, não me dá o direito de ver minha filha aflita, vou estudar isto até saber no que posso ajudar.

- “Livro dos médiuns”?

- Você acha que uma menina equilibrada como a Renata se abalaria por pouco? Deve acreditar que virou médium, vou ver no que posso ajudar. E dos absurdos que as religiões pregam, estes aqui estão muito longe de serem os piores.

Na manhã seguinte Nancy afala com Eduarda, na escola, antes da primeira aula...

- Como???

- Richard é um gênio. Ele capta as coisas no ar. Ele é atento a tudo ao seu redor, deve ter ligado causa e conseqüência.

- Vocês podem manter segredo disso, até conseguirmos colocar a cabecinha dela no lugar?

- Manteremos. Na verdade, mesmo sendo ateu, Ritchie está estudando o espiritismo com afinco, para poder ajudar.

Ela agradece, pela discrição e pela ajuda. E ele está levando à sério. Entre um procedimento e outro consulta o livro, aberto em uma moldura que fez com uma biela de International 1947 e alguns parafusos, devidamente soldados. Pensa consigo mesmo “Se eu fosse acreditar em algum deus, seria neste”. Continua revisando o velho Packard Roadster 1929, que só ele consegue manter funcionando. É de um amigo que, coisa estranha em uma época de consumismo desenfreado, pega os bens duráveis que os outros jogam fora (...) Já são mais de trezentos veículos (...) e itens domésticos. Gerald Fischer não tolera desperdícios, relaxamentos ou quaisquer outros excessos, o que levou os filhos a o abandonarem ainda cedo, quando a mãe faleceu. Só conta com os amigos de Sunshadow para ter vida social.

Borrifa um pouco de gasolina de alta octanagem no carburador, vai à ignição e dá partida. Funciona como um relógio. O coloca em um elevador, que usa a força do próprio carro, e o deixa na altura certa para entrar no caminhão. O elevador vai de reboque. Lá, ele vê duas novidades, um Hernney Kilowatt vermelho, quase novo e já descartado, e um Crosley woody 1950. Fischer explica que o Hernney é, na verdade, um Renault Dauphine importado sem mecânica e adaptado para rodar com baterias. Infelizmente o alcance é de apenas 60 milhas, e a velocidade é de 60 mph...

- Mas os primeiros eram ainda piores, não tinham nem potência para subir aquela rampa da minha garagem, não sem pegar embalo. Viajar com eles, nem pensar (...).

- Por que não negociaram com a Studebaker? Um carro maior e mais caro, com baterias e motor mais potentes, teria obtido algum êxito. O americano não quer saber de carro econômico, só que ele cruze o país em um tempo razoável.

- O dia em que o petróleo começar a acabar, vão sentir saudades dele.

- Duvido. Este francezinho vai ficar esquecido por muitos anos. No dia em que o petróleo escassear, vão arranjar algum bode expiatório e declarar guerra. A idéia é boa, mas com menos de 60hp, não tem mesmo chance alguma!

- Mas um dia eles terão que acordar!

- Não neste século, acredite. Vai usar ele?

- Dentro da fazenda ele não corre risco de ficar sem carga, será meu carrinho de golfe.

Terminam a conversa e ele desce o Packard. O amigo sempre fica impressionado com a engenhosidade daquele elevador. Se o carro não puder subir sozinho, há uma tomada de força no próprio Chevrolet 1940.

Na escola, Patrícia explica aos outros quatro que a amiga está com um problema muito íntimo...

- Tá grávida???

Todos olham para Rebeca, abismados. Não, não é gravidez. Ela diz que é um assunto de foro íntimo, que por acaso descobriu e que Renata precisa de discrição para colocar a cabeça no lugar. Espera, assim, contar com a compreensão e ajuda da banda, para ela se recuperar mais depressa. Agora vão para a aula de música, Nancy não tolera atrasos. Na sala, alguns alunos ainda comentam sobre a festa, parte deles com muita inveja. Tanta, que querem algo maior.

&

Josephine tem acesso em primeira mão ao material da filmagem. Ela está compenetrada, sóbria, atenta a cada cena. A desenvoltura dos seis endossa o que Bart disse, estão profissionalmente prontos para os palcos. Mas ela sabe que serem profissionais competentes, não os livrará das armadilhas que o show business planta pelo caminho. O olhar crítico, porém, não a priva de dar os típicos gritinhos de um fã em um concerto. Ao fim do vídeo, conversa com Bart sobre as anotações que fez durante a exibição. Apontou pontos fortes e fracos (...) Eles se empolgam com facilidade, é uma faca de dois gumes que precisam aprender a controlar.

Enquanto a diva de milhões, musa de gerações se delicia com o documentário em que a filmagem se transformou, os seis estão penando, vendo atrocidades nas páginas policiais e políticas, de jornais de New York e Los Angeles. Não imaginam que tipo de gente possa ter gosto para ler tamanho detalhismo sobre atrocidades criminais, e sujeiras políticas. Mas há (...) A morbidez com que o repórter minucia um crime passional os assusta, é como se ele estivesse falando de um evento social aprazível e divertido, cheio de amenidades, mas é de um crime que deixaria Atila o Huno chocado.

Eles se entreolham, começam a dar muito mais valor à vida que levam. Foi proposital, Richard quis que conhecessem primeiro a parte sórdida das metrópoles, para que não sejam pegos de surpresa (...) e tenham mais surpresas agradáveis do que tristes, uma vez que já vão conhecendo as trevas das cidades.

O noticiário do cotidiano é muito mais ameno, nem por isso isento de tosqueiras. Desde um cão que urinou nos pés do policial até gente que estacionou em frente a um hidrante, e reclamou de ter o carro danificado pelos bombeiros. Há a história de uma senhora que saiu com o saco de lixo nos braços, e só viu que não era seu filho quando chegou em casa (...) Um caso curioso é o de um repórter que estudou e treinou durante um mês, se fingiu de magnata suíço, fez a banca em uma festa de grã-finos e voltou à redação com doze convites para jantares e negócios. Sim, é muito fácil enganar as pessoas, tanto mais quanto mais certezas tiverem e mais preconceituosas elas forem. Voltam a se entreolhar, sorrindo maliciosamente, Patrícia ainda mais, pois pretende se aconselhar com Josephine a respeito.

Richard chega e manda deixarem as páginas sujas de lado, por hoje, para que consigam dormir à noite. Manda verem os quadrinhos, a seção de moda, a de classificados, até a de astrologia, mas que deixem a parte barra pesada para amanhã, quando voltarem do colégio. Talvez até tenham mais inspiração vendo Blondie safar Dagwood de suas trapalhadas.

