sexta-feira, 24 de agosto de 2018

Dead Train in the rain VIII

    Um mundo novo e repleto de encantos, como a Drosera é para os insetos. Aqui nasce a era de inveja, despeito e desafetos que nossa protagonista enfrentará pelo resto da vida.
    A oitava estação tem alguns petiscos para nossos viajantes, mas mantenham os bilhetes em mãos, partiremos assim que a locomotiva apitar.

Os três amigos estreiam na escola nova, na cidade de Summerfields, da qual Sunshadow já foi um mero distrito (...) Patrícia, Enzo e Ronald entram em um mundo novo. O director (...) os encaminha à sua sala, é amigo do prefeito da pequena “Vai Quem Quer”, ele os recomendou muito bem, enfatizando a formação musical...

- Bem-vindos pequenos americanos! Este será o seu segundo lar por muitos anos! Vocês vão ser muito felizes por aqui, ah se vão! Vou encaminhá-los para Miss Helen Ross, sua nova professora.

Os três olham para aquela empolgação exacerbada, se entreolham, fazendo caras muito engraçadas, como se perguntassem se isto é um habitante do mundo exterior. Raramente saíram de Sunshadow e vizinhança, que mesmo pequena é bem servida de entretenimento, inclusive com um cinema muito bem actualizado. Embora sinceramente alegre com os novos alunos, o homem se preocupa um pouco com o relacionamento dos três, especialmente Ronald, filho de David, que é negro. Mais ainda por ele ser nobre, o que poderá gerar despeito. Não é rico, mas traz a primogenitude do condado francês, cujo título sua família preferiu manter a vender para escapar da falência, em 1744. O garoto é bem refinado, mas (...) um americano típico.

Entram em sala de aula e a turma realmente estranha. Não só por serem novatos, mas também o contraste da pele achocolatada com as muito alvas. Combinam de Enzo se sentar atrás de Ronald, para evitar brincadeiras maldosas, enquanto Patrícia fica na frente. A professora, após conversar com o director, os recepciona...

- Bem-vindos, meus queridos! Classe, estes são nossos novos amiguinhos; Patrícia, Enzo e Ronald. Eles vieram de Sunshadow para estudar conosco. Dêem as calorosas boas-vindas aos novatos...

Os protocolos sociais se sucedem e Enzo não mora em Sunshadow, ainda, mas passa a maior parte do tempo lá. Os três foram reiteradamente advertidos pelos pais e concidadãos a não se deixarem levar, o povo de Sunshadow tem restrições para com gente de fora. É certo que a América, após a guerra, estava tentando ser uma nação gentil e refinada, mas poucos lugares, como aquela pequena cidade, estavam conseguindo algum resultado concreto, por mais boa vontade que os compatriotas tivessem. Os filmes de Jerry Lewis eram a sátira perfeita desta situação. Ele mesmo era a sátira perfeita desses cidadãos.

No intervalo os três ficam à parte, comentando impressões e olhares curiosos. Sentem-se como se fossem animais exóticos de um circo. Os veteranos apenas os observam de longe. Um solitário sai da inércia e deles se aproxima, não faz rodeios, vai directo para Ronald...

- Como você conseguiu entrar aqui?

- Cara, não foi fácil.

- Você é o único negro nesta escola.

- E você é o único veterano que veio conversar com a gente, em vez de ficar com medo de contrair uma doença. Por que os outros estão afastados?

- Acho que é por sua causa, eles não estão acostumados.

- Que chatos! Ainda bem que você estava aqui.

- Qual o seu nome?

Aprendeu a ser diplomático com o avô (...) Patrícia tomou a frente e mudou o rumo da conversa, aquela menininha mandona. O racismo latente na atitude de Robert logo se transforma em curiosidade, e Enzo começa a descontrair, contando piadas. Foi um golpe de sorte, porque lá há crianças que realmente não gostam de negros, menos ainda de brancos que se misturam a eles, ainda que para alguns seja o primeiro negro com que têm contacto visual.

Quando Richard e Nancy vão busca-los, encontram os três com o veterano, rindo e conversando abobrinhas, e com eles ficam até os pais dele chegarem, quando o grandalhão aproveita para dar uma boa impressão...

- O senhor está de parabéns, seu filho foi de uma conduta exemplar!

