Já sem a fortuna, sem os aliados, sem seguranças, ele entra na sala preparada. Dois guardas presentes garantem que ele não o mate. Não que suas condições físicas ainda o permitam, mas ele já teve um ataque de fúria insana que lhe rendeu a má fama, embora esta o tenha tornado um ídolo do grupo machista que freqüentava. Hoje, porém, a menor alteração de pressão arterial pode terminar em óbito.
O rapaz entra em seu uniforme laranja. Vergonha. Se ainda tivessem algum, não saberiam o que dizer aos amigos. Um metro e meio de prancha do tampo da mesa os separa. Pensa no tempo em que simplesmente sacaria uma pistola, descarregaria o pente e tudo ficaria por isso mesmo. Mas não tem mais armas e já não pode ficar impune, um imenso castigo para quem varou meio século fazendo e desfazendo o que bem quis.
O olha nos olhos pela primeira vez. Durante os trinta anos precedentes simplesmente o assistia de longe, somente dando dinheiro e maus conselhos, para que perpetuasse o poder da família. Vendo que não tem como matar o próprio filho, e mesmo que pudesse seria pego em flagrante delito, solta o único pensamento que lhe vem à mente...
- Por que?
- Porque sim.
- O que você tem contra nós?
- Nada. Foram só negócios, mas deram errado, fazer o quê?
- Você acabou com a fortuna da família, deixou a sua mãe no hospital e só me diz isso?
- Não paga sapo, pôrra!
A situação é extremamente incômoda. Pela primeira vez não pode satisfazer seu desejo de vingança, não naquele momento e nem como quer. A perda do prestígio fez processos desaparecidos ressurgirem do nada, está sob investigação e ninguém quer se comprometer com quem não pode dar garantias. Os guardas inclusive evitam que diga tudo o que quer, seria uma confissão que a Polícia Federal reza para obter. Respira, mede as palavras e segue...
- Eu te ensinei a respeitar a sua família. Te mostrei que deveria preservar a sua casa custasse o que custasse. Te ensinei a ser duro nos negócios, eu sei, afinal todo mundo sabe que gente boazinha passa fome neste mundo.
- Ninguém gosta mesmo de gente boa, só serve pra ser explorada... Dá pra conversar, mas é só.
- É, é verdade. Não que devamos ser monstros...
- Longe disso.
- Mas quem não for esperto é engolido pelos outros.
Uma breve conversa em que eles concordam com praticamente tudo ameniza o clima, mas continua tenso e o médico da penitenciária está de plantão para uma possível ressuscitação...
- Certo. Mas o que você fez passou dos limites. Quem disse que você poderia falsificar minha assinatura para jogar tudo o que tínhamos na especulação financeira, ainda mais em um paraíso fiscal?
- Você. Desde moleque eu te via fazendo isso com os outros, rindo e contando vantagem.
- Mas isso eu fazia com os outros, não com a minha família!
- Ué! Seu irmão não era "família"?
Emudece. Agora se lembra que lesou o irmão mais velho, talvez o único honesto da família e o deixou definhar até morrer em um leito imundo de um hospital público. Não gostava de receber conselhos dele, assim como o filho agora não aceita os seus...
- Era um otário, queria dividir a fortuna em parte iguais até pros bastardos do meu pai. Onde já se viu? Tinha até negros no meio deles. Os interesses maiores da nossa família estavam em perigo pela demência utópica de um visionário.
- Defendeu os interesses da família.
- Sim, claro.
- Família que se resumia a você. Fiz o que você fez. Na verdade fiz até menos, vocês ainda têm uma casa e um supermercado pra viver, o meu tio morreu no Hugo.
- Mas eu sou o seu pai - diz visivelmente enfurecido.
- Negócios, negócios, família à parte. Você me ensinou isso desde cedo.
- Você não pensou nas conseqüências?
- Pensei. Mas o risco compensava e por muito tempo deu certo, mas melou.
- E agora, o que você vai fazer?
- Passar dez anos na cadeia... Dãããããã!