Nancy chega com o lanche, porque estudar queima muita glicose e eles não se contentam em ler, precisam encenar, pular, dramatizar ou mesmo saracotear pela sala, procurando uma nota ou manchete da qual acabou de se lembrar.

Eles notam uma assustadora semelhança entre a realidade e os quadrinhos, só que sem graça. Não vêem significativa diferença entre um personagem trapalhão, que briga por causa de uma salsicha de hot dog, e um cidadão alienado (...) Aqui Nancy e Richard dão sua contribuição, para que os garotos não pensem que a América é o país mais podre e degenerado do mundo, pelo contrário (...) Contam as histórias que Serguei trouxe da União Soviética, idolatrada por muitos intelectuais que, lá, não poderiam apontar o dedo para os erros das autoridades como fazem aqui, não sem o risco de fuzilamento sumário. O completo cerceamento das liberdades individuais é só uma das mazelas desses países...

- Você não pode fazer praticamente nada sem o consentimento do Estado. É uma ditadura, como Cuba acaba de se tornar. O povo só existe para sustentar as forças armadas, e estas para proteger os “camaradas ricos do Partido Comunista” – explica Nancy.

- Take a moment! “Rich partners of Communist Party”??? Não deveria ser todo mundo proletário?

- É uma ditadura, minha filha. Esses artistas e atletas excepcionais que de vez em quando vêm, têm seus cachês totalmente confiscados pelos comunistas. Todos são igualmente lacaios do Estado. Nem viajar para fora eles podem, sem permissão do governo; e quase ninguém tem. Eles só ouvem, vêem e lêem o que o governo deixa. Tanto que nenhum cidadão pode simplesmente cruzar a fronteira com outro país, sem o risco de ser alvejado.

- O capitalismo, já lhes disse, nasceu falido por não conter limites aos seus instintos suicidas. Mas o comunismo, como “sistema político”, leva esse suicídio a cabo. Sua mãe tinha arranca-rabos épicos com o padrasto, mas quando eles conseguiam sentar para conversar... era uma coisa linda de se ver! (...) Essas críticas que estamos fazendo aqui, ao nosso sistema, em uma ditadura poderia dar fuzilamento. Não se encantem com o discurso de justiça social, igualitarismo, et cétera. É tão utópico que eles nunca conseguiram de verdade colocar em prática. Qualquer um que estude psicologia seriamente sabe que não dá para fazer isso, simplesmente porque as necessidades de cada um são só suas. Dá para ser justo e amparar quem não conseguiu se erguer; algo em que infelizmente estamos falhando, mais do que isso é discurso para enganar a fé de gente revoltada e bem intencionada.

Mais do que um cara admirável, Richard é quase um guru para os seis. Ele lhes mostra o tempo todo que o mundo não lhes pertence, que são apenas sócios com a mesma participação acionária que todos os outros têm. Assim, com debates e reflexões, se passa a semana de preparação. Fazem questão de honrar a placa que ostentam no portão, com a frase dita por David: Não posso impedir as pessoas de serem idiotas, mas posso fazer com que hesitem em colocar sua idiotice em prática.

No sábado os seis têm uma folga, podem descansar, vadiar, enfiar cordão em arroto, o que quiserem. No domingo, pela manhã, pegam a estrada para New York. Mesmo de folga, todo mundo acaba refletindo sobre a semana philosophica. Inclusive Richard. Como bom professor, ele aprende com seus alunos, talvez mais do que eles consigo. No momento estão todos na praça do trem morto, fazendo um piquenique regado a suco de frutas e muitos pães de queijo, feitos pela pianista do Dead Train.

quinta-feira, 30 de agosto de 2018

Dead Train in the rain XV

    Estação quinze; quinze anos. Peguem seus salgadinhos, deixem os presentes à mesa e embarquem, a aniversariante os espera.


Vida dura, a de filha de professora. Pelo menos os outros professores não têm autoridade familiar sobre eles, certo? ERRADO! Eduarda se animou e decidiu se candidatar a uma vaga de professora de idiomas, (...) foi aceita de imediato. Renata quase tem um piripaque ao ver a mãe entrando em sala de aula...

- Crianças, a sua nova professora de francês e português...

- Não pode ser – sussurra Patrícia.

- Meu Deus! Meu Deus! Meu Deus! Meu Deus! Meu Deus - Renata dispara em voz baixa!

Os outros colegas (...) desistem de implicar com eles. O castigo já veio. À Renata, é exigido um português tão perfeito e regular, como só em academias de letras para se ouvir igual.  Dos outros alunos, ela exige um pouco mais do que a média para passar, dos seis ela exige alto grau de domínio, da filha é exigido o pleno domínio da norma culta.

No fim da aula (...) Hot Rebeca vai aos garotos que disseram que teriam vida mansa (...) ...

- VIDA MANSA O CACETE! VIDA MANSA TÊM VOCÊS, QUE NÃO PRECISAM ESTUDAR VINTE E QUATRO HORAS POR DIA, SETE DIAS POR SEMANA, COM TAREFAS MAIS DIFÍCEIS QUE AS DE TODO MUNDO! VOCÊS DEVIAM É TER VERGONHA DE RECLAMAR DE MÍSERAS CEM PÁGINAS PARA FAZER NO FIM DE SEMANA! EU FAÇO DUZENTAS TODOS OS DIAS! TODOS OS DIAS! OLHEM MINHAS MÃOS! OLHEM BEM PARA MINHAS MÃOS! ESTÃO DESTRUÍDAS, ACABADAS, QUASE EM CARNE E OSSO, DE TANTO ESCREVER, DESENHAR, MARCAR, MARGEAR E O INFERNO MAIS! TOME VERGONHA, BANDO DE VAGABUNDOS! O PRÓXIMO QUE SAIR FALANDO QUE A GENTE TEM VIDA MANSA, VAI ENGOLIR O APAGADOR DE QUADRO!

