Estação dezesseis, a última da vida mansa. Peguem suas pedras e rolem morro acima pelo resto da vida, faz parte da viagem.
O único jornal da cidade dá destaque à festa
cinematográfica. O editor afirma que já esteve em celebrações em cidades
grandes (...) poucas vezes viu uma festa como aquela.
Patrícia se sente o máximo. Renata, porém, sente medo. Se encontrou uma vez com
Chico Xavier, ainda criança, ficou espantada com a força contida naquele corpo
franzino(...) Não acredita estar pronta para isso, quase tremeu nas bases quando
viu Naomi. Só quando termina de desabafar, vê que os pais estão sorrindo. Como
ousam sorrir ante uma tragédia desta monta? Eduarda abraça e afaga a filha, a
enche de beijos e de cafuné. Não dizem uma palavra, apenas paparicam o rebento
durante toda a manhã, até que se sinta melhor. Ela melhora, mas ainda está
assustada. Pedem-lhe, primeiramente, que ninguém mais saiba disso, o mercado de
médiuns mercenários é muito forte. Combinado isso, avisam para não comer carne
hoje, farão o culto no lar para tentar lançar uma luz no assunto. Por último
chamam Patrícia e lhe pedem o mais absoluto sigilo, pelo menos até que a filha
esteja devidamente preparada. Renato escreve uma carta para o Brasil, para
conseguir apoio adequado para o assunto.
O culto acontece só com os três, não há mais
espíritas na cidade. De sua casa, com um binóculo, Patrícia vê a casa da amiga
às escuras, já usando o colar com a ginoclave. Não tem idéia do que se passa lá
dentro. Sabe o que é o culto no lar, ela explicou para todos mais de uma vez,
mas o mistério sobre o que está se passando especificamente naquele culto lhe
tira o sono. Desaba na cama, rodeada de tantos presentes que ainda não
conseguiu abrir todos os pacotes. Liga o seu preferido, o trem que seu pai lhe
deu, com seus trilhos suspensos em vários níveis nas paredes. Enquanto observa
o trem em movimento, adormece.
Nancy se pergunta o que tanto preocupa a
filha. A cobre, que a noite está esfriando rápido, esperando que de manhã
esteja mais calma. Hesita em desligar o trem, pensa por uns instantes e deixa
ligado, ele está se mostrando uma canção de ninar muito eficiente. Não adianta
conversar com Richard, ele não acredita em espiritismo. Vai à sala de estar e o
que encontra? Justo ele estudando um exemplar do Livro dos Médiuns...
- Não se surpreenda, eu aprendi português. O
facto de eu não acreditar, não me dá o direito de ver minha filha aflita, vou
estudar isto até saber no que posso ajudar.
- “Livro dos médiuns”?
- Você acha que uma menina equilibrada como a
Renata se abalaria por pouco? Deve acreditar que virou médium, vou ver no que
posso ajudar. E dos absurdos que as religiões pregam, estes aqui estão muito
longe de serem os piores.
Na manhã seguinte Nancy afala com Eduarda, na
escola, antes da primeira aula...
- Como???
- Richard é um gênio. Ele capta as coisas no
ar. Ele é atento a tudo ao seu redor, deve ter ligado causa e conseqüência.
- Vocês podem manter segredo disso, até
conseguirmos colocar a cabecinha dela no lugar?
- Manteremos. Na verdade, mesmo sendo ateu,
Ritchie está estudando o espiritismo com afinco, para poder ajudar.
Ela agradece, pela discrição e pela ajuda. E
ele está levando à sério. Entre um procedimento e outro consulta o livro,
aberto em uma moldura que fez com uma biela de International 1947 e alguns
parafusos, devidamente soldados. Pensa consigo mesmo “Se eu fosse acreditar em
algum deus, seria neste”. Continua revisando o velho Packard Roadster 1929, que
só ele consegue manter funcionando. É de um amigo que, coisa estranha em uma
época de consumismo desenfreado, pega os bens duráveis que os outros jogam fora (...) Já são mais de trezentos
veículos (...) e itens domésticos. Gerald Fischer
não tolera desperdícios, relaxamentos ou quaisquer outros excessos, o que levou
os filhos a o abandonarem ainda cedo, quando a mãe faleceu. Só conta com os
amigos de Sunshadow para ter vida social.
Borrifa um pouco de gasolina de alta
octanagem no carburador, vai à ignição e dá partida. Funciona como um relógio.
