sexta-feira, 30 de julho de 2010

Crueldade

Quem se importa? Afinal era só um escravo que já não servia seu amo. Foi deixado à própria sorte em qualquer lugar de onde não pudesse voltar. De lá os dominantes foram ao mercado comprar um ou dois escravos novos e mais robustos.
Nunca se importou em comer os restos da casa, comia com satisfação. Se seus amos se alimentavam daquilo é porque era bom. Prato? Não, naquela casa um escravo jamais teve desses luxos.
Cuidados médicos sempre faltaram, exceto quando já se tornava escandaloso demais para a sociedade admitir, então o levavam a qualquer açougueiro, que receitava qualquer porcaria de baixo preço e boa comissão. Mesmo doente trabalhava. Tinha que trabalhar, era uma propriedade. Mas não reclamava.
De serviço vinte e quatro horas por dia, todos os dias do ano durante todos os anos de serviço que prestou àquela casa.
Não sendo ingrato, recebia uns afagos de vez em quando, das crianças, mas só delas. E só enquanto eram crianças. Quando lhes servia de palhaço para brincar e entreter.
O corpo está todo marcado por mordidas de cães ferozes, dos quais defendeu com a vida a família e até seus parentes mais distantes. Uma marca de tiro ainda é evidente no peito, quase empacotava daquela vez. Quase fica paraplégico quando o dono da casa passou com o carro sobre sua perna, então tiveram que levá-lo a um especialista decente, o que lhe custou castigos e reprimendas.
As rondas noturnas eram sua especialidade, seus olhos eram muito mais aguçados do que a média e nenhum intruso lhe passava desapercebido. Calor ou frio, chuva ou sol, não importava sob que condições, o trabalho extenuante jamais cessava. Escravos são para isso mesmo.
Hoje, já velho demais para o gosto daquela gente, com a visão desgastada, musculatura fraca e olhar vago, é levado ao destino de todo escravo que sai sem permissão, ainda que tenha saído na marra por obra de seus amos e senhores, os civilizados.
O cheiro de morte enche o ambiente e ele começa a ficar estressado, mas está faminto, fraco demais para reagir. Grita pelo amo que não pode mais ouví-lo e, ainda que ouvisse, mandaria que calasse para não incomodá-lo.
Tanto trabalho, tanta dedicação, tamanha entrega de vida para quê? Por simplesmente não servir mais aos civilizados foi condenado à morte, sumariamente, sem julgamento, sem defesa, sem sequer um registro de suas culpas. Não se lembra de ter feito absolutamente nada de errado.
Vê alguns corpos sendo retirados de um cômodo e jogados como lixo em uma vala cheia de carvão. Nada de muito diferente do que os nazistas fizeram e chocou até os soldados mais experientes e embrutecidos.
Começa a ter espasmos de desespero, gritar com o que lhe resta de forças, chorar, mas tudo em vão. É jogado como um saco de lixo e trancado com outros. Alguns foram parar lá porque mataram a mando de seus amos, estes impunes e gabando-se de seus novos escravos, outros porque não eram aquilo que pensavam que pudessem ser. Revender? E quem iria querer um escravo que outros não quiseram? Melhor comprar um novo com garantia de procedência e boa saúde.
Ele ouve um motor de Fusca. Tem um lampejo de esperança, um amigo da família tem um Fusca, mas logo percebe o que realmente está acontecendo. O carro que os aliados seqüestraram e usaram contra os nazistas, tornando-se um símbolo da vitória aliada, agora tem um componente usado para um fim pragmaticamente hitleriano. O ambiente começa a se encher de fumaça, todos gritam e choram, chamando por seus donos, pedindo piedade pelo erro que possam ter cometido, mas não cometeram nenhum. O motor acelera e eles se desesperam, minando mais rapidamente as forças e aspirando mais rapidamente os gases tóxicos do petróleo.
Ele cai. Alguns ainda resistem e tentam se manter de pé, em vão, mas ele já está velho e sem forças. Apenas chora. Se lembra das crianças, do trabalho, da família que amava e à qual não sabe o que fez de errado. É só um cão. Cães só fazem o que seus donos mandam, mesmo quando estes não percebem terem dado a ordem.
Uma dor de cabeça infernal o acomete, mas ele não tem forças para reclamar, só sofre até o cérebro apagar e vir a escuridão.
A vida lhe passa como um filme, desde o dia em que foi comprado na loja de animais, todo fofinho e lindinho, o crescimento, a progressiva perda de interesse dos donos até ser abandonado e levado ao centro de zoonozes. Reabilitação? Não, bichos não votam e por isto não estão na pauta dos demagogos.
O cérebro apaga de vez. Então vem uma luz, ela vem toda de um branco capaz de cegar de tão puro, o pega nos braços e o leva para longe daquela gente leviana, que se considera civilizada.
O acaricia com uma ternura que nenhum homem é capaz de dispensar à própria prole, quanto mais a seres pelos quais deveria se responsabilizar, como espécie dominante.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Palavras que se tornaram outras

Estive pensando numa crônica divertidíssima do Luís Fernando Veríssimo (e dessa vez é dele mesmo, garanto!), em que ele brinca com o significado de algumas palavras, entre as quais o verbo "defenestrar".

Graças a Veríssimo, pude tirar uma onda com um professor da faculdade que quis zombar de mim usando o verbo, provavelmente acreditando que eu o desconhecia. Alegou que tinha defenestrado um trabalho meu, cujas correções eu gostaria de ver. Eu respondi, na lata: "Se assim tu o fizeste, caso me fosse possível, defenestrar-te-ia eu." E emendei: "Viu, professor? Fui ainda mais fresca que o sr., não só usei o verbo defenestrar, mas também a mesóclise". Sim, como disse Amélie Poulain, às vezes parece que alguém te sopra a resposta perfeita.

Mas, voltando ao tema, realmente existem palavras que parecem ter outro significado. Algumas porque realmente tinham originalmente um sentido
diferente do que normalmente damos a elas, até que o tempo, a ignorância do termo original ou mesmo a criatividade foram agregando outras funções à palavra, que, em alguns casos, nem é mais usada em sua acepção original.

Cito três exemplos:


Prejuízo, tão atrelado à ideia de dano no nosso português, é uma palavra responsável por um monte de falsos cognatos, por exemplo, em espanhol e inglês. Mas a culpa, por incrível que pareça, não é dos hermanos nem da língua anglo-saxã. É nossa mesma, que esquecemos que "pré" = "anterior" e "juízo" = "julgamento", então "prejuízo = preconceito", como corretamente trazem as línguas anteriormente citadas, o que nossos dicionários mais comuns ignoram solenemente.

