sexta-feira, 30 de julho de 2010

Crueldade

Quem se importa? Afinal era só um escravo que já não servia seu amo. Foi deixado à própria sorte em qualquer lugar de onde não pudesse voltar. De lá os dominantes foram ao mercado comprar um ou dois escravos novos e mais robustos.
Nunca se importou em comer os restos da casa, comia com satisfação. Se seus amos se alimentavam daquilo é porque era bom. Prato? Não, naquela casa um escravo jamais teve desses luxos.
Cuidados médicos sempre faltaram, exceto quando já se tornava escandaloso demais para a sociedade admitir, então o levavam a qualquer açougueiro, que receitava qualquer porcaria de baixo preço e boa comissão. Mesmo doente trabalhava. Tinha que trabalhar, era uma propriedade. Mas não reclamava.
De serviço vinte e quatro horas por dia, todos os dias do ano durante todos os anos de serviço que prestou àquela casa.
Não sendo ingrato, recebia uns afagos de vez em quando, das crianças, mas só delas. E só enquanto eram crianças. Quando lhes servia de palhaço para brincar e entreter.
O corpo está todo marcado por mordidas de cães ferozes, dos quais defendeu com a vida a família e até seus parentes mais distantes. Uma marca de tiro ainda é evidente no peito, quase empacotava daquela vez. Quase fica paraplégico quando o dono da casa passou com o carro sobre sua perna, então tiveram que levá-lo a um especialista decente, o que lhe custou castigos e reprimendas.
As rondas noturnas eram sua especialidade, seus olhos eram muito mais aguçados do que a média e nenhum intruso lhe passava desapercebido. Calor ou frio, chuva ou sol, não importava sob que condições, o trabalho extenuante jamais cessava. Escravos são para isso mesmo.
Hoje, já velho demais para o gosto daquela gente, com a visão desgastada, musculatura fraca e olhar vago, é levado ao destino de todo escravo que sai sem permissão, ainda que tenha saído na marra por obra de seus amos e senhores, os civilizados.
O cheiro de morte enche o ambiente e ele começa a ficar estressado, mas está faminto, fraco demais para reagir. Grita pelo amo que não pode mais ouví-lo e, ainda que ouvisse, mandaria que calasse para não incomodá-lo.
Tanto trabalho, tanta dedicação, tamanha entrega de vida para quê? Por simplesmente não servir mais aos civilizados foi condenado à morte, sumariamente, sem julgamento, sem defesa, sem sequer um registro de suas culpas. Não se lembra de ter feito absolutamente nada de errado.
Vê alguns corpos sendo retirados de um cômodo e jogados como lixo em uma vala cheia de carvão. Nada de muito diferente do que os nazistas fizeram e chocou até os soldados mais experientes e embrutecidos.
Começa a ter espasmos de desespero, gritar com o que lhe resta de forças, chorar, mas tudo em vão. É jogado como um saco de lixo e trancado com outros. Alguns foram parar lá porque mataram a mando de seus amos, estes impunes e gabando-se de seus novos escravos, outros porque não eram aquilo que pensavam que pudessem ser. Revender? E quem iria querer um escravo que outros não quiseram? Melhor comprar um novo com garantia de procedência e boa saúde.
Ele ouve um motor de Fusca. Tem um lampejo de esperança, um amigo da família tem um Fusca, mas logo percebe o que realmente está acontecendo. O carro que os aliados seqüestraram e usaram contra os nazistas, tornando-se um símbolo da vitória aliada, agora tem um componente usado para um fim pragmaticamente hitleriano. O ambiente começa a se encher de fumaça, todos gritam e choram, chamando por seus donos, pedindo piedade pelo erro que possam ter cometido, mas não cometeram nenhum. O motor acelera e eles se desesperam, minando mais rapidamente as forças e aspirando mais rapidamente os gases tóxicos do petróleo.
Ele cai. Alguns ainda resistem e tentam se manter de pé, em vão, mas ele já está velho e sem forças. Apenas chora. Se lembra das crianças, do trabalho, da família que amava e à qual não sabe o que fez de errado. É só um cão. Cães só fazem o que seus donos mandam, mesmo quando estes não percebem terem dado a ordem.
Uma dor de cabeça infernal o acomete, mas ele não tem forças para reclamar, só sofre até o cérebro apagar e vir a escuridão.
A vida lhe passa como um filme, desde o dia em que foi comprado na loja de animais, todo fofinho e lindinho, o crescimento, a progressiva perda de interesse dos donos até ser abandonado e levado ao centro de zoonozes. Reabilitação? Não, bichos não votam e por isto não estão na pauta dos demagogos.
O cérebro apaga de vez. Então vem uma luz, ela vem toda de um branco capaz de cegar de tão puro, o pega nos braços e o leva para longe daquela gente leviana, que se considera civilizada.
O acaricia com uma ternura que nenhum homem é capaz de dispensar à própria prole, quanto mais a seres pelos quais deveria se responsabilizar, como espécie dominante.

3 comentários:

Adriane Schroeder disse...

Que lindo, Nanael!!!
Fez lembrar a morte da cachorrinha Baleia, em Vidas Secas.
Ou seja... lágrimas.
Amo os animais, todos. Só a espécie sapiesn que consegue me fazer passar vergonha.

Nanael Soubaim disse...

Escrever foi rápido, elaborar o texto é que foi um parto.

Adriane Schroeder disse...

Mas foi um lindo texto que trouxeste à luz....