Patrícia trata de acolher a baixinha e arrefecer sua cabeça quente. A garota, não se sabe de quem, herdou um sangue muito quente e um pavio curto, que terá que aprender a domar (...) ela impõe respeito. Não se trata somente de fazer um barraco, ela pega o que estiver à mão e manda na testa de quem lhe afrontou. Robert é voluntarioso, mas é calmo e deixa a vida se levar. Robert, o pai, é casca-grossa em muitos aspectos, mas nas relações pessoais é uma pessoa muito amável. Norma é a boa gente em pessoa, só tem um pouco de pulso demais (...) mas é tranqüila. Rebeca... A quem puxou Rebeca, afinal de contas??? É consenso que se deve manter objectos duros, cortantes, pontiagudos ou pesados longe de suas mãos, quando estiver fora de casa. Às vezes até dentro de casa, quando os adultos saem, objectos potencialmente mortais ficam trancados.

Fester fica feliz com o que vê e ouve. A intervenção da irmã fez muito bem ao grupo. Não vai dizer-lhes que já têm padrão profissional de qualidade, ficou acertado que eles jamais deveriam ser mimados, mas os alegra em afirmar que deram um salto enorme. Para quem se acostumou a receber críticas que, embora honestas, demolem qualquer um, é um prêmio! Mais ainda para o combalido irmão de Nancy, que os vê aceitando as críticas com maturidade, coisa que raramente vê mesmo em adultos.

Com o tempo eles se acostumam, passam a tomar por normal o rigor com que são tratados. E nem é tanto assim, eles têm seus momentos de lazer e vadiagem. Brinquedos? Sim, ainda têm muitos, e eles são boa fonte de inspiração. E Patrícia conta dessas coisas para Mademoiselle Fifi, apelido de Josephine para despistar curiosos que porventura interceptem a correspondência...

- Mamãe, Fifi respondeu novamente.

- Ow! Abra, vamos ler que ela diz!

- Mes amis, como estão? Quero, em primeiro lugar, agradecer à Mamãe Durona pela iniciativa. Eu sei que é menos divertido do que levar injeção na testa, mas é uma dureza necessária. À Patty Solar só tenho que dar minha solidariedade, já passei por isso (...) Na escola eu tinha que ser sempre a mais aplicada, sempre a mais disciplinada, sempre a mais solícita, para não fazer parecer que meu prestígio influenciava os resultados. Eu li as músicas e estou encantada com elas, preciso ter cuidado para não cantarolar em local público, e alguém se apossar de seu trabalho! Mas algumas são tão tristes! Lembram as photographias que meus pais trouxeram de Champagne, onde nasci. Tão lindas, mas tão tristes... Eu lhes mostrarei em nosso próximo encontro. Agora vamos à fofoca...

As seis páginas seguintes são dedicadas à divulgação de segredos notórios, como chamam, para descontrair e reforçar os elos. As cartas estão ficando maiores, quase que acrescentando uma página a cada remessa. Patrícia guarda todas com carinho, encadernadas e paginadas. Aliás, orientou aos outros que o façam também, especialmente Renata, que quebrou o recorde...

- Oi, Rê! Que livro é esse?

- Oi, Patty. É a carta que meu tio mandou.

- Hm???

A brasileira mostra o calhamaço encadernado de cento e três páginas, ricamente ilustrado com desenhos, recortes de revistas e jornais e photographias da família, em Goiânia. É um pequeno livro que a moçoila levará dias para devorar...

- Cara, vocês são doidos!

- Somos goianos, ué! Isso pra nós é elogio. Vamos chamar todo mundo!

Sunshadow é como um subúrbio de cidades próximas. Robert e Rebeca chegam, e a leitura começa, com tradução na medida do possível da destinatária.  “Empurrar com a barriga”, “aos trancos e barrancos”, “no peito e na raça”, “ué”, “bom demais, sio”... Ela precisa fazer muitas pausas para explicar o que querem dizer. “Saudades”, por exemplo, ela explica quase chorando.

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Debute. Patrícia será apresentada à sociedade de Sunshadow e vizinhanças, em uma... Ah, para com isso! Convidam todo mundo para a festa de quinze anos da Patty Petty, ela mesma vai cantar e animar a festa, com os amigos. Seus pais foram enfáticos, ao avisar que aquela festa seria a passagem formal da infância para a vida adulta. Na verdade a transição da vida mansa (?) para a de responsabilidades, que espera pelos seis.

Embora o tom tenha sido severo, Patrícia não se assusta. Está acostumada a ter responsabilidades e ser cobrada por elas. Cobrança estendida aos outros cinco. Enquanto o mundo insiste em tentar evitar que seus filhos sofram o que quer que seja, a qualquer custo, Sunshadow inteira aprendeu com os Petty Gardner e os Rodrigues Ribeiro Rocha, a técnica de educar sem tiranizar os pimpolhos (...) eles fizeram tudo no peito e na raça, quase rezando para não estarem dando com os burros n’água. Quase, pois Richard não reza nem sob tortura. A resumida juventude da cidade tornou-se rebelde como toda juventude que se preze, mas não sem causa. Não têm James Dean como exemplo, necessariamente, mas como lição. Cidadezinha estranha esta, viu!

A garota pensa bem a respeito. A partir daquela noite, a qualquer momento, estarão saindo pelo país, talvez pelo mundo, compondo, cantando e tocando profissionalmente. Fester lhe disse algo que usará como bússola: “O dia em que vocês estiverem prontos, será hora de parar”.  Para isso ela conta, entre outras cousas, com a diversidade do sexteto. Mas também com a vida dura que tiveram, para manterem os pés no chão e a humildade.

Mais do que uma simples noite de debute, esta será a última da inocência dos seis. Richard esteve em Nova Iorque e Los Angeles, coletando impressões, informações e de lá trouxe publicações periódicas, que os seis terão uma semana para ler e compreender. Depois disso, vão com ele para conhecer ambas as cidades (...) Uma semana e meia para o que ele considera os polos dos Estados Unidos da América. As viagens de cada família, em fins de semana bem escolhidos, ajudaram a amadurecer os seis e as irmãs de Enzo e Ronald. Enquanto os garotos de sua idade ainda brincam de cuspe à distância, eles já têm bem claro em mente o que querem da vida. Enzo passa tanto tempo em Sunshadow, com o grupo, que já é visto pelos cidadãos como gente de casa. Até cogitam se mudar para lá.