Revolução, que hoje associamos a mudanças, em geral bruscas, originalmente significa "re" + "evoluir", termo usado ao movimento dos astros, representava seus ciclos. Mesmo no sentido político, inicialmente também enfocava esse conceito (ciclos, voltar ao estado natural). A palavra passou a mudar e mudar, até que hoje se usa tanto o termo que uma revolução pode não ser tão revolucionária assim. Principalmente se for colocado o termo "verdadeira" junto a ela.

Sinistro hoje pode significar até algo muito bom. Originalmente, significa esquerda, no sentido de orientação geográfica. Por também significar canhoto, acabou agregando o preconceito e o medo do Diabo, que, pela clássica associação (inclusive semântica, em diversas línguas) "direito = certo" gerou seu oposto, "esquerdo/canhoto = errado". Nessa lógica, "Deus = certo", "Diabo = errado"; "Deus = direito", "Diabo = Canhoto", sendo inclusive um dos muitos nomes dados ao Ser-do-Mal. Seguindo esse raciocínio, sinistro acabou sendo associado a tudo que é mau, inclusive acidentes de trânsito. Agora, porque é que acabou significando o oposto do termo original, dizem as más líguas que vem de traduções equivocadas e/ou "moderninhas" feitas a gírias estadunidenses.

Na verdade, as mudanças fazem parte da dinâmica humana, o que, inevitavelmente, se reflete nas palavras. Ainda mais no português, língua tão rica e polissêmica. Assim, citando o clássico poema "O lutador" de Drummond:


Lutar com palavras
É a luta mais vã.
Entanto lutamos
mal rompe a manhã.
São muitas, eu pouco.[...]
Lutar com palavras
parece sem fruto.
Não têm carne e sangue...
Entretanto, luto.[...]
Cerradas as portas,
a luta prossegue
nas ruas do sono. [...]

(Fonte: ANDRADE, Carlos Drummond de. Antologia poética. 17.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1983. p.172-175. )


Que palavras vocês conhecem se parecem ou se tornaram outras?




sexta-feira, 23 de julho de 2010

Urgente! Vista-se!


Pois é, minha gente, o sol que aquecia nossos pais não é o mesmo. Não dá mais para sair incólume de um topless em plena luz do dia, como as rebeldes dos anos 1960 faziam. Alegria de uns, tristeza de outros.

Os meios de comunicação estão cheios de informações ás quais quase ninguém dá o devido valor, câncer de pele e outras bodeguitas dermatológicas se incluem. Aqui um site interessante a respeito. É muito desconfortável admitir que nosso estilo de vida pode ser perigoso, mas se convencer de que não existe não imuniza ninguém. É como dizer que dst só pega em homossexual. Os cromossomos são os mesmos, as doenças que afetam um grupo rondam os outros sem pedir licença. Não é por atacar primeiro a superfície que o câncer de pele seria inofensivo, é câncer como qualquer outro e com esse negócio não se brinca.

Hoje se toma banho de sol até as 10h e após as 16h sem grandes preocupações, aproveitem que depois pode piorar. Não adianta ir à praia e só ficar debaixo do guarda-sol, os raios ultravioletas são refletidos pela areia e vão te assar de baixo para cima. Onde não há praia os vidros dos carros e das lojas fazem o serviço. Não pensem que o ventinho refrescante resolve o problema, ele o mascara, tu se queima sem perceber. Os bandidos não são mais o maior perigo de se andar displicente pelas ruas. A polícia pode correr atrás de um meliante, mas o sol está fora da jurisdição.

Não são só as pessoas, as coisas também sofrem, especialmente as de madeira e plástico. São materiais orgânicos, como nossos corpos, com a desvantagem de não se regenerarem. Por isto é melhor pagar um pouco por uma garagem coberta do que ter que morrer na grana de uma raspagem com repintura do carro. Isto sem falar no painel, que por motivos de custos e segurança é de plástico. Infelizmente a maioria é de plástico bem ordinário. Também as lanternas, que se fossem de vidro tornariam qualquer esbarrão potencialmente letal, os pneus que contém muito látex, pára-choques, enfim. Nem adianta raspar a lataria, que vira pó de ferrugem em três tempos, a radiação ultravioleta aquece e acelera as reações químicas, principalmente de oxidação.

Mas nem tudo está perdido, ainda. Aquelas películas escurecidas que chegaram a ser perseguidas pelas autoridades, além de aumentarem a segurança do vidro também filtram boa parte da radiação. Dependendo da qualidade, dá para tomar banho de sol dentro do carro sem medo. São quase todas feitas de pvc, que é composto 57% de cloro, o que o torna um plástico semi-orgânico. Muito resistente à radiação, mas não imune, então não abusemos.

Também existem tintas bem resistentes, um tanto mais caras, mas também mais duráveis, demoram mais a descascar ou perder a tonalidade. Já é bem mais comum do que há trinta anos ver casas e carros com um lado mais vivo do que o outro. Vernizes com filtros solares já são populares, vale à pena não precisar refazer o revestimento.

Pois o que o ultravioleta faz com a tinta, faz também com a nossa pele, só que em nós dói. Para os que já torraram uma baba comprando tevê digital, para depois descobrir que precisa da antena digital e gastar mais dinheiro com esta, devem ter percebido que muitos artistas são uma tragédia sem a maquiagem. Lembremos que a maioria dos mais famosos mora no litoral ou proximidades. Gente que ganha a vida vendendo sua imagem se parecendo com uma toalha de mesa onde respingaram óleo quente, enquanto aquela moça do balcão, com bem pouco tempo para sair durante o dia, tem uma pele de pêssego, sem gastar os tubos com tratamentos. Esses artistas abusaram do sol. Não adianta tomar banho de protetor solar fator 150 e acreditar que o perigo não existe, é como vestir um colete à prova de balas e se considerar imortal.

Não que se deva abrir mão da praia ou piscina, para os que gostam, mas os dermatologistas já estão carecas de avisar que há horários mais próprios, que sol demais não causa só câncer de pele, também estraga e envelhece mais cedo; rugas, manchas, erupções, espinhas, cravos e outras cousas de nomes complicados que só médico para falar a respeito. Já estão tão cansados de falar, que em breve apelarão para a claque, olhando o paciente com a cara mais blazé do mundo enquanto a gravação roda. Tomar sol na medida certa só faz bem, inclusive para a aparência, mas a medida certa varia muito entre pessoas e cor natural de pele. Não precisa dizer que aquela amiga branquela pode tirar o cavalinho da chuva. Aqui um boletim diário dos índices de radiação ultravioleta na sua região, caso more no Brasil, se não, sorry, consulte o serviço meteorológico do teu país.