O coloca em um elevador, que usa a força do próprio carro, e o deixa na altura
certa para entrar no caminhão. O elevador vai de reboque. Lá, ele vê duas
novidades, um Hernney Kilowatt vermelho, quase novo e já descartado, e um
Crosley woody 1950. Fischer explica que o Hernney é, na verdade, um Renault
Dauphine importado sem mecânica e adaptado para rodar com baterias.
Infelizmente o alcance é de apenas 60 milhas, e a velocidade é de 60 mph...
- Mas os primeiros eram ainda piores, não
tinham nem potência para subir aquela rampa da minha garagem, não sem pegar
embalo. Viajar com eles, nem pensar (...).
- Por que não negociaram com a Studebaker? Um
carro maior e mais caro, com baterias e motor mais potentes, teria obtido algum
êxito. O americano não quer saber de carro econômico, só que ele cruze o país
em um tempo razoável.
- O dia em que o petróleo começar a acabar,
vão sentir saudades dele.
- Duvido. Este francezinho vai ficar
esquecido por muitos anos. No dia em que o petróleo escassear, vão arranjar
algum bode expiatório e declarar guerra. A idéia é boa, mas com menos de 60hp,
não tem mesmo chance alguma!
- Mas um dia eles terão que acordar!
- Não neste século, acredite. Vai usar ele?
- Dentro da fazenda ele não corre risco de
ficar sem carga, será meu carrinho de golfe.
Terminam a conversa e ele desce o Packard. O
amigo sempre fica impressionado com a engenhosidade daquele elevador. Se o
carro não puder subir sozinho, há uma tomada de força no próprio Chevrolet
1940.
Na escola, Patrícia explica aos outros quatro
que a amiga está com um problema muito íntimo...
- Tá grávida???
Todos olham para Rebeca, abismados. Não, não
é gravidez. Ela diz que é um assunto de foro íntimo, que por acaso descobriu e
que Renata precisa de discrição para colocar a cabeça no lugar. Espera, assim,
contar com a compreensão e ajuda da banda, para ela se recuperar mais depressa.
Agora vão para a aula de música, Nancy não tolera atrasos. Na sala, alguns
alunos ainda comentam sobre a festa, parte deles com muita inveja. Tanta, que
querem algo maior.
&
Josephine tem acesso em primeira mão ao
material da filmagem. Ela está compenetrada, sóbria, atenta a cada cena. A
desenvoltura dos seis endossa o que Bart disse, estão profissionalmente prontos
para os palcos. Mas ela sabe que serem profissionais competentes, não os
livrará das armadilhas que o show business planta pelo caminho. O olhar
crítico, porém, não a priva de dar os típicos gritinhos de um fã em um
concerto. Ao fim do vídeo, conversa com Bart sobre as anotações que fez durante
a exibição. Apontou pontos fortes e fracos (...) Eles se empolgam com facilidade, é uma faca de dois gumes que
precisam aprender a controlar.
Enquanto a diva de milhões, musa de gerações
se delicia com o documentário em que a filmagem se transformou, os seis estão
penando, vendo atrocidades nas páginas policiais e políticas, de jornais de New
York e Los Angeles. Não imaginam que tipo de gente possa ter gosto para ler tamanho
detalhismo sobre atrocidades criminais, e sujeiras políticas. Mas há (...) A morbidez com que o
repórter minucia um crime passional os assusta, é como se ele estivesse falando
de um evento social aprazível e divertido, cheio de amenidades, mas é de um
crime que deixaria Atila o Huno chocado.
Eles se entreolham, começam a dar muito mais
valor à vida que levam. Foi proposital, Richard quis que conhecessem primeiro a
parte sórdida das metrópoles, para que não sejam pegos de surpresa (...) e tenham mais
surpresas agradáveis do que tristes, uma vez que já vão conhecendo as trevas
das cidades.
O noticiário do cotidiano é muito mais ameno,
nem por isso isento de tosqueiras. Desde um cão que urinou nos pés do policial
até gente que estacionou em frente a um hidrante, e reclamou de ter o carro
danificado pelos bombeiros. Há a história de uma senhora que saiu com o saco de
lixo nos braços, e só viu que não era seu filho quando chegou em casa (...) Um caso
curioso é o de um repórter que estudou e treinou durante um mês, se fingiu de
magnata suíço, fez a banca em uma festa de grã-finos e voltou à redação com
doze convites para jantares e negócios. Sim, é muito fácil enganar as pessoas,
tanto mais quanto mais certezas tiverem e mais preconceituosas elas forem.