Embora os seis, especialmente a debutante, estejam nervosos, seus pais estão tranqüilos. O comportamento de seus rebentos demonstrou o sucesso da formação que estão recebendo. Já é seguro dizer um desaforo à Rebeca sem o risco de ter o nariz afundado, mas um só. Para Renata o momento é especialmente importante, porque saiu do Brasil ainda criança para acompanhar os pais a uma terra desconhecida, da qual só sabia o que os filmes mostravam, e eles mentem muito, onde pretendia arranjar um emprego de secretária executiva e conseguir um bom casamento (...) Ronald vê a chance de devolver à sua família o prestígio perdido na Idade Moderna, para que seu pai deixe de ser um conde com o brasão no chão.  Robert, bem, para ele que vier é lucro. Garantiu ao pai que ele será o motorista oficial da banda, quando comprarem um motorhome com o logo que Renata desenhou, uma lápide de topo redondo com a sombra de uma locomotiva gravada, e o nome “Dead Train” adaptado ao espaço acima. Enzo sonha, devaneia com o futuro sem se cobrar que ele seja brilhante.

Mas chega de reflexão e saudades antecipadas! É hora de ir à casa dos Petty Gardner, a debutante detesta atrasos. Pela natureza da festa, Ronald vai em seu traje de gala, com comendas e o brasão da família bordados. O brasão, um escudo com duas asnas, esmalte violeta e um leão negro ao centro, em posição de ataque, é um dos orgulhos da família. Se orgulham de não terem se vendido, como outros nobres o fizeram. Os quatro entram no Imperial bege e preto com kit continental, e seguem para a casa da princesa da noite, de lá para o salão de festas. A distância é pequena, poderiam ir a pé, mas a ocasião pede pompa e circunstância. A família tem prosperado, é talvez a mais rica da região, embora não exiba mais do que o carro.

Patrícia sofreu para encontrar um vestido. Uma moça de quinze anos com quase seis pés de altura, é alta em qualquer padrão do mundo. Mais uns dias e passa de 1,8m. Fugiu ao tradicional branco. Embora longo, amplo e com cauda, é um lilás discreto com gola bipartida no decote de ombro a ombro, deixando o colo totalmente à mostra. Luvas ¾ e uma tiara simples, cravejada de brilhantes, com três esmeraldas nos extremos e centro. Para completar, a educação disciplinadora que vem recebendo desde que se entende por gente, porque o verniz não dura muito, se a madeira for ruim. Ela evita falar sem necessidade, quer que a voz esteja à altura do visual de princesa que está vestindo.

Robert e Rebeca terminam de se aprontar. Como os outros, seguiram dicas do amigo nobre, mas a garota se recusa a perder mais do que cinco minutos com cada etapa. Cabelos curtos, desta vez os pais deixaram, para não perder muito tempo com penteado. Jóias simples, para não perder muito tempo pendurando-as. Vestido simples, vermelho fogo, de alças finas e decote em “V”, para não perder muito tempo ajeitando-o. O irmão vai de terno preto, para não errar.

Enzo vai de branco. Sem medo de errar, usa uma gravata vinho e lenço no bolso. Está acostumado a ver o pai se aprontar para festas e a ter notícias de seu sucesso, apenas o copia. Dá um último lustro nos sapatos, para que brilhem a ponto de se tornarem espelhados, mesmo com o risco de serem espelhos inconvenientes, em um salão repleto de saias e vestidos.

Renata é mais caprichosa. É paciente, às vezes até demais. Faz um coque minucioso, deixando duas mechas caírem. Ajeita os brincos de esmeralda e o colar de prata de lei com outra esmeralda ao centro. O vestido é vinho, de alças largas, decote profundo e um broche em forma de flor de maracujá.  Deixa a mãe ajudar na maquiagem, bem devagar, milimetricamente. Inevitável notar que a herança brasileira dos glúteos avantajados, na moçoila foi aplicada de forma muito generosa, por isso as costas ficam quase totalmente cobertas.

Richard contractou vários photógraphos e um cinegrafista. Não só para homenagear a filha, mas também para ter material para sua carreira. Tem visão nítida, enxerga longe e confia no taco da herdeira, por isso ele e os outros estão investindo pesado nas proles. Querem que eles façam por merecer o sucesso, mas não querem que se vejam desnecessariamente sozinhos no mundo. Eduarda e Renato são os mais entusiasmados, se esforçam para não contarem para o Brasil inteiro que sua filha será uma superstar da música. Só dizem que (...) ainda terão notícias dela.

Josephine mandou um representante, devidamente informado à Nancy. Ela e ninguém mais  sabe quem realmente é o homem, apenas o fez se passar por cinegrafista profissional... que ele realmente é, também. A francesa também mandou um presente, que o amigo vai entregar à mulher assim que chegar. Chega em uma robusta Ford Panel Wagon Woody 1957, com seu ajudante e o equipamento. Tudo realmente profissional. Richard (...) nem imagina que foi um dos presentes de Jose de Lane. O homem e o estagiário dos estúdios descem e vão ter com o casal...

- Se a debutante for tão bonita quanto os pais, nem vou cobrar, vou vender o material para Hollywood!

O californiano se apresenta como Bartholomew Simpson. Bart, para os amigos. Também seu fiel escudeiro Sancho Pança... Brincadeira. É Gregory Winston, seu tímido e eficiente ajudante. O rapaz de bigodinho ralo e voz titubeante, se limita a acenar, mesmo com duas sacolas pesadas nas mãos.

Conversam sobre o que eles querem, vêem que ambos sabem muito bem o que pretendem que seja registrado. O intelecto de Richard galopa loucamente, à medida em que aprofunda seus conhecimentos técnico-científicos e culturais. Conhece bem a tecnologia de filmagens e photographias, tem conhecimentos profundos de óptica. Ele sabe como conseguir os efeitos que deseja e orienta muito bem o cinegrafista. Praticamente um cientista amador. Esperará Richard sair para entregar o colar com uma clave de sol que Josephine mandou.

Ok, vamos trabalhar. Luzes posicionadas onde devem estar, equipe de photographia orientada a cooperar, alguns testes de luz, equipamento checado, passos ensaiados... Certo. Tudo pronto. Richard vai com o Cadillac Eldorado Brougham Series 75 1959 preto, que alugou para o evento, buscar a filha, está quase na hora.

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Já chega à residência berrando “Se não estiver pronta, te carrego do jeito que estiver!”. Ela estava pronta há mais de meia hora. Estava se concentrando, lendo um pouco o diário da avó e refletindo sobre as conversas que tiveram. Sonhou com ela, nas últimas três noites. Está serena. Sereníssima. Ela se posiciona no alto da escadaria. Embora unidirecional, há uma plataforma no meio do caminho, para (...) abrigar um pequeno armário embaixo.