A pigmentação não é um recurso estético, é uma resposta da pele à agressão solar. Ficar bronzeado em pouco tempo, portanto, não é prova de saúde, pode ser doença séria. Ganhar cor em uma temporada em uma região ensolarada é muito diferente de se tostar ao sol para entrar na moda. Parecer um tijolo, desculpem, nunca foi bonito. Ficar acanelado pode ser bonito.

Ficar com a cor da canela não é para qualquer um nem combina com qualquer rosto. Primeiro porque é preciso ter uma predisposição genética à boa produção de melanina, ela precisa aparecer rapidamente antes que a pele queime e pareça velha; Segundo porque não é uma cor duradoura em quem não nasceu com ela, um dia de volta à rotina e a tonalidade vai esmaecendo; Terceiro porque é uma cor visualmente agressiva e pesada, é preciso um rosto de traços joviais e suaves para não ficar esteticamente ruim. Um rosto tipicamente europeu com esta cor é geralmente um desastre.

Ao contrário do que muitos pensam, negros não são imunes. Dão um baile de liberdade ao sol, mas também estão sujeitos ao câncer de pele e ao envelhecimento precoce. A sorte deles é terem peles espessas, bem estruturadas, que resistem muito mais antes de perderem o viço. Mas um dia perdem. Então, patota, bloqueador solar para vocês também. Entendeu, Vincié?

O maior equívoco, especialmente no alto verão, é botar as pernas de fora e o busto ao sol em plena luz vespertina. Fiotes, roupa curta refresca à sombra ou se o sol for suave. No caldeirão tropical em que vivemos é quase um suicídio. A evaporação facilitada dá a falsa sensação de frescor, que na verdade é desidratação acelerada. Não só o calor, mas mais uma vez a radiação ultravioleta resseca o corpo, começando pela pele, a tendência é te transformar em um croquete. Não ria, não estou brincando. É muito sério. Na Europa existem relatos de óbitos por causa de desidratação, não pensem que aqui seria diferente, aqui é daí para pior.

Roupa curta tem os mesmos horários que o banho de sol, entre as dez e as dezesseis se usa roupa longa e confortável, preferencialmente de cor clara, recido macio e de mangas. Se tiver manga longa, melhor. O ideal seria voltar à moda dos anos 1940, mas se eu for propor isto, enfiam a mão pelo monitor e me estrangulam, feito desenho animado. Mesmo com roupagem adequada, não se pode dispensar o uso de um bom bloqueador solar. Embora bem menos, a ultravioleta é muito potente e atravessa a maioria dos tecidos, fora que os reflexos de uma cidade a mandam directo para o teu rosto, cabelos, orelhas, enfim, te assam apenas com menos intensidade. A roupa confortável, clara e longa reduz a temperatura, reduzindo os riscos de ressecamento e da antecipação das rugas.

Olhando por este ângulo, a burca até que teria razão de ser, não fossem questões culturais tão explosivamente misturadas às religiosas, ainda mais em alphabetos desprovidos de vogais. Mas aquelas roupas tachadas de caretas, antiquadas, pratrazax, são as melhores para enfrentar o sol, quando de cores claras e fios naturais na composição do tecido. Se for tudo sintético e escuro o tiro sai pela culatra, vai te cozinhar no vapor.

Ah, vamos lá, levantem essas cabeças. Não é o fim do mundo, ainda. Enfrentar a vida nestes tempos bicudos não é impossível. Vamos lá...


  • Principalmente no verão, esqueça os fios totalmente sintéticos, a não ser que queira gastar uma fortuna em tramas especiais aeroespaciais, mas sempre de tecidos bem fechados. Prefira sempre os tons claros, mais para pastél;

  • Com o sol a pino o chapéu deveria voltar à voga, de modo perene, porque os cabelos também são um tipo de plástico biológico, sofrem muito, especialmente os ruivos. Cubra a cabeça o quanto for possível, de quebra a testa também será preservada;

  • Filtro e bloqueador solares devem ser tão comuns e utilizados quanto as maquiagens, dê preferência às que já vêm com algum factor de proteção solar, te custam menos do que um tratamento dermatológico. Se tua pele é oleosa, como a minha, use os em forma de cremes, ou a acne fará a festa e vais se parecer com um ralador de queijo;

  • Não precisa abandonar as roupas curtas. A radiação ultravioleta não é instantânea. Sair ao sol por alguns segundos, apenas atravessar a rua ou descansar na varanda não transforma ninguém em um pimentão. Bom senso, sempre;

  • Vento refresca, mas não bloqueia a luz do sol. Não se iluda com o conforto de uma brisa em pleno verão, é como o morcego que abana enquanto suga;

  • Acordar cedo aumenta o aproveitamento do dia, prolongando o usufruto dos horários salutares. Nem todos podem, por trabalhares e estudarem até mais tarde, mas a maioria pode. Há quando tempo vocês não vêem o sol nascer?

Dá para se levar a vida até consertarmos o estrago que nós fizemos à atmosphera, o que não levará menos de cinqüenta anos se começarmos agora. Só devemos lembrar que os prazeres litorâneos que nossos pais e avós tiveram não se aplicam totalmente a nós, talvez aos nossos netos. Aos que se dispuserem a enfrentar o mundo debaixo de muito pano, eis aqui uma página que encontrei no decorrer deste texto, com modelos de várias décadas.


Não pensem que a natureza é uma inimiga, ela tem seu ciclo e nós, que dependemos e fazemos parte dela, devemos nos adaptar. Adapte-se aos novos tempos.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Ói, ói o trem...

Estava pensando em fazer um post sobre a história dos trens e ferrovias, de como se inserem em vários acontecimentos (de guerras e mortes a esperanças e reencontros), de como a princípio foram criticados por "rasgar a natureza" para, aos poucos, ser associados ao romantismo (principalmente a partir do crescimento das rodovias e da aviação civil); talvez citar nossa histórica deficiência ferroviária, amparada na visão pseudo-modernista de nossos quase sempre despreparados, arrogantes, gananciosos e corruptos governantes ... mas aí pensei melhor e resolvi fazer uma pequena busca com músicas que os citem.


Fuçando, encontrei uma compilação, que me fez repensar tudo de novo. Então, resolvi colocar por tema e também a data da composição ou gravação. Como sempre, privilegio o cancioneiro nacional, com cinco exemplos.

1. Tema: melancolia/barulho do trem: "O Trenzinho do caipira", tocata das Bachianas Brasileiras nº 2, de 1933. Pode até ser muito clichê, mas é lindo, e a letra de Ferreira Gullar é de uma delicadeza ímpar:

Lá vai o trem com o menino/ Lá vai a vida a rodar/ Lá vai ciranda e destino/ Cidade noite a girar/ Lá vai o trem sem destino/ Pro dia novo encontrar/ correndo vai pela terra, vai pela serra, vai pelo mar/ Cantando pela serra do luar/ Correndo entre as estrelas a voar/ No ar, no ar…

2. Tema: despedida e reencontro: "Encontros e depedidas",1985. Milton Nascimento nos mostra que ir e vir fazem parte do mesmo movimento, e ainda foi tema da novela da Nazaré. Quer melhor?

