segunda-feira, 27 de agosto de 2018

Dead Train in the rain XII

    O primeiro inimigo nunca nos esquece. Ninguém precisa fazer mal a alguém para ter um, basta afrontar as convicções de alguém. Estação 12 e nossa trama está apenas no começo, peguem seus lugares e boa viagem.


Hora de apresentar o projecto de ciências. Tiveram a preciosa ajuda de Richard, um devorador insaciável de publicações científicas, que em poucos anos montou uma biblioteca maior do que a que perderam (...) O trabalho é um diorama cronológico da teoria da evolução das espécies. Começa com os dinossauros em miniatura, esculpidos em gesso, passando pelos animais do terciário e os animais contemporâneos. A bibliografia apresentada é bastante rica e pormenorizada, até explicam a ausência humana entre os dinossauros. É um trabalho lindo, que rende elogios rasgados dos professores, de colegas e de funcionários da escola. Alguns até pegam livros na biblioteca, para fazerem comparações e entenderem melhor. Fica a cargo de Patrícia a apresentação...

- Como costuma dizer nosso amigo Ronald, a bíblia diz o que Deus fez, a ciência mostra como foi feito (...) vou falar do que Charles Darwin concluiu, com seus longos anos de pesquisa prática e observações minuciosas...

A líder do Dead Train, ninguém se atreveu a contrariar sua autoridade. Ela explana com competência, com grande domínio de causa, com pleno respeito aos religiosos e tudo mais. A maioria absoluta aplaude, mas eis que, lá dos quintos, aparece um grupo exaltado, acusando os adolescentes de terem ofendido o próprio Deus...

- Isso é blasfêmia! Vocês estão propagando mentiras criminosas, seus irresponsáveis! Me mostre onde, na bíblia, existe uma só citação a “homens das cavernas”! Vamos!

- Em nenhum lugar - responde calma e friamente a temperamental Patrícia.

- Viram? Ela admite! E você sabe por que não tem? Sabe?

- Porque a bíblia foi escrita muitos milhares de anos depois do aparecimento do homem, e foi escrita ao longo de quatro séculos.

- MAS QUE ABSURDO É ESSE??? QUEM VOCÊ PENSA QUE É PARA NEGAR O AMOR DE DEUS, SUA PECADORA??? Essa juventude está toda contaminada por costumes imundos! Se afastando da palavra do salvador e se afundando na mundanice! Este país deveria ser uma pátria santa, com todos nascendo pela graça do espírito santo, e subindo em carne para o reino dos céus, ao fim da jornada! É o que está escrito!

- Também está escrito que não se deve fazer a barba, cortar os cabelos, nem comer frutos do mar. Eu sei que você faz tudo isso. Diz, também, “cristão”, que o samaritano, inimigo dos israelitas na época, também subiria ao céu. Você conhece a Samaria? Sabe que tipo de gente que Jesus absolveu, vivia lá?

Patrícia não admite ser afrontada. Olha-o nos olhos, fria e cientificamente. O homem, tomado de fúria, alavanca a mão esquerda para dar o tapa e a sente presa, sendo esmagada...

- NINGUÉM... TOCA... NA MINHA FILHA!!!!!!!!!!!

Ele acorda no dia seguinte, no hospital. Bastou um golpe da mesma mão que prendia a sua, para dar uma pirueta e aterrissar estatelado no chão de cimento bruto.

Richard leva seu rebento com delicadeza e afagos para casa, em nada lembrando o bárbaro ensandecido que aflorou. Foi à escola para lhe apresentar o carro novo, em primeira mão, um Volkswagen vermelho berrante que comprou para Nancy. Mais calmo, procurando deixar o episódio para trás, ele lhe conta que uns veteranos de guerra lhe falaram sobre o carro, que era a coisa mais resistente que já tinham conhecido, quando capturaram alguns na Alemanha...

- Acredita que o motor é atrás?

- E como ele consegue andar pra frente?

Explica à filha, pelo caminho, todas as estranhezas e simplicidades extremas daquele carro estranho...

- NÃO TEM RADIADOR??? O MOTOR VAI EXPLODIR!!!

Mas não explodiu. Foram a mais de cem por hora para Sunshadow, onde, após a festa histérica da mãe, Patrícia vê os detalhes mecânicos daquele chucrute de quatro rodas, com cara de “cadê o resto?” assim que vê o motor. O carro, mais de um metro menor do que o padrão americano, é tão estranho quanto redondo, e é todo redondo...

- Mas é lindo!!! Meu primeiro carro!

O bairro inteiro cerca o carro, tentando entender o que é aquilo, com o capô vazio e um motor sobressalente no porta-malas. Parece frágil, fraco, mas Richard repassa os relatos dos ex-combatentes (...) Nos primeiros dias, ultrapassando atoleiros, vencendo rampas íngremes, fazendo o dobro de milhas por galão de gasolina, o Volkswagen vence a resistência da desconfiança. Não tem o espaço interno, o desempenho e a capacidade de carga de uma banheira americana, mas para o uso cotidiano é suficiente. Como o próprio Richard disse há muitos anos, não há motivo para discriminar um alemão, agora que não representa mais perigo. Ainda mais um alemão que (...) não pesará para manter.

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