Ele entra e se paralisa. É impossível segurar o sorriso de orelha a orelha, bem como nota a forte semelhança da filha com Naomi. A diferença é que a sogra tinha um olhar mais melancólico, o da filha é muito expressivo e penetrante. Está ali, à sua frente, o resultado de quinze anos de educação firme, presente, com toda a dedicação que pôde dar a alguém.

Lembrando de cenas de filmes, Patrícia faz pose e desce com classe, devagar, com um sorriso discreto, olhando para o pai. Ele vê aquela moça encantadora descendo delicadamente, como uma flor lilás flutuando ao vento, tão repleto de felicidade que nem consegue expressar...

- Je suis en retard?

- Une vraie dame n’est jamais en retard.

Lhe dá o braço e a leva ao carro que leva o nome da família Cadillac e da cidade medieval, ambas francesas, e de outra cidade próxima a Sunshadow (...) Como quase todos os caminhos da cidade passam pela praça central, eles avistam a 4-4-4-4 iluminada a partir do solo, em um efeito fantasmagórico, até que os faróis de um De Soto 1951 amarelo a iluminam por completo, por uns instantes. É de um vizinho que, vendo o Cadillac, percebe que ainda dá tempo de ver a chegada da debutante, e acelera.

A família no De Soto amarelo chega, aliviada, vendo os faróis do Cadillac surgindo na esquina. Se posiciona com os outros, mas de modo que as duas filmadoras e os photógraphos possam trabalhar. O Cadillac se aproxima, ronronando suavemente, pára com a mesma suavidade e libera seu chauffeur. Hoje a noite é chique e os flashes já relampejam. Ele abre a porta traseira esquerda e dá a mão para a aniversariante descer, com calma, com classe, com elegância, com tudo a que tem direito.

A primeira parte de uma década sempre traz uma bagagem da anterior (...) vislumbres cinqüentistas estão presentes no salão, seja na decoração, seja nos convidados. A era de ouro de um país que tentou bravamente ser gentil e sofisticado, deixou marcas e saudades em todos os lugares.

Patrícia desce ovacionada (...) distribui um sorriso largo e acenos deliberadamente refinados. Tem gente que descobre que fica mais à vontade fazendo o gênero casual, largadão, ela descobriu que fica mais à vontade sendo uma dama. Talvez ganhe a fama de esnobe, de preconceituosa, mas a quem importa a sua personalidade já é bem conhecida. Mas deixar de ser serelepe e brincalhona, nem pensar!

Acompanha o pai até o palco, onde ele preparou uma surpresa, fará um breve talk show com ela, aproveitando as câmeras. Como diz Renata, ele não dá ponto sem nó. Pelo caminho, photógraphos amadores garantem sua própria recordação da noite e da debutante, alguns com filmes coloridos. A solenidade não durará muito, só o tempo de Nancy e Richard mostrarem toda a exuberância de seu rebento, em plástica e gentileza. Sobem ao palco, onde está Nancy, acenam um pouco para o público e Richard pega o microphone...

- Obrigado! Obrigado! Bem-vindos ao Ritchie Gardner Talk Show. A atração desta noite é a líder de uma banda que está revolucionando a pop music americana. Uma garota que veio de uma cidade nos rincões mais esquecidos de Michigan, e provou com seus cinco companheiros o valor da gente de Sunshadow. Senhoras e Senhores: Patty Petty!

Ele leva a brincadeira às últimas conseqüências. É quase meia hora de entrevista que acaba incluindo os outros cinco. No final Richard pede uma palhinha, Patrícia sussurra algo com os companheiros e vão aos instrumentos...

- I know! My childhood is end, and I’m no more a girl. I know, the world show a new live to me. Was good! Was so good be a girl, but the time dont back. Is just forward what the live work.

I loved every some moment wen I was like a live doll smiling in your arms. Mom and daddy build a dream times, wen I was a girl, but I see my wings so big and strong...

Agora os dois choram. A moçoila trabalhou na música nos últimos dois meses, queria dar um presente surpresa aos pais, por isso só contou para a banda, que ajuda com back vocais e instrumentos. Fester não fica menos emocionado, mas mais ainda por ver que ficaram prontos um ano antes do que previa. Talvez tenham exagerado no rigor, talvez tenham tomado cuidados demais e apressado o amadurecimento, talvez seja melhor deixar de pensar se cometeram algum excesso e começar a replanejar o início da carreira dos seis. Por agora, porém, se limita a colocar a cabeça no ombro de Mary Ann e chorar. Por este choro ela acolhe feliz a cabeça do amado.

Bart confiou no taco da amiga (...) acompanhou com ela, pelas cartas, a evolução e todo o aprendizado. Mas não podia imaginar que a educação dos seis fosse tão intensiva, e que estivessem tão maduros com tão pouca idade. Queria que já houvesse telephones portáteis, para contar a Josephine o que está acontecendo. Profissionalmente, para ele, o grupo está pronto. O facto de todos cantarem constitui uma vantagem e um seguro contra brigas de grande porte.

Cantam “Bla-bla-band” para descontrair e encerram. Patrícia volta a ser a única estrela da festa. Renata (...) a puxa para um canto...

- Descobri uma coisa...

- O quê?

- Sou médium.

- Isso é bom?

- É bom ter a própria mãe como professora?

- Oh, my friend! I’m to sorry! Mas como descobriu?

- Tenho visto vultos, nos últimos meses, que têm se tornado mais nítidos.

- Wow! Tem algum aqui?

- Uma mulher com um vestido branco da bélle époque e um camafeu turquesa... E é a sua cara... É sua avó?

A debutante lacrimeja um pouco, confirma com a cabeça e pede detalhes (...) sorrindo. Pergunta se pode intermediar uma conversa breve, ela promete tentar e consegue, e por isso mesmo se assusta, sabe que a cobrança e a pressão sobre o médium, são proporcionais aos seus atributos. Ela tenta aprofundar e, para seu desespero, consegue intermediar tranqüilamente a conversa interrompida pela tragédia. Vai falar reservadamente aos pais.

quarta-feira, 29 de agosto de 2018

Dead Train in the rain XIV

    Mais um passo na direção do estrelato, mais um nível de dificuldade que se camuflou sob o semblante carinhoso de uma mãe. A estação quatorze põe os pingos nos is para nossa protagonista. Embarquem logo, o trem já vai sair.