O trem que chega/
É o mesmo trem da
partida/
A hora do encontro/ É também despedida/ A plataforma dessa estação/ É a vida desse meu lugar/ É a vida desse meu lugar/ É a vida ....

3. Tema: romance. Vocês por acaso acham que eu, brega até a alma, ia deixar Seguindo no Trem Azul de fora? Gravada em 1985, fala do grande amor que vem, sabe-se lá porque, num trem azul:

Te dou meu coração/ Queria dar o mundo/ Luar do meu sertão/ Seguindo no trem azul/ Toda vez que for assoviar/ A cor do trem/ É da cor que alguém fizer/ e você sonhar[...]

4. Tema: despedida da terra natal/ misticismo/ dorgas, mano: O Trem das sete, Gravada em 1974, não é a única composição do Toca-Raul que traz o trem na letra, mas é uma das mais conhecidas, tanto que dá título ao post:

Ói, ói o trem/ Vem surgindo detrás das montanhas azuis/ Olhe o trem/ Ói, ói o trem/ Vem trazendo de longe as cinzas do velho néon/ Ói, já é vem/ Fumegando, apitando e chamando os que sabem do trem/ Ói, é o trem/ Não precisa passagem, nem mesmo bagagem no trem[...]


5. Tema: desculpa esfarrapada/música eterna. O Trem das Onze não poderia ficar de fora, né mesmo? Composta em 1961, nasceu eterna. Muito embora seja um cadinho machista, é divertida e acho que todo mundo sabe cantar. E vai inteirinha! Quaiscalingudum!





















Quais, quais, quais, quais, quais, quais,

Quaiscalingudum
Quaiscalingudum
Quaiscalingudum

Não posso ficar
Nem mais um minuto com você
Sinto muito amor
Mas não pode ser
Moro em Jaçanã
Se eu perder esse trem
Que sai agora às onze horas
Só amanhã de manhã

E além disso mulher
Tem outra coisa
Minha mãe não dorme
Enquanto eu não chegar

Sou filho único
Tenho minha casa pra olhar

Bam zam zam zam zam zam
Quaiscalingudum
Quaiscalingudum
Quaiscalingudum

Quaisgudum, tchau!

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Censura no blog alheio é refresco

Desde 1984, quando o presidente Figueiredo virou a página da ditadura no Brasil, que eu não esperava ver esse monstro novamente, a famigerada censura à comunicação pública. Ele até tentou acabar também com o excesso de burocracia, que até hoje só serve para gerar cabides de empregos, quase sempre para incompetentes, como gente que não sabe diferenciar um parafuso-prisioneiro de um pára-brisas e inventa regras estapafúrdias para o campo automotivo.
Pior, eu não esperava ver justo as presumíveis maiores vítimas da censura tentarem ressuscitá-la. E para quê? Conter uma tentativa de golpe? Punir uma incitação à leso-pátria? Não, nada disso. Só por não terem gostado do que leram.
Grupos radicais de esquerda e direita querem censurar os blogs simplesmente por "crime de opinião". Não gostar do que o presidente disser e demonstrar isto em público é se arriscar a ser alvo de ameaças, partidas de pessoas jovens e escoladas, que deveriam ser as primeiras a lembrar do que a história recente nos ensinou. Só o que parece que aprenderam foi usar de dois pesos e duas medidas; dão (quando dão) em milímetros e cobram em polegadas.
Os mesmos que reclamavam de quando seu tempo nos horários eleitorais ou partidários era escasso, hoje usa dos mesmos subterfúgios dos caciques da época para burlar a legislação eleitoral. A diferença é que nos anos 1970/80 não havia uma legislação específica para regulamentar o uso eleitoral da mídia e punir abusos, hoje há e é desrespeitada solenemente, sem que os tais radicais sequer digam "Fazer o quê, é a chefia que está fazendo isso". Mas ai de outro que fizer o mesmo.
Não me surpreenderia se partisse somente dos grupos que enriqueceram às custas de inflação e recessão, estes nunca foram bons e nunca fizeram questão de parecer, apenas repetiam "roubamos, mas fazemos". São simplesmente cínicos. Fazer o mesmo que eles e ainda se dizerem defensores dos interesses do ploretariado é hipocrisia da grossa.
Não são apenas opiniões que rejeitam, piadinhas ou charges, mesmo as mais inocentes e despretensiosas, se tangenciarem seus "líderes", podem render episódios que a massa só acredita existir em países onde há radicalismo religioso. O amigo
Benett que o diga, muitas vezes é atacado por satirizar com extrema competência o presidente em que ele diz abertamente ter votado, mais por falta de opção do que por esperança, diga-se de passagem. Não são sátiras gratuitas, ele só satiriza o ridículo e, convenhamos, faz parecerem engraçadas pessoas que têm seguranças porque não sairiam ilesas de um passeio de peito aberto no meio do povo, é um favor que deveriam aceitar de bom grado.
Na esteira desses revoltadinhos que não querem largar o osso que agarraram, tal como faziam os "pelegos do imperialismo americano que explora nações proletárias", vêm os revoltadinhos que querem o osso de volta. Há um projecto de lei no congresso que transforma o blogueiro em um criminoso presumido. Querem nos responsabilizar pelas asneiras e potenciais calúnias que comentaristas anônimos, ou que dão dados falsos, escreverem nas caixas de comentários. É uma lei do demo mesmo, pois vem justo de radicais a grande maioria das asneiras e ataques muitas vezes gratuitos, que infernizam as caixas de comentário. Mesmo o genial
Laerte, que tem uma coletânea riquíssima de arte em forma de charge, entusiasta da liberdade de expressão e criador da Muriel, teve que passar a moderar para conter a invasão dos radicais recalcados, que estavam se digladiando com os radicais pós-recalcados, em nome da moral e dos bons costumes segundo suas interpretações próprias e dubias.
Eles não fazem questão de saber, ou mesmo ignoram o facto de que a grande maioria dos blogueiros não vive de seu blog. Quase todos só querem dividir algo que acham bom de ser dividido. Blogueiros como eu, que divulgam idéias e abusam das parábolas para tanto, são uma minoria, menor ainda é o número de blogueiros que têm uma renda razoável de suas páginas e podem se dedicar por horas diárias sem medo de negligenciar as despesas da casa.
Imaginem uma garota que é fã da Lady Ga-ga. A fictícia garota enche uma postagem com elogios, dados da agenda da cantora, imagens e vídeos relacionados, nada falando de cantoras nacionais, afinal seria um blog temático. Um dia ela precisa se dedicar às provas e negligencia compulsoriamente o blog, no que um idiota qualquer aproveita para chamar a turma e encher a caixa de comentários com ofensas, ameaças e assédios de toda sorte. Quem tem blog há mais de um ano sabe do que estou falando. A vestibulanda pode pagar multas pesadas pelo que outros, que podem ser filhos dos candidatos a censores, publicaram. A lei não a obrigaria simplesmente a apagar o que foi escrito, a puniria pelo erro de outro. É como multar um repórter pelo que o entrevistado disser. Moderar é um recurso, obrigar o blogueiro a usá-lo não vai sequer reduzir os ataques estúpidos a que ele está sujeito. Se um leitor disser "Cara, eu odeio essa merda que eles chamam de cinema brasileiro" eu não poderei simplesmente apagar o comentário, como nunca apaguei nenhum por contrariar minhas idéias. Podem procurar que vão encontrar alguns que só não pularam no meu pescoço porque não puderam. Por ordem judicial eu apagaria, mas faria um texto extra me desculpando ao mal educado e explicando os motivos em detalhes.
Ainda me pergunto os critérios a serem usados, se para essas pessoas o simples não simpatizar com suas idéias de jerico já é um crime. Eu tenho tendências autoritárias que não são poucas, mas as controlo com rédeas curtas, eu não sou mais adolescente para achar que quem não é da minha turma é meu inimigo.
Para colocar a pretensa lei em prática, deverá haver uma equipe dedicada a procurar infrações e ouvir queixas. Não será apenas mais uma despesa para o erário público, será gente que colocará a opinião alheia sob o jugo dos padrões éticos e morais particulares de alguém. E ofensas reais vindas de radicados no exterior? Vão bloquear o acesso ao provedor do blog no Brasil? Vão obrigar o judiciário de Detroit a punir a livre expressão de um brasileiro legalmente lá estabelecido? Não. Com quem eles não podem, simplesmente xingam, citam seu autor intelectualóide preferido (ou um versículo mal interpretado) e saem com o rabinho preso entre as pernas.
Asseguro que isto seria só o primeiro passo para voltarmos às agruras do Ato Institucional Número Cinco. Pessoas emocionalmente imaturas, que não toleram ser contrariadas, agem pela insaciabilidade da vingança. Não demoraria para os jornais voltarem a publicar poesias e receitas no lugar de notícias que contrariarem seus interesses. Sinais de televisão demorariam vários segundos para serem transmitidos, para viabilizar o trabalho sujo da censura de opinião. Testemunhas? Ai delas.

