terça-feira, 28 de agosto de 2018

Dead Train in the rain XIII

    Tem início o burilamento. A estação treze traz sorte, mas também uma carga de trabalho e responsabilidade que mudará para sempre a vida de nossa protagonista. Todos a bordo, viagem vai recomeçar!

Não tem mesmo como negar a filiação. Patrícia ainda demora a completar quinze anos e já tem mais de um metro e setenta de altura. Precisa de roupas novas. As comprará assim que voltar da escola. Lá, por enquanto, vê os colegas literalmente de cima, rendendo entre os desafetos a fama de arrogante.

Indo com a mãe para a loja mais próxima, Patrícia avista um Alfa Romeo 6C coupé preto parado no acostamento.  A ele está uma mulher de preto com lenço, chapéu e óculos escuros (...) O Volkswagen para poucos metros à frente e elas descem. A garota logo ganha a simpatia e olha o motor. Difícil para aquela dama acreditar que aquela criança delicada é mecânica! Mas é e logo descobre o problema...

- O carburador está seco! A senhora está sem gasolina. Te arranjaremos um pouco e te acompanhamos até o posto mais próximo, em Sunshadow.

A motorista aflita relaxa e começa a rir, aliviada, de si mesma, e rindo se trai aos poucos...

- Mon dieu... Onde eu estava com a cabeça? Parei em um posto, fiz tudo, menos colocar gasolina!

Enquanto Patrícia arranja (...) combustível, Nancy começa a reconhecer (...) Aquela risada é muito familiar, muito característica, muito famosa e cheira a Oscar...

- Jose De Lane!

- Hein? Onde???

A atriz de origem francesa se rende e tira o disfarce, deixando suas longas madeixas cor de mel caírem nos ombros, arrancando gritos das duas (...) No último sábado viram o drama “Sad Portraits”, em que ela foi a protagonista falecida. Autógraphos são o de menos, elas lamentam não terem levado uma câmera. A diva está acostumada à reação, mas é a primeira vez que uma fã lhe presta um serviço desinteressado. As segue, após receber um pouco de combustível.

Pedem que se camufle novamente (...) para evitar que a tietagem a impeça de seguir viagem. Elas poderiam chamar todo mundo e dizer que são amigas de Jose De Lane, em vez disso estão provando que o são, mantendo a discrição. Ela medita um pouco, enquanto enche o tanque. Gastar com combustível não é problema (...) mas um carro beberrão lhe impõe o risco maior de ficar no meio da estrada, se não tiver um tanque enorme. Vê aquele Volkswagen vermelho, com sua janelinha oval bipartida, imagina que deva andar uma quadra com uma só gota de gasolina. Tanque cheio, enche também o do alemão com gasolina especial, para compensar o tempo que tomou das moças, com quem fala em tom baixo...

- Eu nunca tinha ouvido falar desta cidade!

- Quase ninguém ouviu falar de Sunshadow. É conhecida como “Vai Quem Quer”. A única saída dela é a estrada de acesso - diz Patrícia.

- Tem suas vantagens. A falta de rotas de fuga inibe a vinda de visitantes indesejados.

- Sunshadow fica perto de cidades bem servidas, é quase como um bairro de subúrbio, mas com autonomia política.

- Fiquei curiosa. Eu ainda tenho algumas horas, que economizei pegando alguns atalhos. Poderiam me mostrar a cidade?... Em discrição?

Consentem. Dizem para deixar o 6C no posto, aproveitando para fazer o serviço completo. A entrada da cidade é quase invisível, não indica que ela existe. Vão até a arborizada praça central e param, a pedido da diva. Ficam alguns minutos diante do trem morto, contando sua história à actriz, de quebra contando também um pouco das tragédias da cidade. Começa a chover fininho, sem que o sol seja encoberto e Patty não resiste a cantar bem baixinho...

- Learn guy, you have a life for live in your way, don’t take your doom in another hands, for don't be end like me. Dead train in the rain...

- Oh là là! Você canta bem! É profissional?

- Não - diz a menina-moça encabulada.

Jose De Lane, cognome de Josephine Delacroix, é uma colecionadora de Oscars, entre muitos outros prêmios, cuja simples atenção pode render ricos patrocínios. Patrícia e Nancy se esforçam para não parecerem oportunistas, que Josephine reconheceria de longe, e não está entre algumas delas. Nancy conta a história e a actriz alerta...

- Vocês fazem bem, chérie. A fama é muito cruel, muitas amigas que começaram comigo, desapareceram sem deixar vestígios. Algumas eu consegui reencontrar e consigo manter em cartaz, mas o público é tão mais perverso com um actor quanto maior o carisma, lhe vira as costas bastando que fique um ano ou dois afastado. Vamos combinar então, lhes dou este cartão com minha caixa postal. Quando vocês estiverem prontos, me avisem. Até lá, aproveitem, errem, consertem se preparem para a batalha que virá, porque suas vidas serão viradas pelo avesso, se baixarem a guarda um instante que seja.
Lhe dão o endereço da casa (...) e combinam um novo cognome para não quebrar o sigilo. Josephine não quer que o jet set destrua mais seis talentos que, se forem metade do que a mãe coruja disse, têm tudo para abraçarem uma carreira próspera e longa.

&

Patrícia tira a rara tarde livre para visitar o tio Fester, que nunca se recuperou do trauma da guerra e tornou-se a tristeza em pessoa, após perder a mãe de forma tão estúpida. Mary Ann tem sido mais enfermeira e psicóloga do que esposa. Demonstra diariamente que realmente ama aquele careca tristonho (...) Agrava o problema, o facto de toda a cidade ter perdido uma parcela maciça de sua população, no conflito, deixando pouca gente capaz de ajudar de verdade...

- Então, tio, a gente decidiu levar a sério a idéia da banda.

- Wow... Mas vão terminar os estudos!

- Vamos. A gente vai cantar pros amigos e família, de vez em quando, pra depois cantar para gente de fora, treinar até estar tudo pronto.

- Eu ponho fé, como diz o Renato. Me desculpe se sou um pouco pessimista, mas eu conheço bem os bastidores do mundo artístico, sei que não vão dar espaço para vocês, não sem luta.

- Por isso precisamos da sua ajuda, tio. Eu trouxe algumas composições para você ver. Pode analisar e criticar sem dó, estou aqui para ouvir.

Como a irmã, ele realmente não tem dó. Faz caretas sempre que seus ouvidos doem, só de imaginar a música sendo cantada.  Mostra onde as coisas não encaixam e onde podem ser melhores, como um crítico de verdade. Patrícia queria ajudar o tio, mas a ajuda acaba sendo recíproca.

De então em diante, as visitas se tornam regulares, às vezes com a turma aspirante a banda inteira na casa, que então volta a ter um pouco da alegria de antes da guerra. Especialmente por Renata, que é a reserva de espontaneidade dos seis (...) seu gentílico a torna o centro das atenções com razoável freqüência, assim como sua anatomia tropical, que forçosamente produz um requebrado incomum no hemisphério norte, sempre que se põe a andar.

Ser cercada quando canta ou conversa com a mãe em português, é comum. De vez em quando conversam com parentes (...) isso ajuda a manter o sotaque. A freqüência com que falam “arroz com pequi” já causou buscas infrutíferas aos dicionários; mas procurar “Compekee” é pedir para fracassar.

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