quarta-feira, 22 de agosto de 2018

Dead Train in the rain VI

    Nasce uma amizade ainda de fraldas. Nossa protagonista precisará de todas as que tiver no longo caminho que tem à sua frente. Sexta estação de nossa viagem, apresentem seus bilhetes e vamos embarcar!


Patrícia observa, de dentro do Studbaker Commander amarelo ano 1947, aquele enorme trem na praça, sob chuva torrencial. O clima da cidade mudou bastante, desde que nasceu. Um raio de cem quilômetros ficou mais verdejante e com o ar mais fácil de ser respirado. Mas também tornou comuns os atoleiros (...) O prefeito foi o único a não gostar da mudança, teme perder as próximas eleições.
A menina já sabe falar um pouco, apesar de ainda se atrapalhar com palavras grandes, mas com o que conhece ela deslancha. Nancy vê o interesse da filha pela locomotiva da praça...
- That’s a dead train, honey.
- Dead train... In the rain...
E começa a cantar a frase, ainda de forma pueril, mas por isso mesmo encantadora. Na verdade a pequena canta melhor do que fala, sua dicção fica mais clara e inteligível. Richard agora sabe por que ainda não teve uma briga séria com Naomi, ela está muito entretida com Patrícia. Passa o dia inteiro lhe ensinando acordes e músicas simples, sempre com canções tradicionais da América. Até o choro dela é afinado! Não, os pais não ficam encantados enquanto a criança se esgoela e se desidrata de chorar, absolutamente, apenas é uma forma muito menos traumática de se perder horas preciosas de sono no meio da madrugada.
O carro entra na garagem pouco depois de a pequena terminar de cantar o refrão. Naomi se apressa em ir pegá-la, enchê-la de mimos e tudo mais, porque da parte severa da educação, os jovens pais estão dando conta. Dá um recado ao genro...
- Um homem de sotaque engraçado ligou, agradecendo pelo serviço no Oldsmobile.
- Sotaque engraçado... Ele falou “scusa, signora” ou coisa parecida? É o Enzo. Veio ainda garoto da Calábria, na Itália, mas só aprendeu a falar inglês depois dos dez anos. A família fugiu do fascismo, a história dele é muito interessante.
A história e seu amor pelo piccolo Enzo, figlio muito querido, que está aprendendo a falar os dois idiomas. Os cabelos negros encaracolados brilham ao sol recém-saído. O menino tem um gosto especial pela música, e é com música que os pais o educam. Ensino musical disciplina a índole de uma criança (...)
A vinte milhas dali, Patrícia canta uma cantiga que a avó traz da bélle époque. Não dá para negar, a mulher vê na neta um pouco da felicidade que perdeu ao longo dos anos. Que carma horroroso! Perdeu o segundo marido exactamente como viu o irmão mais novo morrer! Teve que trabalhar para ajudar a sustentar a família, pois o pai enlouqueceu com o trauma e cometeu suicídio, pulando na frente do primeiro trem que viu passando. Ela assistiu de perto a cena. E viveu cercada de cães e trens ao longo de seus cinqüenta e sete anos, até hoje. Como conseguiu educar tão bem os filhos (...) a psicologia explicaria, (...) Hoje eles são adultos, e não sabem como ela conseguiu. Na verdade o único sucesso sólido que a professora de música teve na vida, foi a boa educação dos filhos.
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Enzo e Richard se tornam rapidamente bons amigos. O facto de ele ser católico praticante, não implicou em falta de respeito mútuo, pelo contrário, eles trocam farpas humorísticas e depois tomam uma cerveja, enquanto as mulheres e as crianças se entretêm. A matriarca adopta mais um (...) Em minutos os bebês estão ao piano, aprendendo a reconhecer os acordes e dando sossego aos pais...
- Dead train in the rain...
- Você está com essa música na cabeça há dias!
- Dead train in the rain...
- Ok, vamos refinar isto.
Enzo começa a acompanhar e Naomi não tem escolha, além de ritmar (...) Como foi consigo, ela inicia desde cedo a escolarização das crianças, que de duas passam para três, para quatro, mais um casal, sempre com a música apoiando essa formação. E assim, no quintal da casa da filha, Naomi supre a falta de uma pré-escola na cidade. Os pais dos petizes pagam à Nancy, já que a mãe não aceita receber por isso.  Não se pode esperar que as provações tenham criado um anjo, o caráter forjado é paga suficiente. Naomi se viu mais de uma vez em apuros, por ser orgulhosa, embora as abrasões da vida a tenham ensinado a controlar essa índole...
- Então, quantas letras temos aqui?
- Vinte e sete -respondem as crianças, mas não ao mesmo tempo.
As familiariza com o alphabeto na mesma toada das outras matérias. É uma mulher de muita leitura, sempre se actualizou com a pedagogia moderna, mas não crê que alguns métodos antigos devam ser abandonados. Não abre mão da disciplina em sala de aula, ou em jardim de aula, como no caso.
Lhe dá trabalho, mas lidar com as crianças lhe faz muitíssimo bem! O luto não resistiu àquelas bochechas sorridentes. Chega a dar as risadas que já tinha esquecido como são, e que tomam rapidamente o lugar das rugas. Ao fim da manhã, quando as outras crianças vão embora, fica em Patrícia uma sensação de estranheza que ainda não superou. Não compreende por que os outros têm que ir embora. Desapego faz parte do aprendizado, e ele será útil na vida de adulta.
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Richard volta furioso da delegacia. Quase foi preso também, mas não poderia deixar o amigo de infância ser detido sem acusação formal. Piorou seu humor a declaração da acusadora, de que ele estaria invadindo um espaço indevido e constrangendo sua família. Por quê? Porque é negro. Mais do que isso, um negro em boas condições financeiras, que não troca de carro todos os anos, mas nunca está com carro velho ou caindo aos pedaços. Neste ano, aliás, David tirou um Plymouth Clipper vermelho 1950 modelo 1951 da loja, com os detalhes que encomendou à fábrica. Ainda há muita gente ressentida da abolição da escravatura e da guerra da secessão, tanto no sul quanto no norte do país, as cidades vizinhas não escapariam mesmo dessa doença...
- Ritchie, você é o irmão que eu não tive! Obrigado, cara!
- Não foi para isso que meu pai e meu tio morreram na guerra? Para combater uma mentalidade mesquinha e garantir a liberdade do mundo? Pode contar comigo sempre, irmão. Vai processar a paspalha?
- Vou, é claro. Não poso deixar que esse comportamento se dissemine. Não posso impedir as pessoas de serem idiotas, mas posso fazer com que hesitem em colocar sua idiotice em prática.
- WOW! Vou pintar uma placa com esta frase e colocar no meu portão!
Meia hora e a frase, com crédito, estampa a frente da casa, em amarelo com fundo preto. Longe dali, um pequeno grupo planeja se vingar da humilhação sofrida. Não aceitou ver um negro ser solto, após uma mulher branca o ter denunciado (...) não entendem o motivo de Richard ser amigo daquele negro, menos ainda de ser ateu, já que é bom e inteligente. O que os impede de tirar satisfações, são os mais de cento e cinqüenta quilos distribuídos em seus mais de dois metros de altura e sua boa capacidade de luta corporal.

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