Tenham certeza de que eu seria transformado em criminoso e teria que me exilar, sem exageros. Eu e muitos amigos com senso crítico activo.
E vejam só, no decorrer do texto me veio uma idéia de burlar legalmente esse absurdo, corrigindo a ortographia me veio a idéia. Simplesmente trocaria o nome por "Palavras da Mica, uma brasileira enlouquecendo Rochester" e mandaria os textos para minha amiga publicar, lá dos Estados Unidos.
Tenho um ocorrido recente para relatar. O blog Planeta Fusca, do amigo Gilhon, saiu do ar na quarta-feira, por um ataque cibernético. Por que? Porque ele não dá a mínima para quem não gosta do que ele publica, que é basicamente assuntos sobre o Fusca e encontro de antigomobilistas e entusiastas. Felizmente está de volta ao ar e recomendo uma visita. Se esses radicais de lanchonete conseguirem seus intentos, algum amigo deles certamente vai conseguir tirá-lo do ar em catáter definitivo, por meio de favores. Como em toda ditadura, que é o que querem que o Brasil volte a ser.
Não gostei da aproximação do presidente às ditaduras, não gostei do modo como tratou uma Secretária de Estado, não gosto do modo como nos mantém atrasados em relação aos outros países na mobilidade eléctrica, não gosto das pessoas que ele colocou no lugar de profissionais competentes em autarquias outrora ilibadas, como os Correios. E presidente brasileiro deveria voar de Embraer. Ou será que Obama concordaria em andar de Rolls Royce?
Tenham, porém, certeza de que as máscaras já estão caindo e nem o povo mais chucro vai dar crédito eterno aos sanguessugas que se juntaram aos ratos. No que depender de canais livres como este, vocês podem expressar seus à vontade descontentamentos desde que não hajam ofensas, no máximo ignoro, nunca revido e aceito sugestões de temas. Porque é com exercícios assim que a democracia fortalece sua musculatura.
Francamente estou em dúvidas quanto ao meu voto para as próximas eleições, mas o não-voto está decidido. Ao contrário do que apregoam, o Brasil não mudou tanto assim, muito menos para a melhor, não para quem deveria mudar.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Como tenho sorte!

Eu sou mesmo uma pessoa de sorte.


Recebi de uma revista uma cartinha simpática, personalizada, com cupons para sorteio e com brindes que ganharia mesmo que não assinasse o periódico. Simpático, não? No cupom, havia três carros que eu poderia ganhar caso assinasse a revista e um número numa linda chave dourada. Junto às fotos dos automóveis, um desses quadrados para raspar. Caso o número coincidisse com o que recebi, seria aquele carro o que eu ganharia no sorteio. Vocês nem acreditam no tamanho da minha sorte! O meu número coincidiu justo com o automóvel mais caro da relação!!! Vou já assinar a revista que me deu tantos bons augúrios!

Verificando meu e-mail, descobri que tenho amigos muito bacanas e ciosos da minha reputação, que conseguiram flagrar a pessoa que amo em fotos comprometedoras. Com medo de que eu estivesse sendo monitorada, tiveram o cuidado de enviar o e-mail como anônimos! Sou mesmo abençoada pela Fortuna. Já-já vou abrir as fotos.

Ainda no meu e-mail, gente! Que grande felicidade. Um grande número de depósitos confirmados em minha conta-corrente de empresas e pessoas que desconheço totalmente. Será que alguém criou uma campanha Adriane Esperança e eu não fiquei sabendo? Não vejo a hora de abrir o arquivo.

E meu correio eletrônico não pára de me dar alegrias. Meus amigos anônimos descobriram o que andaram falando de mim no mundo virtual. Tiveram a delicadeza de salvar as mensagens em arquivos sem nome. É muita discrição! Não se preocupem, queridos, vou verificar com certeza.

