terça-feira, 21 de agosto de 2018

Dead Train in the rain V

    Gravem bem o nome desta pequerrucha! Ela decidiu quando deveria nascer, pois decidirá muito mais coisas de muita, mas muitas vidas.



Nancy e Richard têm seu primeiro rebento, uma menina. A pequena divide com os pais o pequeno espaço no quarto de hospital (...) onde eles, seus pais e avós nasceram. Aliás, a piada pronta da cidade é que ninguém passa por Sunshadow, porque nenhuma estrada passa por lá. Só há uma estradinha de pista simples, que desce da principal e morre na cidade, não há outra entrada ou saída. Só chega a Sunshadow quem quer chegar lá, ou quem perdeu o caminho. A cidade já foi próspera, muito próspera, até o início do século. Prosperidade que seus habitantes mantêm na conservação exemplar de suas construções e sua infraestrutura, ainda que tirem de seus bolsos.

A luz do poste é a única que ilumina o ambiente, a pedido da mãe, para não incomodar a filha, que fica na penumbra, enquanto seus pais têm o contraste duro da iluminação em seus rostos. O rosto duro e claramente amargurado de Richard, pela primeira vez em muitos anos, deixa transparecer ternura (...).

Curioso, mas estava chovendo há até cinco minutos antes de seu nascimento, após semanas de seca outonal. Também é digno de nota que todos pensam que estão viajando. Estavam a caminho de casa, quando a menina decidiu que seria naquela hora. Todo o planejamento pré-natal foi para o saco, mas estão felizes assim mesmo.

A noite transcorre sem qualquer alteração. Eles gostariam de acreditar que este é o temperamento da filha, mas sabem que pode ser só o cansaço pelo trabalho de sair e enfrentar a gravidade, sem o líquido amniótico para ajudar. Terão tempo para pensar nisso, por agora apenas dormem, porque a chuva voltou a cair pela segunda vez no dia.
Foram dois debaixo de sol, voltaram três debaixo de chuva. Não se tem notícias de a chuva persistir tanto na cidade, não de uma só vez. O resultado é que os quintais amanheceram encharcados, as plantas estão mais verdes do que o habitual, a umidade poupou o trabalho de tirar o pó da casa e o ar está mais agradável de respirar. Patrícia chegou em um momento atípico.
A verdade é que nascimentos tinham se tornado atípicos, desde o fim da guerra. Quase metade da população foi embora, traumatizada, para tentar esquecer a tristeza na cidade grande. Metade dos que foram voltou poucos anos depois, frustrada com o grau de dificuldades encontrado, tendo descoberto que a prosperidade prometida não era fácil como parecia, nem os critérios justos como se alardeia. Mas a taxa de natalidade caiu vertiginosamente. Sunshadow tinha quase sessenta mil habitantes em 1942, hoje não tem mais do que quarenta mil. A chegada de Patrícia se torna então, um evento social.

Não deixam de notar, todos os presentes, mas Naomi, mãe de Nancy, fica nitidamente mais jovem ao ver a neta. O marido, pivô do casamento precoce da enteada, é o primeiro a denunciar a luz no rosto da mulher (...)

- Nancy, ela é a cara do seu pai!

- Oh, não! (...) Ritchie, meu pai sempre foi assediado.

- E eu sempre (...) soube colocar seu pai na linha, assim como coloquei vocês dois...

Um pequeno lapso se dá. O tempo parece parar, quando se lembram que Gerald foi o último maquinista da locomotiva desativada, que hoje é a única atração da cidade, na praça central, cercada de flores, em um arranjo meio funesto. Foi apelidada de “trem morto”, quando os Petty Green receberam a péssima notícia.

Apesar de Sunshadow não ter lá muita coisa, cidades bem maiores estão próximas e oferecem boas oportunidades de emprego, mesmo não sendo metrópoles. Às vezes fica incômodo para o ego do cidadão, dizer que mora na cidade “Vai Quem Quer”, como ficou conhecida, especialmente quando um gaiato sem noção insiste em ouvir “Sou de Sunshadow” e responde “Ok, nascido em Vai Quem Quer”. Mas para alguns, isto constitui mais uma vantagem do que outra coisa. Se não atrai viajantes, tampouco atrai meliantes... Além do prefeito, é claro.
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Richard consola a sogra, Nancy tenta explicar à filha atônita o que é aquilo. Um dia após o aniversário da pequena, ela vê a mãe viúva novamente, e novamente por motivos estúpidos. Os policiais tiveram que matar os cães, para resgatar o corpo que estavam comendo. O dono do canil fugiu. (...) O homem se colocou na frende de uma moça negra com o filho nos braços, quando viu os animais escapando da propriedade em Summerfields.
Todos os dias Serguei rezava para tirar da enteada a má impressão que seu jeito rude tinha deixado, jeito que trouxe da vida dura na Rússia (...) de onde trouxe histórias tristes da vida em um país comunista. Bem, foi atendido, de quebra lhe deu um sentimento de culpa e revolta consigo mesma (...) Sunshadow inteira chora, Naomi é uma moradora muito bem quista, mas nunca teve um só dia de sossego na vida, nunca passou um ano sem um luto, em família ou particular. Ainda há o pacto entre os moradores de proteção mútua, mas isso nunca foi empecilho para Dona Morte e sua falta de educação ao entrar nas casas.
O cortejo passa em frente à praça central, tendo a gigantesca locomotiva 4-4-4-4 como testemunha. Carros antigos e novos seguem a pick-up Studebaker 1942, que leva o caixão. Desde o Chevrolet 490 1919 do carteiro, até o Recém-comprado Bel-Air modelo 1949 do prefeito, onde viaja a viúva. Uma mulher linda ainda hoje (...) ela já está acostumada a levar essas apunhaladas da vida, mas nunca perdeu a sensibilidade.
Fica acertado, Fester e a esposa passam a morar na casa da mãe, que passa a morar com a filha mais velha, onde a neta a distrairá de sua viuvez estúpida. O próprio Richard propôs isso, para a surpresa geral...
- Brigas? Mas é claro que haverá brigas, Nancy! Todo mundo briga, nós mesmos já brigamos. Se alguém não está preparado para manter uma relação apesar dos conflitos, não está preparado para viver em sociedade. É brigando que a gente se entende mais tarde, querida.
Diz e sai para o galpão que lhe serve de oficina, onde um velho Packard 1927 (...) espera pela troca da junta do cabeçote... Depois, é claro, de ser asfixiado por um beijo da linda e jovem esposa. A genética sempre foi generosa com Sunshadow.
Richard aprendeu com o falecido tio, que o pior luto é o da decisão não tomada, aprendeu com seu saudoso pai que a melhor decisão é a que se tiver tomado. Arrependimentos fazem parte de se tornar um adulto. Patrícia, serelepe, fica feliz em ter a avó por perto todos os dias, Naomi mais ainda, cantando cantigas de sua infância para entreter a pequerrucha.

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