domingo, 26 de agosto de 2018

Dead Train in the rain XI

    Começa nesta décima primeira estação o trabalho de nossa protagonista, para  nunca mais terminar. Aboletem-se em suas poltronas, que o trem vai partir.

Os adultos conversam sobre entretenimento. Os amigos já estão grandinhos o bastante para que não atrapalhem a conversa, mesmo Rebeca. Os seis, educados com música, têm ouvidos mais apurados e concordam com o que os pais dizem, é preciso filtrar bastante o que se ouve no rádio, tem muito cantor famoso que só solta sopa de letrinhas ritmadas...

- No decorrer dessa estrada, as porcarias vão acabar se tornando maioria nas rádios! São fáceis de memorizar e empolgam!

- Uma coisa é música meramente de entretenimento - responde Fester ao cunhado - o que é até saudável. O problema é quando a malícia e a preguiça de compor saem do controle.

- Vamos ser claros, Fester! O problema é quando vira sacanagem, e tá virando rotina! Quando os caras não estão nem aí pro que vão falar, soltam titica no microphone e depois viram as costas... E eu me importar com isso é prova de que estou ficando velho...

Os seis também costumam conversar a respeito, já cogitaram formar uma banda ou algo parecido (...) Patrícia, em um longuete verde escuro com alças finas e cinta de tecido negro, solta seu sarcasmo musicalmente...

- Is only bla-bla-bla, bla-bla-bla in the radio! Bla-bla-bla, bla-bla-bla, oh, my love!

Os adultos a olham, Richard coça o queixo e pede que ela repita. Ela repete e ele marca com palmas o andamento, os outros a acompanham e sai algo até interessante...

- We no have a love for the music! We no have a love for the art! Does not matter if a people listen a trash from us. But you are crazy for buy our records, it’s all we want from you!

We have a bla-bla-bla, bla-bla-bla in the radio! Bla-bla-bla, bla-bla-bla, oh, my love!

              Is only bla-bla-bla, bla-bla-bla in the radio! Bla-bla-bla, bla-bla-bla, oh, my honey!

They are a bla-bla-bla bla-bla-band on the air!

- Cara! Vocês têm talento!

Eles finalmente contam, até porque ninguém tinha perguntado, o que tanto fazem naquela locomotiva morta (...) Eles conversam cantando, baixinho, para terem alguma privacidade em local público. Embora já grandinhos e responsáveis, ainda são crianças diante do mundo, por isso os adultos convocam uma reunião com os parentes, para discutirem o que podem fazer por eles. Robert é órfão, nunca foi adoptado, então são só ele e Norma para tratar de Bobby e Rebeca; a menina já tem cinturinha e começa a destacar o busto, o rapazote só consegue falar direito cantando, porque a voz começou a mudar e lhe causa constrangimentos.

Fica claro que eles gostam da idéia de formar uma banda profissional. Fica claro também, que ninguém quer que eles se aventurem pelo mundo em tenra idade, menos ainda antes de terminarem os estudos. Fica ainda mais claro que precisam investir nos seis, que eles precisam sair mais da região, ver o que acontece no mundo com seus próprios olhos, conhecer bastidores, ver também os podres do mundo artístico e amadurecer o projecto da banda que já tem nome: Dead Train. Tudo acertado, deixam a parte musical para os rebentos (...) os adultos cuidarão do resto, e isso inclui um curso prático de não deslumbramento com a possível fama. E, é óbvio, fazem uma festa para expressar a corujice aguda e crônica que acabam de contrair; uma doença incurável. Os adultos não cabem em si.

&

Aproveitam um fim de semana prolongado. Cada família leva seu cantor para um lugar diferente, para que eles tenham experiências diferentes para compartilhar. Nancy e Richard decidem levar Patrícia para o Canada, para ela conhecer algo diferente. Uma fronteira (...) faz muita diferença! Renato e Eduarda levam Renata para Chicago, Robert e Norma levam Bobby e Rebeca para Cleveland, David e Diana levam Ronald e Lucille para Milwaukee, Enzo e Maria levam Enzo, Marina e Victoria para Detroit. Ninguém faz uma viagem muito longa, já que o objetivo é que os cantores aprendam com o lugar, que sintam as diferenças e entendam o que é estar em uma terra estranha, como será quando estrearem. Para Renata a aventura é dupla, porque faz pouco tempo que está em solo americano. Salvo para os nobres, que são parados mais vezes pela polícia, nenhum contratempo.