Ainda na minha querida caixa virtual, todos os dias há incríveis ofertas de medicamentos e produtos (dia desses eu recebi uma maravilhosa oferta EM RUSSO! Estou ficando famosa!). Mas isso não é nada diante dos bancos em que não tenho conta alguma que vivem confirmando depósitos, empréstimos e me pedindo para atualizar meus dados. É só clicar nos linques! Nem sei porque ainda não fiz isso.

E por telefone, gente? Sou pré-selecionada como cliente preferencial de TODOS os cartões de crédito. Morram de inveja. No celular, chovem mensagens de que ganhei em promoções que nem os jornais e revistas sabem que existem e em outras das quais não participei. Confirmo ainda hoje todos os meus dados a esse pessoal tão atencioso.

Mas tudo começou, acho, quando eu atendi a um telefonema, que ocorreu logo que instalei um aparelho em casa. Acabava de ganhar uma bolsa integral de informática, com descontos especiais para cursos futuros, com todo material didático incluído! Pena que não tinha horários disponíveis para tão maravilhoso presente. Que continuei recebendo todo mês, até que a pobre escola faliu. Deve ser pela incrível bondade deles, não?


Duvido que qualquer pessoa tenha tanta sorte quanto eu.








Esse texto contém altas doses de ironia.


sexta-feira, 9 de julho de 2010

A exemplo do pai


Já sem a fortuna, sem os aliados, sem seguranças, ele entra na sala preparada. Dois guardas presentes garantem que ele não o mate. Não que suas condições físicas ainda o permitam, mas ele já teve um ataque de fúria insana que lhe rendeu a má fama, embora esta o tenha tornado um ídolo do grupo machista que freqüentava. Hoje, porém, a menor alteração de pressão arterial pode terminar em óbito.

O rapaz entra em seu uniforme laranja. Vergonha. Se ainda tivessem algum, não saberiam o que dizer aos amigos. Um metro e meio de prancha do tampo da mesa os separa. Pensa no tempo em que simplesmente sacaria uma pistola, descarregaria o pente e tudo ficaria por isso mesmo. Mas não tem mais armas e já não pode ficar impune, um imenso castigo para quem varou meio século fazendo e desfazendo o que bem quis.

O olha nos olhos pela primeira vez. Durante os trinta anos precedentes simplesmente o assistia de longe, somente dando dinheiro e maus conselhos, para que perpetuasse o poder da família. Vendo que não tem como matar o próprio filho, e mesmo que pudesse seria pego em flagrante delito, solta o único pensamento que lhe vem à mente...

- Por que?

- Porque sim.

- O que você tem contra nós?

- Nada. Foram só negócios, mas deram errado, fazer o quê?

- Você acabou com a fortuna da família, deixou a sua mãe no hospital e só me diz isso?

- Não paga sapo, pôrra!

A situação é extremamente incômoda. Pela primeira vez não pode satisfazer seu desejo de vingança, não naquele momento e nem como quer. A perda do prestígio fez processos desaparecidos ressurgirem do nada, está sob investigação e ninguém quer se comprometer com quem não pode dar garantias. Os guardas inclusive evitam que diga tudo o que quer, seria uma confissão que a Polícia Federal reza para obter. Respira, mede as palavras e segue...

- Eu te ensinei a respeitar a sua família. Te mostrei que deveria preservar a sua casa custasse o que custasse. Te ensinei a ser duro nos negócios, eu sei, afinal todo mundo sabe que gente boazinha passa fome neste mundo.

- Ninguém gosta mesmo de gente boa, só serve pra ser explorada... Dá pra conversar, mas é só.

- É, é verdade. Não que devamos ser monstros...

- Longe disso.

- Mas quem não for esperto é engolido pelos outros.

Uma breve conversa em que eles concordam com praticamente tudo ameniza o clima, mas continua tenso e o médico da penitenciária está de plantão para uma possível ressuscitação...

- Certo. Mas o que você fez passou dos limites. Quem disse que você poderia falsificar minha assinatura para jogar tudo o que tínhamos na especulação financeira, ainda mais em um paraíso fiscal?

- Você. Desde moleque eu te via fazendo isso com os outros, rindo e contando vantagem.

- Mas isso eu fazia com os outros, não com a minha família!

- Ué! Seu irmão não era "família"?

Emudece. Agora se lembra que lesou o irmão mais velho, talvez o único honesto da família e o deixou definhar até morrer em um leito imundo de um hospital público. Não gostava de receber conselhos dele, assim como o filho agora não aceita os seus...

- Era um otário, queria dividir a fortuna em parte iguais até pros bastardos do meu pai. Onde já se viu? Tinha até negros no meio deles. Os interesses maiores da nossa família estavam em perigo pela demência utópica de um visionário.

- Defendeu os interesses da família.

- Sim, claro.

- Família que se resumia a você. Fiz o que você fez. Na verdade fiz até menos, vocês ainda têm uma casa e um supermercado pra viver, o meu tio morreu no Hugo.

- Mas eu sou o seu pai - diz visivelmente enfurecido.

- Negócios, negócios, família à parte. Você me ensinou isso desde cedo.

- Você não pensou nas conseqüências?

- Pensei. Mas o risco compensava e por muito tempo deu certo, mas melou.

- E agora, o que você vai fazer?

- Passar dez anos na cadeia... Dãããããã!

Os guardas se seguram para não caírem na risada. Nunca imaginaram que aquele ogro arrogante e misógino fosse cair em desgraça, menos ainda que presenciariam as cenas que se desenrolam. Alguém cuidou para que as imagens sejam gravadas e transmitidas, para posterior publicação na internet, sem conhecimento formal, mas com plena cooperação informal desde o faxineiro até o juiz, que não quis saber para não se comprometer.

O silêncio dura alguns minutos, o suficiente para os ânimos esfriarem e ele espairecer. Mais lhe dói ter jogado na cara o ônus de tudo o que o filho aprendeu e usou contra a família. Dói reconhecer que é tudo verdade. Não se importaria se fizesse o mesmo com os outros, mas com ele é um absurdo...

- A sua mãe está doente por isso.

- Ela acostuma. E ainda dá pra pagar uma empregada, vai continuar sem fazer nada em casa.

- Você não se importa nem com ela?

- E quem se importa? Nem você, que batia nela toda semana e contava pras suas quengas, falando "Mulher minha eu trato é assim, na tábua". Você não gosta dela, eu não me importo, então ninguém gosta, ela pode morrer que ninguém vai sentir falta.

O antebraço começa a doer. Respira pausadamente até a dor passar. Tem que reconhecer que ensinou tudo aquilo, que só se casou para ficar mais rico. Pretendia transformá-lo em um monstro como ele mesmo, mas ficou pior, ganhou nuances de cinismo que beiram a psicopatia...

- Vai fazer o quê, quando sair daqui? Porque na minha csa você não entra mais.

- Entro, nem que seja pra assaltar.