Haloween é uma festa pública em Sunshadow, uma das poucas que sobreviveram ao histórico de tristezas da cidade. E foi o deste ano que as famílias combinaram com seus rebentos, para a estréia amadora do Dead Train (...) Para chamar mais atenção, as garotas se fantasiaram de bruxas, e os garotos de Conde Drácula. Brincam despreocupados, enquanto não chega a hora de se apresentarem, especialmente Rebeca. Richard tem planos especiais para esta noite, além da apresentação.

Aos poucos os garotos são reunidos, deixando as rodinhas de concidadãos em que estavam, para a primeira apresentação. Sobem na cabine do trem e Richard liga o som (...) e, lamento, não tem mais volta...

- Welcome to Sunshadow, our little place, so good is the people, but is all very wacky. Welcome to Sunshadow, our happy home, in your own home you’re is not alone...

Começam com uma música irônica e bem humorada, ressaltando a proximidade entre os cidadãos, algo bem semelhante à união e ao pacto de defesa mútua dos originais. Os sunshadowers se reconhecem, e têm esperanças de que as pessoas de fora os conheçam pela música, não mais pela fofoca despeitada de cidades vizinhas (...) A reação agrada, estimula, mas eles sabem que todos os vinte e nove mil habitantes daquela cidade em franca extinção, se conhecem e tradicionalmente se amparam, então não podem levar a ovação como um reconhecimento imparcial. Terão mesmo que sair ao mundo e colocar suas carinhas macias a tapa.

Três canções curtas bastam, deixaram uma boa impressão. Descobrem que, além de Bobby, Rebeca e família, há mais gente de fora, fantasiada. Os garotos são procurados e elogiados, no que Patrícia faz um sinal para os pais se aproximarem. Pena que ainda não exista um telephone como o de Dick Tracy (...).

Os adultos ficam por perto, mas a uma distância grande o suficiente para os garotos se sentirem no mundo dos adultos, tendo que enfrentar estranhos e tomar decisões. Vão precisar disso, quando saírem para o mundo. Patrícia, vendo os pais por perto, com um sorriso escancarado os chama. Os mascarados são seus professores e o director da escola. Querem saber de disponibilidade da trupe, para festinhas do calendário escolar...

- Eles ainda estão aprendendo - diz Richard, de Frankenstein patriota.

- Pois nós temos um estúdio de música novo, que eles poderão usar quando quiserem, é só agendar e utilizar. O que me dizem?

Nancy olha para os seis, como se esperasse deles a resposta, quando eles esperam dos adultos a resposta. Ela faz a cara de “me explique isto, mocinha” que Patrícia conhece bem, a garota entende...

- É com a gente, turma. Aceitamos.

A única decisão certa é a decisão tomada. Os seis tomaram sua primeira decisão em direção à profissionalização. Se foi a melhor ou não, o tempo dirá, o certo é que tomaram e isso os tirou da inércia, esta sim sabotaria tudo.

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Na tarde agendada, lá estão os seis, com seus pais. Eles querem vistoriar pessoalmente o ambiente que seus filhos vão freqüentar. E freqüentarão muito (...) tudo bem feito e bem acabado, com instrumentos à disposição. Nancy pergunta quem é o professor de música...

- Ainda não temos, por isso não inauguramos oficialmente.

- Por quê? Algo de errado com a vaga?

- Well, você é de Sunshadow e acha Summerfields uma cidade grande, por comparação. Infelizmente temos várias cidades maiores por perto, com mais recursos, que acabam por atrair todos os candidatos. Deveríamos ter começado as aulas há meses.

- Só por isso?

- Sim, só por isso.

- A vaga está aberta?

- Sim... A senhora Petty Gardner é professora de...

- Música. Sim, sou e a vaga me interessa.

A decisão de irem ver o prédio novo, a princípio, pareceu desnecessária, excesso de zelo, mas os brasileiros insistiram que seria importante até para a autoconfiança dos rebentos, o que os convenceu. Ser paga para ficar de olho nos seis, para Nancy foi unir o melhor de dois mundos (...).

Os colegas reclamam, afirmam que os seis terão privilégios porque a líder da turma é filha da professora, mas Rebeca rebate...

- Cara, você não sabe do que está falando, não mesmo! Mrs. Petty Gardner não deixa a Patty sair um milímetro da linha. É pior do que militares!

- Mas a gente vê ela encher a garota de mimos! É natural a mãe favorecer seu filho, não é?

- Vai nessa! Cutuca leopardo com vara curta para você ver o que te acontece.

Adaptando um dito de Renata, ela encerra a discussão, pede apenas que esperem e vejam. E vêem...

- Patrícia!

- O quê???

- Está desafinando de novo! Onde está sua cabeça, mocinha? Concentre-se!

Nancy exige dos seis o que não tem liberdade para exigir dos outros, e da filha o que não pode exigir dos outros cinco (...) No fim da aula, os seis ficam...

- Eu estava pensando em música.

- “Música”? Me explique isso, mocinha!

- A cadência do terceiro andamento do piano, me fez lembrar daquelas flores à beira da estrada para Sunshadow...

Ela explica, e explica, e explica... A finalidade é até louvável, mas a adulta no ambiente faz um alerta, como mãe, professora e responsável por todos eles naquele ambiente...

- Meus queridos, há um ditado muito sábio, que diz que o sucesso é dez por cento inspiração e noventa por cento transpiração. Se vocês se deixarem levar por devaneios sempre que forem ensaiar, terão um milhão de inspirações e não conseguirão terminar nenhuma. Não adianta imaginar a música mais maravilhosa do mundo, mas não ser capaz de colocá-la no papel. Isso é grave na vida civil (...) na vida profissional é um desastre! Todo o glamour e luzes, tudo o que vocês vêem pela televisão, ouvem pelo rádio, lêem em jornais e revistas, meus queridos, tudo aquilo não passa de ilusão. A festa, o encanto, a parte boa fica restrita aos olhos dos fãs. Qualquer artista mediano trabalha muito duro para manter o que conquistou. Não adianta fazer uma música que estoure nas paradas de sucesso, e não fazer mais no mesmo nível.