Voltam a se entreolhar, sorrindo maliciosamente, Patrícia ainda mais, pois
pretende se aconselhar com Josephine a respeito.
Richard chega e manda deixarem as páginas
sujas de lado, por hoje, para que consigam dormir à noite. Manda verem os
quadrinhos, a seção de moda, a de classificados, até a de astrologia, mas que
deixem a parte barra pesada para amanhã, quando voltarem do colégio. Talvez até
tenham mais inspiração vendo Blondie safar Dagwood de suas trapalhadas.
Nancy chega com o lanche, porque estudar
queima muita glicose e eles não se contentam em ler, precisam encenar, pular,
dramatizar ou mesmo saracotear pela sala, procurando uma nota ou manchete da
qual acabou de se lembrar.
Eles notam uma assustadora semelhança entre a
realidade e os quadrinhos, só que sem graça. Não vêem significativa diferença
entre um personagem trapalhão, que briga por causa de uma salsicha de hot dog,
e um cidadão alienado (...) Aqui Nancy e Richard dão sua
contribuição, para que os garotos não pensem que a América é o país mais podre
e degenerado do mundo, pelo contrário (...) Contam as histórias que Serguei trouxe da União Soviética, idolatrada por
muitos intelectuais que, lá, não poderiam apontar o dedo para os erros das
autoridades como fazem aqui, não sem o risco de fuzilamento sumário. O completo
cerceamento das liberdades individuais é só uma das mazelas desses países...
- Você não pode fazer praticamente nada sem o
consentimento do Estado. É uma ditadura, como Cuba acaba de se tornar. O povo
só existe para sustentar as forças armadas, e estas para proteger os “camaradas
ricos do Partido Comunista” – explica Nancy.
-
Take a moment! “Rich partners of Communist Party”??? Não deveria ser todo mundo proletário?
- É uma ditadura, minha filha. Esses artistas
e atletas excepcionais que de vez em quando vêm, têm seus cachês totalmente
confiscados pelos comunistas. Todos são igualmente lacaios do Estado. Nem
viajar para fora eles podem, sem permissão do governo; e quase ninguém tem.
Eles só ouvem, vêem e lêem o que o governo deixa. Tanto que nenhum cidadão pode
simplesmente cruzar a fronteira com outro país, sem o risco de ser alvejado.
- O capitalismo, já lhes disse, nasceu falido
por não conter limites aos seus instintos suicidas. Mas o comunismo, como
“sistema político”, leva esse suicídio a cabo. Sua mãe tinha arranca-rabos
épicos com o padrasto, mas quando eles conseguiam sentar para conversar... era
uma coisa linda de se ver! (...) Essas críticas que estamos
fazendo aqui, ao nosso sistema, em uma ditadura poderia dar fuzilamento. Não se
encantem com o discurso de justiça social, igualitarismo, et cétera. É tão
utópico que eles nunca conseguiram de verdade colocar em prática. Qualquer um que
estude psicologia seriamente sabe que não dá para fazer isso, simplesmente
porque as necessidades de cada um são só suas. Dá para ser justo e amparar quem
não conseguiu se erguer; algo em que infelizmente estamos falhando, mais do que
isso é discurso para enganar a fé de gente revoltada e bem intencionada.
Mais do que um cara admirável, Richard é
quase um guru para os seis. Ele lhes mostra o tempo todo que o mundo não lhes
pertence, que são apenas sócios com a mesma participação acionária que todos os
outros têm. Assim, com debates e reflexões, se passa a semana de preparação.
Fazem questão de honrar a placa que ostentam no portão, com a frase dita por
David: Não posso impedir as pessoas de serem idiotas, mas posso fazer com que
hesitem em colocar sua idiotice em prática.
No sábado os seis têm
uma folga, podem descansar, vadiar, enfiar cordão em arroto, o que quiserem. No
domingo, pela manhã, pegam a estrada para New York. Mesmo de folga, todo mundo
acaba refletindo sobre a semana philosophica. Inclusive Richard. Como bom
professor, ele aprende com seus alunos, talvez mais do que eles consigo. No
momento estão todos na praça do trem morto, fazendo um piquenique regado a suco
de frutas e muitos pães de queijo, feitos pela pianista do Dead Train.
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