Todos trazem photographias para compartilhar. De doze a trinta, cada um expõe as suas, Patrícia cataloga e pormenoriza por escrito no verso de cada uma (...) As diferenças são maiores do que imaginavam. Enzo destaca a pujança de Detroit, mas também uma certa despreocupação com o futuro, que seus avós lhe ensinaram que não é prudente. E agora o mais importante, todos trouxeram discos de vários artistas, alguns só conhecidos localmente, para ouvir, avaliar e aprender. Ronald conta uma experiência, que seus pais estão repassando aos adultos...

- Muitos motociclistas com jaquetas de couro abertas, alguns de peito nu, aspecto agressivo. Alguns usavam brincos, tinham cabelos longos, enfim... Quando nós entramos no posto para abastecer e comer, um deles veio puxar conversa, usando o carro novo como pretexto. Os mais velhos deles eram veteranos de guerra...

- Agora eu fiquei intrigada - diz Patrícia. Militares não deveriam ser disciplinados, organizados e ajustados?

- Tem a ver com o que eles viram na guerra e com o que viram na volta. Eles lutaram contra regimes extremamente conservadores, intolerantes e que não davam a menor importância para o indivíduo. Quando chegaram de lá, encontraram algo muito parecido...

Os outros fazem caras de espanto, beirando o estarrecimento, mas ele continua...

- Eles sabiam que suas mulheres tinham tomado as rédeas da casa, que as mulheres em geral tinham dado muito bem conta do recado, tanto que não faltou munição durante o conflito! Na volta, o que viram foi a mesma visão machista que deixaram aqui, e contra a qual lutaram, a segregação racial contra a qual lutaram, o condicionamento da liberdade à adequação aos estereótipos contra os quais lutaram, enfim... Eles abdicaram da vida de conforto e conveniências que o que eles chamam de prisão sutil oferece.

Os jovens se olham, Rebeca com mais espanto e indignação, sem saber o que dizer a respeito. O mais chocante não é eles terem adoptado uma vida livre, é o motivo por o terem feito. Condicionamento meramente protocolar da liberdade dentro do grupo social é a coisa mais antiamericana que já ouviram...

- Foi o que eles nos falaram, Renata. Que a América estava praticando dentro de casa, exactamente o contrário do que pregava nas propagandas. Por exemplo, as sete abordagens policiais palas quais passamos. Éramos quatro negros em um Mercury Sedan praticamente novo, com todos os opcionais de fábrica. Os policiais, provavelmente, têm os mesmos carros há uns cinco anos ou mais (...) Nós trocamos de carro quando quisermos, mas preferimos não ser consumistas inveterados, que foi outra coisa que os motoqueiros apontaram.

- E por serem negros em um carro de luxo - completa Robert - eles sentiram seus orgulhos feridos, é isso?

- Acreditamos que sim, embora nenhum deles tenha sido ríspido ou desrespeitoso em momento algum, pelo contrário, mas fugir dos padrões os incomoda. Aliás, sabiam que é crime branco se casar com negro, nos Estados Unidos?

A discussão dura a tarde inteira, entra em um pedaço da noite e só acaba quando os pais visitantes levam seus filhos de volta para casa. Patrícia, em particular, começa a meditar com profundidade, acoplando à sua própria experiência o que ouviu. Conheceu essa barreira quando tiveram que estudar em outra cidade. Todos os dias os colegas de escola dizem que dará trabalho para o marido, que sendo tão mandona não vai arranjar ninguém. Sua mãe lhe contou de como tiveram que sobreviver durante a guerra, das restrições de orçamento e consumo, dos improvisos que se viram obrigados a fazer até na maquiagem, da dureza que deveria ter sido um aprendizado para o país inteiro; infelizmente tem que concordar com os motoqueiros, embora não queira a vida desregrada que têm.

1 comentários:

O Peito Pensante disse...

Eu sei que estou atrasada, desculpe, mas esse foi o capítulo + sério e pesado que li, ate agora.