Um bom intérprete precisa cuidar muito da própria saúde, da voz em especial. Vocês mesmos vêem diariamente notícias de gente que conseguiu sucesso rápido e caiu mais rápido ainda. A fama é uma das faces do diabo, minha filha. Se você não a dominar com pulso firme, ela te devora viva. E eu estou falando só de intérpretes, mas vocês são artistas completos! Vocês (...) têm um carisma raro, serão capazes de arrastar multidões, quando estiverem prontos. Repito: QUANDO ESTIVEREM PRONTOS. Até lá, eu vou cobrar de vocês tudo o que as gravadoras vão cobrar, o que as mídias vão cobrar, o que as outras bandas vão cobrar, o que o sucesso vai cobrar, o que o público vai cobrar e o que vocês mesmos um dia se cobrarão. Eu não quero que vocês se esforcem para alçar vôos, e caiam em armadilhas das quais não conseguirão sair. Quero os seis em minha casa, hoje, para treinarem cifras.

terça-feira, 28 de agosto de 2018

Dead Train in the rain XIII

    Tem início o burilamento. A estação treze traz sorte, mas também uma carga de trabalho e responsabilidade que mudará para sempre a vida de nossa protagonista. Todos a bordo, viagem vai recomeçar!

Não tem mesmo como negar a filiação. Patrícia ainda demora a completar quinze anos e já tem mais de um metro e setenta de altura. Precisa de roupas novas. As comprará assim que voltar da escola. Lá, por enquanto, vê os colegas literalmente de cima, rendendo entre os desafetos a fama de arrogante.

Indo com a mãe para a loja mais próxima, Patrícia avista um Alfa Romeo 6C coupé preto parado no acostamento.  A ele está uma mulher de preto com lenço, chapéu e óculos escuros (...) O Volkswagen para poucos metros à frente e elas descem. A garota logo ganha a simpatia e olha o motor. Difícil para aquela dama acreditar que aquela criança delicada é mecânica! Mas é e logo descobre o problema...

- O carburador está seco! A senhora está sem gasolina. Te arranjaremos um pouco e te acompanhamos até o posto mais próximo, em Sunshadow.

A motorista aflita relaxa e começa a rir, aliviada, de si mesma, e rindo se trai aos poucos...

- Mon dieu... Onde eu estava com a cabeça? Parei em um posto, fiz tudo, menos colocar gasolina!

Enquanto Patrícia arranja (...) combustível, Nancy começa a reconhecer (...) Aquela risada é muito familiar, muito característica, muito famosa e cheira a Oscar...

- Jose De Lane!

- Hein? Onde???

A atriz de origem francesa se rende e tira o disfarce, deixando suas longas madeixas cor de mel caírem nos ombros, arrancando gritos das duas (...) No último sábado viram o drama “Sad Portraits”, em que ela foi a protagonista falecida. Autógraphos são o de menos, elas lamentam não terem levado uma câmera. A diva está acostumada à reação, mas é a primeira vez que uma fã lhe presta um serviço desinteressado. As segue, após receber um pouco de combustível.

Pedem que se camufle novamente (...) para evitar que a tietagem a impeça de seguir viagem. Elas poderiam chamar todo mundo e dizer que são amigas de Jose De Lane, em vez disso estão provando que o são, mantendo a discrição. Ela medita um pouco, enquanto enche o tanque. Gastar com combustível não é problema (...) mas um carro beberrão lhe impõe o risco maior de ficar no meio da estrada, se não tiver um tanque enorme. Vê aquele Volkswagen vermelho, com sua janelinha oval bipartida, imagina que deva andar uma quadra com uma só gota de gasolina. Tanque cheio, enche também o do alemão com gasolina especial, para compensar o tempo que tomou das moças, com quem fala em tom baixo...

- Eu nunca tinha ouvido falar desta cidade!

- Quase ninguém ouviu falar de Sunshadow. É conhecida como “Vai Quem Quer”. A única saída dela é a estrada de acesso - diz Patrícia.

- Tem suas vantagens. A falta de rotas de fuga inibe a vinda de visitantes indesejados.

- Sunshadow fica perto de cidades bem servidas, é quase como um bairro de subúrbio, mas com autonomia política.

- Fiquei curiosa. Eu ainda tenho algumas horas, que economizei pegando alguns atalhos. Poderiam me mostrar a cidade?... Em discrição?

Consentem. Dizem para deixar o 6C no posto, aproveitando para fazer o serviço completo. A entrada da cidade é quase invisível, não indica que ela existe. Vão até a arborizada praça central e param, a pedido da diva. Ficam alguns minutos diante do trem morto, contando sua história à actriz, de quebra contando também um pouco das tragédias da cidade. Começa a chover fininho, sem que o sol seja encoberto e Patty não resiste a cantar bem baixinho...

- Learn guy, you have a life for live in your way, don’t take your doom in another hands, for don't be end like me. Dead train in the rain...

- Oh là là! Você canta bem! É profissional?

- Não - diz a menina-moça encabulada.

Jose De Lane, cognome de Josephine Delacroix, é uma colecionadora de Oscars, entre muitos outros prêmios, cuja simples atenção pode render ricos patrocínios. Patrícia e Nancy se esforçam para não parecerem oportunistas, que Josephine reconheceria de longe, e não está entre algumas delas. Nancy conta a história e a actriz alerta...

- Vocês fazem bem, chérie. A fama é muito cruel, muitas amigas que começaram comigo, desapareceram sem deixar vestígios. Algumas eu consegui reencontrar e consigo manter em cartaz, mas o público é tão mais perverso com um actor quanto maior o carisma, lhe vira as costas bastando que fique um ano ou dois afastado. Vamos combinar então, lhes dou este cartão com minha caixa postal. Quando vocês estiverem prontos, me avisem. Até lá, aproveitem, errem, consertem se preparem para a batalha que virá, porque suas vidas serão viradas pelo avesso, se baixarem a guarda um instante que seja.
Lhe dão o endereço da casa (...) e combinam um novo cognome para não quebrar o sigilo. Josephine não quer que o jet set destrua mais seis talentos que, se forem metade do que a mãe coruja disse, têm tudo para abraçarem uma carreira próspera e longa.

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Patrícia tira a rara tarde livre para visitar o tio Fester, que nunca se recuperou do trauma da guerra e tornou-se a tristeza em pessoa, após perder a mãe de forma tão estúpida. Mary Ann tem sido mais enfermeira e psicóloga do que esposa. Demonstra diariamente que realmente ama aquele careca tristonho (...) Agrava o problema, o facto de toda a cidade ter perdido uma parcela maciça de sua população, no conflito, deixando pouca gente capaz de ajudar de verdade...

- Então, tio, a gente decidiu levar a sério a idéia da banda.

- Wow... Mas vão terminar os estudos!

- Vamos. A gente vai cantar pros amigos e família, de vez em quando, pra depois cantar para gente de fora, treinar até estar tudo pronto.

- Eu ponho fé, como diz o Renato. Me desculpe se sou um pouco pessimista, mas eu conheço bem os bastidores do mundo artístico, sei que não vão dar espaço para vocês, não sem luta.