- Ladrão eu nunca fui!!!

- Foi sim. Ajudava a desviar verba de salário dos funcinários públicos, nos anos setenta, deixando atrasar até seis meses pra depois pagar só um. Se isso não é ser ladrão, então levar coisas da minha casa pra vender é menos ainda. Deixa de ser safado, foi você que me ensinou tudo o que eu fiz e agora tá bancando o inocente!

- Não fala assim comigo!

- Falo. Aliás, saiba que eu nunca matei ninguém, só dei prejuízos materiais.

Se inicia uma discussão entre rivais, que com pai e filho em nada se parecem mais. Toda a retórica ululante e verborrágica é inócua com o rapaz, que aprendeu e superou o mestre. Certo, ficou exactamente como ele queria, só não esperava ser vítima de sua criação...

- O que vai fazer, quando sair daqui?

- Qualquer coisa. Sei trabalhar, posso enriquecer rapidinho de novo. Não tô preocupado.

- Bom ouvir isso. E enquanto está aqui...

- Tô estudando. Já me filiei a um partido político pela internet, saio daqui com diploma e recomeço minha vida.

Ensinou a burlar as regras que não fossem convenientes, a família se tornou uma regra incoveniente e lhe parece que ele aplicará isto na política. Terá um grande futuro no ramo. Se prepara para sair, mas ao lembrar que terá que ir dirigindo e que não será um Mercedes-Benz, toda a raiva volta à tona de uma só vez e o enfarto é fulminante. O médico faz todo o possível, não quer de jeito nenhum que ele morra sem ser condenado pelos crimes que cometeu, mas fica frustrado...

- O desgraçado morreu... Ah, como eu queria acreditar em Deus e ter certeza de que foi pro inferno!

- Morreu mesmo?

- Morreu, filho.

- Uhú! Herdei um supermercado! Posso administrar daqui mesmo!

O corpo é enterrado no mesmo dia, por falta de quem fosse velar, só carregou o caixão quem é pago para isso. Nenhum jornal noticiou e o vídeo foi ao ar. Doze anos depois o rapaz é eleito deputado federal pelo Partido da Moral Ilibada.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Oroboro


A ausência pode não ter feito ruírem as paredes, mas tornaram o silêncio entre elas insuportável. Buscaram forças em si mesmos para manterem a rotina e a casa de pé, sem o quê o retorno não seria possível. A imensidão do imóvel poderia abrigar uma multidão, agora reduzida a dois.

Espanar e conservar os leitos, a mesa, o banco da varanda, a horta que o quintal ainda mantinha, pois era casa antiga, com espaço para pessoas viverem e conviverem. Agora somente quatro mãos para todo o serviço, cansativo, mas capaz de manter a tristeza abaixo do tolerável.
As aventuras necessárias a tantos para a maturidade feriram e acariciaram, formaram os paradoxos aos quais todo gênio está sujeito, mas não se consideravam gênios, sendo expostos a provações às quais não se sentiam preparados. A partida lhes era necessária por se sentirem sufocados e podados naquilo que não conseguiam realizar, no tempo que não lhes era possível disponibilizar. Problemas todos têm, mas os que ficaram admitiam a falha para com os que partiram.
Eram crianças, crianças precisam de atenção que aquelas não conseguiram receber. O arrependimento e a frustração podem ser vilões ou professores, os dois preferiram aprender.



Caminhando no mesmo lugar, sem trégua e sem tempo para pensar na solidão, mantiveram a casa em ordem, bem cuidada, o jardim bem cultivado, enfim, tudo pronto para quando decidissem voltar. Se decidissem voltar.
Os outros, decididos a recomeçar uma vida nova, alguns até magoados pelas expectativas não satisfeitas, iam de casa em casa, empolgados a cada começo e logo desanimados, então pegavam novamente a estrada para nunca mais, sem olhar para trás. O que valeria à pena ver não estava mais ao alcance das vistas, inútil parar e olhar na direção da partida. Sabiam, entretanto, que o ninho deixado era o único feito sob medida e coisa e tal. Ainda que tristes, seguiam em frente. Em círculos. Abrindo uma porta para abandoná-la logo em seguida, jamais satisfeitos.
Vez ou outra alguém ainda pegava o retrato guardado com carinho na mochila, esta já precisando de reparos, aquele já amassado e começando a desbotar. Mas ninguém pensava em voltar.
No mesmo lugar, a idade passou como para todos. A mudinha plantada meses antes da debandada já floria, frondosa e imponente, a abrigar ninhos e um balanço que raramente era usado. As lembranças mais duras eram a da convivência, que esfriara com o acúmulo de obrigações. Destas nenum era culpado, mas também não procuravam um.
Os olhos já não brilhavam e as rugas, antes restritas às expressões intensas, começavam a descansar perenes nas frontes exauridas. Mas a esperança dura e difícil de digerir constituía o alimento, o principal ítem da dieta árdua que adoptaram para resistir à solidão que a distância de tantos gerava. Não cogitavam o adeus ouvido, ninguém é totalmente dono de seu destino se não vive em uma caverna no deserto. O mundo é curvo. Só se pode distanciar até certo ponto, a partir do qual se inicia o retorno sem precisar caminhar pelas mesmas pedras.

Estranhava a vizinhança aquela casa praticamente imutável ao longo dos anos, cujo jardim os mais atentos podiam desenhar sem precisar revê-lo. Os moradores remanescentes, discretos, eram também solícitos e gentis com a comunidade, mas se esquivavam de qualquer pergunta a respeito dos assuntos internos.

Na última curva do horizonte a família se reencontra e reconhece seus integrantes, mas não mais seus rostos, seu cansaço, suas lágrimas. Se lembram daqueles caminhos que outrora usavam para irem à escola, às festas e toda a sorte de venturas que suas juventudes ofereceram, e das quais abriram mão para amadurecerem do modo mais duro.

Passos decididos à casa que ajudaram a erguer, que outrora era fértil em festas, mas das quais o amadurecimento coletivo os afastou e precipitou as buscas. Saíram para procurar o que tinham dentro de si mesmos. Não reconhecem o bairro, mas o caminho ainda é o mesmo. O velho cão já não os esperava e o novato estranhou a movimentação, mas estranhamente não acusou perigo. Saem os dois, guarnecidos por seus óculos, vendo a família de volta.

Todos mudaram, mas são todos os mesmos.



Desculpem o fora de hora, mas foi necessário. Texto exclusivo do blog Talicoisa.

Mentirômetro Talicoiser (TM)

A Talicoisa International Association SA (TM), depois do estrondoso sucesso da exclusiva tecnologia que trouxe a tecla SABS ao mundo, apresenta a vocês com orgulho o incrível Mentirômetro Talicoiser (TM)!