- Ah, o que é isso! Este é um país livre! Mesmo que o garoto fosse um marciano verde, ensinei Bobby a não destratar ninguém! Aliás, depois que soube das conseqüências de um atentado de racistas em Sunshadow...

Nancy começa a chorar (...) Os homens conversam reservadamente e o caminhoneiro fica envergonhado. Richard põe panos quentes e novamente agradece pelo tratamento que o filho de um amigo de infância recebeu de Robert...

- “Conde”?

- Meu amigo, este é o conde Ronald Julius Jean Patrick Marie Leon Denis Goulart Delizard Solei De Champs Elisée Roi Louis Van Provence Lumiére de Canard Noir de Savoir, o pequeno Conde de Marselha.

- Caramba! O nome dele é maior do que o meu caminhão!

- WOW! Eu sou amigo de um conde!

A piada involuntária faz Nancy parar de chorar e rir desatadamente. As crianças acompanham os risos.

&

Nancy vai ao quarto da filha, de vestido azul e avental rosa. A casa nova é um pouco menor do que a destruída, mas foi construída em tempo recorde, antes de o inverno chegar. Encontra-a entretida com os livros escolares. Nunca os tinha tido, já que a avó a educou com sua própria biblioteca que, aliás, ficou de herança para a si, a salvo no baú que estava na oficina. Até hoje é a única neta...

- Do que está rindo? Do acontecimento de hoje?

- Também. Estes livros são muito simples! Eles não têm nada a me ensinar, só gostei das ilustrações bonitas.

- Sua avó te ensinou em regime de internato, Patty.

- What?

- Internato é um tipo de escola na qual os alunos moram. Neles, as crianças (...) só voltam para casa nos fins de semana ou nas férias. Foi mais ou menos o que minha mãe fez por vocês, só que sem a privação de liberdade inerente.

A menina pensa um pouco. Não conhecia outro modo de estudar, então acha aquela escola meio fraquinha, quando na verdade, sua avó é que trouxe o rigor pedagógico do século XIX à sua educação. Pergunta à mãe se ela não quer dar aulas suplementares para ela e os amigos, para manter o padrão de ensino que vinham recebendo até então...

- Naomi Petty Green era única, Patrícia. Não digo isso só porque era minha mãe, é porque era boa mesmo! Como ela, nós não teremos outra tão cedo.

- Mas você é professora formada, não é?

- Sou... Embora trabalhe ao balcão daquele posto de gasolina...

- Lembra do que ela falou de a gente não desistir do sonho? Você vai realmente decepcionar minha avó?

Tocou-lhe os brios. Decerto que não se considera capacitada para substituir a mulher que lhe deu a educação civil e acadêmica, mas o que a menina lhe diz faz todo sentido. Ela promete pensar no caso, mas (...) agora trabalha fora e não tem o tempo disponível com que sua mãe contava.

Na manhã seguinte, Nancy ajeita o vestido amarelo claro, para começar a atender na lojinha anexa ao posto. Tudo caminha normalmente até que um caminhoneiro familiar aparece. Robert, pai de Bobby. Cumprimentam-se e no decorrer da conversa e do registro das compras, ela deixa escapar que é professora, como a mãe era. Não reclama (...) mas o magistério é sua vocação e sente falta dele. O dono do posto ouve e...

- Se lhe servir, você pode usar o pátio de trás, depois do expediente.

Ele até se lembrava de que ela é professora, mas nunca tinha dito que sentia falta de ensinar (...)  As pessoas costumam reclamar para si da falta de oportunidades, mas nem sempre se lembram de pedir a quem pode ajudar, seja por orgulho, timidez, barreira social ou qualquer outro motivo. Robert pede que seu filho seja incluído na turma, não o quer vadiando pelas ruas, depois da aula.

A tarde é de planejamento. Vê com Patrícia o que a escola formal lhes ensinou, absolutamente nada que já não soubessem com mais qualidade. Então acredita que pode endurecer e exigir bem deles, partir de onde sua mãe parou, embora...

- Não se preocupe, Patty Petty está aqui! Eu ajudo Bobby a se adiantar.
              Bobby não vê com tão bons olhos a novidade. Estava acostumado às tardes livres, vendo televisão ou caçando encrenca pelas ruas. Além do mais, estranha ter que ir todas as tardes para “Vai Quem Quer”. Mas sua mãe gostou da idéia, tanto que incluiu a filha caçula na turma, (...) perdeu democraticamente.

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