- Por isso precisamos da sua ajuda, tio. Eu trouxe algumas composições para você ver. Pode analisar e criticar sem dó, estou aqui para ouvir.

Como a irmã, ele realmente não tem dó. Faz caretas sempre que seus ouvidos doem, só de imaginar a música sendo cantada.  Mostra onde as coisas não encaixam e onde podem ser melhores, como um crítico de verdade. Patrícia queria ajudar o tio, mas a ajuda acaba sendo recíproca.

De então em diante, as visitas se tornam regulares, às vezes com a turma aspirante a banda inteira na casa, que então volta a ter um pouco da alegria de antes da guerra. Especialmente por Renata, que é a reserva de espontaneidade dos seis (...) seu gentílico a torna o centro das atenções com razoável freqüência, assim como sua anatomia tropical, que forçosamente produz um requebrado incomum no hemisphério norte, sempre que se põe a andar.

Ser cercada quando canta ou conversa com a mãe em português, é comum. De vez em quando conversam com parentes (...) isso ajuda a manter o sotaque. A freqüência com que falam “arroz com pequi” já causou buscas infrutíferas aos dicionários; mas procurar “Compekee” é pedir para fracassar.

segunda-feira, 27 de agosto de 2018

Dead Train in the rain XII

    O primeiro inimigo nunca nos esquece. Ninguém precisa fazer mal a alguém para ter um, basta afrontar as convicções de alguém. Estação 12 e nossa trama está apenas no começo, peguem seus lugares e boa viagem.


Hora de apresentar o projecto de ciências. Tiveram a preciosa ajuda de Richard, um devorador insaciável de publicações científicas, que em poucos anos montou uma biblioteca maior do que a que perderam (...) O trabalho é um diorama cronológico da teoria da evolução das espécies. Começa com os dinossauros em miniatura, esculpidos em gesso, passando pelos animais do terciário e os animais contemporâneos. A bibliografia apresentada é bastante rica e pormenorizada, até explicam a ausência humana entre os dinossauros. É um trabalho lindo, que rende elogios rasgados dos professores, de colegas e de funcionários da escola. Alguns até pegam livros na biblioteca, para fazerem comparações e entenderem melhor. Fica a cargo de Patrícia a apresentação...

- Como costuma dizer nosso amigo Ronald, a bíblia diz o que Deus fez, a ciência mostra como foi feito (...) vou falar do que Charles Darwin concluiu, com seus longos anos de pesquisa prática e observações minuciosas...

A líder do Dead Train, ninguém se atreveu a contrariar sua autoridade. Ela explana com competência, com grande domínio de causa, com pleno respeito aos religiosos e tudo mais. A maioria absoluta aplaude, mas eis que, lá dos quintos, aparece um grupo exaltado, acusando os adolescentes de terem ofendido o próprio Deus...

- Isso é blasfêmia! Vocês estão propagando mentiras criminosas, seus irresponsáveis! Me mostre onde, na bíblia, existe uma só citação a “homens das cavernas”! Vamos!

- Em nenhum lugar - responde calma e friamente a temperamental Patrícia.

- Viram? Ela admite! E você sabe por que não tem? Sabe?

- Porque a bíblia foi escrita muitos milhares de anos depois do aparecimento do homem, e foi escrita ao longo de quatro séculos.

- MAS QUE ABSURDO É ESSE??? QUEM VOCÊ PENSA QUE É PARA NEGAR O AMOR DE DEUS, SUA PECADORA??? Essa juventude está toda contaminada por costumes imundos! Se afastando da palavra do salvador e se afundando na mundanice! Este país deveria ser uma pátria santa, com todos nascendo pela graça do espírito santo, e subindo em carne para o reino dos céus, ao fim da jornada! É o que está escrito!

- Também está escrito que não se deve fazer a barba, cortar os cabelos, nem comer frutos do mar. Eu sei que você faz tudo isso. Diz, também, “cristão”, que o samaritano, inimigo dos israelitas na época, também subiria ao céu. Você conhece a Samaria? Sabe que tipo de gente que Jesus absolveu, vivia lá?

Patrícia não admite ser afrontada. Olha-o nos olhos, fria e cientificamente. O homem, tomado de fúria, alavanca a mão esquerda para dar o tapa e a sente presa, sendo esmagada...

- NINGUÉM... TOCA... NA MINHA FILHA!!!!!!!!!!!

Ele acorda no dia seguinte, no hospital. Bastou um golpe da mesma mão que prendia a sua, para dar uma pirueta e aterrissar estatelado no chão de cimento bruto.

Richard leva seu rebento com delicadeza e afagos para casa, em nada lembrando o bárbaro ensandecido que aflorou. Foi à escola para lhe apresentar o carro novo, em primeira mão, um Volkswagen vermelho berrante que comprou para Nancy. Mais calmo, procurando deixar o episódio para trás, ele lhe conta que uns veteranos de guerra lhe falaram sobre o carro, que era a coisa mais resistente que já tinham conhecido, quando capturaram alguns na Alemanha...

- Acredita que o motor é atrás?

- E como ele consegue andar pra frente?

Explica à filha, pelo caminho, todas as estranhezas e simplicidades extremas daquele carro estranho...

- NÃO TEM RADIADOR??? O MOTOR VAI EXPLODIR!!!

Mas não explodiu. Foram a mais de cem por hora para Sunshadow, onde, após a festa histérica da mãe, Patrícia vê os detalhes mecânicos daquele chucrute de quatro rodas, com cara de “cadê o resto?” assim que vê o motor. O carro, mais de um metro menor do que o padrão americano, é tão estranho quanto redondo, e é todo redondo...

- Mas é lindo!!! Meu primeiro carro!

O bairro inteiro cerca o carro, tentando entender o que é aquilo, com o capô vazio e um motor sobressalente no porta-malas. Parece frágil, fraco, mas Richard repassa os relatos dos ex-combatentes (...) Nos primeiros dias, ultrapassando atoleiros, vencendo rampas íngremes, fazendo o dobro de milhas por galão de gasolina, o Volkswagen vence a resistência da desconfiança. Não tem o espaço interno, o desempenho e a capacidade de carga de uma banheira americana, mas para o uso cotidiano é suficiente. Como o próprio Richard disse há muitos anos, não há motivo para discriminar um alemão, agora que não representa mais perigo. Ainda mais um alemão que (...) não pesará para manter.