Como você pode observar, ele tem uma escala de cores, muito parecida com o peagâmetro, mas em vez de medir a acidez, nosso medidor detecta a mentira por trás das notícias.

O método é muito simples: pegue uma fita (o nosso aparelho vem com 10 unidades grátis!) e passe sobre o jornal, a TV, a revista, enfim, sobre a fonte da notícia. Quanto mais próximo do vermelho, maior o índice de mentira contido! E você pode encomendar quantas caixas de fitas quiser, com descontos especiais!

Vamos aos exemplos:

1. A Alemanha, assim como todas as seleções multi-campeãs do mundial de ludopédio, está fora do campeonato. A final será decidida entre duas seleções que jamais disputaram uma copa antes. Certamente esse final não foi planejado pela FIFA.
Fita: azul a azul esverdeado . Total de mentira: de 0 a 20%

2. O mercado está nervoso e os índices da bolsa caíram. É hora de investimentos mais conservadores, avaliam os especialistas.
Fita: verde a verde amarelado. Total de mentira: de 20 a 40%.

3. Um filme/música/cantor usa coisas que todo mundo já viu em algum lugar e diz que é uma referência/homenagem/releitura.
Fita: amarelo a laranja. Total de mentira: de 40 a 80%.

4. Um menor assume o produto de roubo/lote de drogas/ as armas apreendidas/ um crime, inclusive assassinato.
Fita: salmão a vermelho-claro. Total de mentira: de 80 a 100%.

Mas a gente acha que nem precisava de fita nesses casos...
E, infelizmente, muito menos nesses...


Mentirômetro Talicoiser (TM): a cor da verdade (R).




P.S. Sim, o arco-íris é uma referência à esperança. Sim, eu sou piegas.



sexta-feira, 2 de julho de 2010

Muito além de Rammstein



Poucas culturas são tão ricas e tão desconhecidas no Brasil quanto a alemã. Decerto que cultura por cá nunca foi prioridade, mas já levo este factor em consideração. Quem conhece este blog desde o começo sabe o quanto prezo o carácter alemão e se lembra do texto (este) que fiz a respeito da pátria germânica, me desmanchando sem disfarces.

Quando se fala em música alemã, brasileiro logo pensa nas bandas folclóricas da oktoberfest ou em Rammstein (
aqui o blog deles). Quando pensa. À parte a compentência inconteste dos roqueiros, não é justo lhes cair sobre os ombros todo o imenso peso de uma cultura que surgiu na Índia e fez surgir os celtas. Pensando nisto, e em atenuar o texto anterior que deixou muita gente de cabelo em pé (impressionáveis) apresento mais um artigo musical. Apresento cinco representantes da música alemã contemporânea que agradarão aos leitores costumeiros.

Ich+Ich (leia-se: ich und ich) - Projecto pop de
Annette Humpe e Adel Tawil, agrada muito quem aprecia o rock dos anos 1980, especialmente quem imagina seus clipes feitos com a tecnologia do século XXI. Destaco as músicas Dämonen e Stark, a primeira com uma métrica excelente, cuja letra consegue ser longa sem ser cansativa, ainda mais com a fala rápida e quebrada dos alemães, a segunda é um tanto romântica e surrealista. Quem prestar atenção nas letras e na melodia, consegue memorizar em pouco tempo, mesmo não falando alemão. A página deles (aqui) é completa, até com fórum e lojinha. Tem cartão internacional e as contas estão em dia? Bom que estejam, ou não entre em "shop".

Rosenstolz - Dupla formada por
AnNa R. and Peter Plate que mescla muito bem o pop e o rock com o erudito, como em Amo Vitam. Esta cantada em latim e alemão, o que não é para qualquer um fazer bem feito. Angst é daquelas músicas que podem facilmente ser a música da vida de alguém, com uma fórmula simples e consagrada que faz ter vontade de abraçar alguém. Simplesmente lindo. A casinha deles na internet, aqui, é de um bom gosto raro.

Juli - Quinteto que pode ser visto como a versão teutônica de Kid Abelha e Os Abóboras Selvagens um pouco mais malvada, capitaneada pela jovem Eva Briegel (
aqui). Am Besten Sein é para se cantar com fôlego e sem preguiça. Também tem toques oitentistas, mais para o limiar com os anos 1990. Característica presente em Warum, que mostra arranjos mais pesados, até certo ponto angustiante, nada que realmente incomode. Característica básica, eles cantam com alegria, aquela de quem escolheu a música para ganhar a vida e não para ter sucesso, este resultado do trabalho e da competência dos garotos. A home page aqui, com atalhos para perfis em redes sociais e tudo mais.

Laith Al-Deen- Quer dançar? Então o som é ele mesmo,
um cantor já amadurecido e ainda com o frescor da juventude na face. Augen segue a receita básica que agrada a garotada eclética, mas com o tempero clássico que os teutões colocam em tudo o que fazem. Não inventam, simplesmente fazem bem feito e não decepcionam nem a mim, que raramente gosto do estilo. Dein Lied se aproxima mais dos anos 1980, é mais para ser ouvida do que dançada, mas ainda assim é dançável, mas face a face. Uma palavra para resumir? Maduro, nada mais. O que pode ser sentido em Mit Mir, com arranjos vocais discretos, breves e muito bem aplicados. É como diz o ditado, "Não inventa, se inspire no oitenta".

Annett Louisan - A princesinha rebelde (home page aqui). Baixinha (para o padrão alemão), estilo camaleônico, jeito delicado e carinha de Lolita. Ela corta e pinta a madeixas sem dó. Tem uma voz muito juvenil e aveludada que envolve e dá vontade de adoptá-la, mas já é balzaquiana da antiga escola. Das Spiel é como uma valsinha pop meiga e singela,como o vídeo clipe, que se pode ouvir a qualquer momento com companhias de qualquer idade, desde que com bom gosto musical. Drück Die 1 é uma musiquinha grudenta e agradável, com humor à flor da peleÉ dela a versão em alemão de Thinker Bell, que executa com maestria e jeito de menina inocente...absolutamente falso. O olhar mostra o quanto é esperta, mas ela convence como criançona, provavelmente é uma. Comparações? Rita Pavone. Toda a melodia inata deste idioma fantástico fica evidente na voz dela. Ataca de sessentista em Sexy Loverboy, que corrói totalmente a aura de inocência de Thinker Bell. Preciso dizer que é das minhas preferidas? Não, ficou claro e inequívoco (downloads do próprio site dela aqui).
É muito assunto para pouco espaço, mas para quem se dispuser a seguir as muitas pistas (links) que deixei aqui, fica fácil encontrar mais. Agora volte ao início e vá dançar.