Os guardas se seguram para não caírem na risada. Nunca imaginaram que aquele ogro arrogante e misógino fosse cair em desgraça, menos ainda que presenciariam as cenas que se desenrolam. Alguém cuidou para que as imagens sejam gravadas e transmitidas, para posterior publicação na internet, sem conhecimento formal, mas com plena cooperação informal desde o faxineiro até o juiz, que não quis saber para não se comprometer.
O silêncio dura alguns minutos, o suficiente para os ânimos esfriarem e ele espairecer. Mais lhe dói ter jogado na cara o ônus de tudo o que o filho aprendeu e usou contra a família. Dói reconhecer que é tudo verdade. Não se importaria se fizesse o mesmo com os outros, mas com ele é um absurdo...
- A sua mãe está doente por isso.
- Ela acostuma. E ainda dá pra pagar uma empregada, vai continuar sem fazer nada em casa.
- Você não se importa nem com ela?
- E quem se importa? Nem você, que batia nela toda semana e contava pras suas quengas, falando "Mulher minha eu trato é assim, na tábua". Você não gosta dela, eu não me importo, então ninguém gosta, ela pode morrer que ninguém vai sentir falta.
O antebraço começa a doer. Respira pausadamente até a dor passar. Tem que reconhecer que ensinou tudo aquilo, que só se casou para ficar mais rico. Pretendia transformá-lo em um monstro como ele mesmo, mas ficou pior, ganhou nuances de cinismo que beiram a psicopatia...
- Vai fazer o quê, quando sair daqui? Porque na minha csa você não entra mais.
- Entro, nem que seja pra assaltar.
- Ladrão eu nunca fui!!!
- Foi sim. Ajudava a desviar verba de salário dos funcinários públicos, nos anos setenta, deixando atrasar até seis meses pra depois pagar só um. Se isso não é ser ladrão, então levar coisas da minha casa pra vender é menos ainda. Deixa de ser safado, foi você que me ensinou tudo o que eu fiz e agora tá bancando o inocente!
- Não fala assim comigo!
- Falo. Aliás, saiba que eu nunca matei ninguém, só dei prejuízos materiais.
Se inicia uma discussão entre rivais, que com pai e filho em nada se parecem mais. Toda a retórica ululante e verborrágica é inócua com o rapaz, que aprendeu e superou o mestre. Certo, ficou exactamente como ele queria, só não esperava ser vítima de sua criação...
- O que vai fazer, quando sair daqui?
- Qualquer coisa. Sei trabalhar, posso enriquecer rapidinho de novo. Não tô preocupado.
- Bom ouvir isso. E enquanto está aqui...
- Tô estudando. Já me filiei a um partido político pela internet, saio daqui com diploma e recomeço minha vida.
Ensinou a burlar as regras que não fossem convenientes, a família se tornou uma regra incoveniente e lhe parece que ele aplicará isto na política. Terá um grande futuro no ramo. Se prepara para sair, mas ao lembrar que terá que ir dirigindo e que não será um Mercedes-Benz, toda a raiva volta à tona de uma só vez e o enfarto é fulminante. O médico faz todo o possível, não quer de jeito nenhum que ele morra sem ser condenado pelos crimes que cometeu, mas fica frustrado...
- O desgraçado morreu... Ah, como eu queria acreditar em Deus e ter certeza de que foi pro inferno!
- Morreu mesmo?
- Morreu, filho.
- Uhú! Herdei um supermercado! Posso administrar daqui mesmo!
O corpo é enterrado no mesmo dia, por falta de quem fosse velar, só carregou o caixão quem é pago para isso. Nenhum jornal noticiou e o vídeo foi ao ar. Doze anos depois o rapaz é eleito deputado federal pelo Partido da Moral Ilibada.
3 comentários:
Adorei o final.
"Doze anos depois, o rapaz é eleito pelo Partido da Moral Ilibada".
Fabuloso, Nanael!
Qualquer semelhança com a vida real não é mera coincidência, já trabalhei com política e Deus me livre de precisar fazê-lo de novo.
In any case.
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