Gravem bem o nome desta pequerrucha! Ela decidiu quando deveria nascer, pois decidirá muito mais coisas de muita, mas muitas vidas.
Nancy e Richard têm seu primeiro rebento, uma
menina. A pequena divide com os pais o pequeno espaço no quarto de hospital (...) onde eles, seus pais e avós nasceram. Aliás, a
piada pronta da cidade é que ninguém passa por Sunshadow, porque nenhuma
estrada passa por lá. Só há uma estradinha de pista simples, que desce da
principal e morre na cidade, não há outra entrada ou saída. Só chega a Sunshadow
quem quer chegar lá, ou quem perdeu o caminho. A cidade já foi próspera, muito
próspera, até o início do século. Prosperidade que seus habitantes mantêm na
conservação exemplar de suas construções e sua infraestrutura, ainda que tirem
de seus bolsos.
A luz do poste é a única que ilumina o
ambiente, a pedido da mãe, para não incomodar a filha, que fica na penumbra,
enquanto seus pais têm o contraste duro da iluminação em seus rostos. O rosto
duro e claramente amargurado de Richard, pela primeira vez em muitos anos, deixa
transparecer ternura (...).
Curioso, mas estava chovendo há até cinco
minutos antes de seu nascimento, após semanas de seca outonal. Também é digno
de nota que todos pensam que estão viajando. Estavam a caminho de casa, quando
a menina decidiu que seria naquela hora. Todo o planejamento pré-natal foi para
o saco, mas estão felizes assim mesmo.
A noite transcorre sem qualquer alteração.
Eles gostariam de acreditar que este é o temperamento da filha, mas sabem que
pode ser só o cansaço pelo trabalho de sair e enfrentar a gravidade, sem o
líquido amniótico para ajudar. Terão tempo para pensar nisso, por agora apenas
dormem, porque a chuva voltou a cair pela segunda vez no dia.
Foram dois debaixo de sol, voltaram três
debaixo de chuva. Não se tem notícias de a chuva persistir tanto na cidade, não
de uma só vez. O resultado é que os quintais amanheceram encharcados, as
plantas estão mais verdes do que o habitual, a umidade poupou o trabalho de
tirar o pó da casa e o ar está mais agradável de respirar. Patrícia chegou em
um momento atípico.
A verdade é que nascimentos tinham se tornado
atípicos, desde o fim da guerra. Quase metade da população foi embora,
traumatizada, para tentar esquecer a tristeza na cidade grande. Metade dos que
foram voltou poucos anos depois, frustrada com o grau de dificuldades
encontrado, tendo descoberto que a prosperidade prometida não era fácil como
parecia, nem os critérios justos como se alardeia. Mas a taxa de natalidade
caiu vertiginosamente. Sunshadow tinha quase sessenta mil habitantes em 1942,
hoje não tem mais do que quarenta mil. A chegada de Patrícia se torna então, um
evento social.
Não deixam de notar, todos os presentes, mas
Naomi, mãe de Nancy, fica nitidamente mais jovem ao ver a neta. O marido, pivô
do casamento precoce da enteada, é o primeiro a denunciar a luz no rosto da
mulher (...)
- Nancy, ela é a cara do seu pai!
- Oh, não! (...) Ritchie,
meu pai sempre foi assediado.
- E eu sempre (...) soube colocar seu pai na linha, assim como coloquei vocês dois...
Um pequeno lapso se dá. O tempo parece parar,
quando se lembram que Gerald foi o último maquinista da locomotiva desativada,
que hoje é a única atração da cidade, na praça central, cercada de flores, em
um arranjo meio funesto. Foi apelidada de “trem morto”, quando os Petty Green
receberam a péssima notícia.
Apesar de Sunshadow não ter lá muita coisa,
cidades bem maiores estão próximas e oferecem boas oportunidades de emprego,
mesmo não sendo metrópoles. Às vezes fica incômodo para o ego do cidadão, dizer
que mora na cidade “Vai Quem Quer”, como ficou conhecida, especialmente quando
um gaiato sem noção insiste em ouvir “Sou de Sunshadow” e responde “Ok, nascido
em Vai Quem Quer”. Mas para alguns, isto constitui mais uma vantagem do que
outra coisa. Se não atrai viajantes, tampouco atrai meliantes... Além do
prefeito, é claro.
&
Richard consola a sogra, Nancy tenta explicar
à filha atônita o que é aquilo. Um dia após o aniversário da pequena, ela vê a
mãe viúva novamente, e novamente por motivos estúpidos. Os policiais tiveram
que matar os cães, para resgatar o corpo que estavam comendo. O dono do canil
fugiu. (...) O homem se colocou
na frende de uma moça negra com o filho nos braços, quando viu os animais
escapando da propriedade em Summerfields.
Todos os dias Serguei rezava para tirar da
enteada a má impressão que seu jeito rude tinha deixado, jeito que trouxe da
vida dura na Rússia (...) de onde trouxe
histórias tristes da vida em um país comunista. Bem, foi atendido, de quebra
lhe deu um sentimento de culpa e revolta consigo mesma (...) Sunshadow
inteira chora, Naomi é uma moradora muito bem quista, mas nunca teve um só dia
de sossego na vida, nunca passou um ano sem um luto, em família ou particular. Ainda
há o pacto entre os moradores de proteção mútua, mas isso nunca foi empecilho
para Dona Morte e sua falta de educação ao entrar nas casas.
O cortejo passa em frente à praça central,
tendo a gigantesca locomotiva 4-4-4-4 como testemunha. Carros antigos e novos
seguem a pick-up Studebaker 1942, que leva o caixão. Desde o Chevrolet 490 1919
do carteiro, até o Recém-comprado Bel-Air modelo 1949 do prefeito, onde viaja a
viúva. Uma mulher linda ainda hoje (...) ela já está acostumada a levar essas
apunhaladas da vida, mas nunca perdeu a sensibilidade.
Fica acertado, Fester e a esposa passam a
morar na casa da mãe, que passa a morar com a filha mais velha, onde a neta a
distrairá de sua viuvez estúpida. O próprio Richard propôs isso, para a
surpresa geral...
- Brigas? Mas é claro que haverá brigas,
Nancy! Todo mundo briga, nós mesmos já brigamos. Se alguém não está preparado
para manter uma relação apesar dos conflitos, não está preparado para viver em
sociedade. É brigando que a gente se entende mais tarde, querida.
Diz e sai para o galpão que lhe serve de
oficina, onde um velho Packard 1927 (...) espera pela troca da junta do cabeçote...
Depois, é claro, de ser asfixiado por um beijo da linda e jovem esposa. A
genética sempre foi generosa com Sunshadow.
Richard aprendeu com o falecido tio, que o
pior luto é o da decisão não tomada, aprendeu com seu saudoso pai que a melhor
decisão é a que se tiver tomado. Arrependimentos fazem parte de se tornar um
adulto. Patrícia, serelepe, fica feliz em ter a avó por perto todos os dias, Naomi
mais ainda, cantando cantigas de sua infância para entreter a pequerrucha.
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