quinta-feira, 23 de agosto de 2018

Dead Train in the rain VII

    Esperança e desespero.
    A primeira apunhalada da vida, uma pessoa jamais esquece.


Há três anos sem um luto, Naomi ajuda a filha a preparar o aniversário de quatro anos da neta, ainda a única. Fester não (...) faz questão de colocar alguém para sofrer neste mundo estúpido. Fazem tudo de modo que as crianças não percebam. Para elas, será apenas uma surpresa depois da aula, “se fizerem por merecer”. Quando os outros chegam, é hora de Nancy tomar as rédeas e comandar a preparação. Os pais dos outros alunos também ajudam.

Richard (...) se empenha em dar os toques finais no presente feito para a filha. Construiu ele mesmo um ferrorama gigantesco, que montará na sala. A locomotiva é uma réplica das também gigantescas e aerodinâmicas steamliners dos anos trinta e quarenta, que assombraram o mundo com velocidades de até 125 milhas por hora. Bonecas? Sim, ela vai ganhar dos convidados, ele tem certeza disso (...) Passou um ano inteiro dedicado ao projecto, depois que viu a menina improvisando carrinhos com caixas de sapatos, onde colocava suas bonecas para dirigir. Desde que ela começou a cantar “Dead train in the rain” em vez das musiquinhas banais de crianças, teve certeza de que tinha um pequeno gênio em casa. Orgulhoso (...) mas com proporcional preocupação, sabe bem o que acontece com gênios neste mundo idiota, especialmente se tiverem vaginas. Estas transformam o mérito em golpe de sorte, aos olhos da sociedade. Embora saiba de estrelas de Hollywood com alto quociente intelectual, elas só são admiradas por suas plásticas.

Conclui os últimos testes e, dando a volta por fora, para Patrícia não ver, leva as peças à sala, para montá-las rapidamente e fazer a surpresa, assim que todos forem chamados para o “lanchinho” que prometeram.

Quando fica sério, Richard é taciturno, compenetrado como um lobo, mas quando decide brincar é o moleque em pessoa, pode ser comparado a Pã. Veste um fraque bordô e põe uma cartola azul teal, para recepcionar as crianças. Nenhuma pintura, sua cara de deboche é garantia suficiente de risos aos borbotões.

Terminada a aula, Naomi manda todo mundo ir lavar as mãos na lavanderia, para não estragarem a surpresa. A casa é simples, mas muito ampla, de madeira boa e com boas bitolas, construída no início do século, pouco antes de Sunshadow se tornar formalmente uma cidade, em vez de apenas um distrito de Summerfields. Foi comprada por uma ninharia, já que ninguém dá um centavo para morar em uma cidade que só tem acesso por um desvio, e a ele encerra.

Assim que Enzo dá o sinal, da janela do quarto do casal, ela coloca as crianças em fila indiana, com a neta por último. Cada mãe pega seu petiz (...) para que não se denuncie a surpresa à aniversariante. Assim que a menina chega ao umbral da porta, Nancy liga as luzes, que também acionam o trenzinho que apita e imita ruído de trem a vapor, e Richard faz das suas...

- Respeitável público! Apresentamos o show principal desta tarde! A genial, a fenomenal, a estratosférica, a bonitinha e fofinha Miss Patrícia Petty Gardner!

David coloca um disco de sua big band preferida e a menina adentra sob aplausos, absorta e encantada, naquela sala colorida, iluminada, repleta de gente amistosa e cheia de pacotes bonitos, além do trenzinho enorme se deslocando pelas paredes, nos trilhos suspensos em vários níveis. Aqueles olhinhos verdes brilham como nunca, e sua dona dispara para seu fantasiado pai.

Sabem esses dias que ficam na memória de uma pessoa por toda a vida? Que contribuem para formar seu caráter e sua capacidade de se relacionar com o mundo? Patrícia teve um deles.

&

A vingança dos racistas recai sobre o traidor da raça ariana. Richard teve tempo para tirar a família, mas Naomi, sem saber que a neta já estava salva, entrou desesperada e agora agoniza na casa em chamas. Nancy e Patrícia se desesperam com os gritos de dor da matriarca, que logo cessam, então elas é que gritam enlouquecidas, se abraçando e se desmanchando em lágrimas. Richard tem seu ateísmo consolidado naquele momento.

O cenário de filme de terror não abala. Abala participar do velório da que foi a moradora mais bem quista de Sunshadow. Apesar da idade, ainda era uma mulher bonita, mais ainda quando estava com as crianças, que choram copiosamente. Os Petty Gardner e Fester já esgotaram sua cota de lágrimas para o dia, permanecem taciturnos, silentes. Richard tem mais do que luto no olhar, tem ódio, tem uma raiva contida de religiões e sua “afinidade mórbida com quem produz holocaustos em nome de uma lenda imbecil” que ele não engole. Mais lhe dói testemunhar o sofrimento da família, especialmente de sua pequena jóia.

Chegam ao túmulo. O pastor (...) Se limita a lamentar a perda e encomendar a alma de Naomi. Ele também chora por dentro, ela foi uma paixão proibida que se recusou a deixar o noivo por sua causa. Sente-se culpado pelas tentativas da juventude, sente-se (...) ainda mais culpado por ser racista (...) sente-se pecador demais para merecer o reino dos céus, talvez por isso se esmere tanto em converter e guiar as pessoas pelo caminho da libertação, às vezes com empenho excessivo. Queria chorar por fora, mas não quer dar bandeira, ainda mais diante daquelas que poderiam ter sido sua filha e sua neta. Enquanto ora, cabisbaixo e em uma ladainha quase surda, recita “Obrigado por me livrar de um pecado, meu amor, me perdoe” na esperança de que ninguém ouça. Patrícia ouve. A avó a treinou em tempo integral, tem ouvido absoluto e discerne muito bem a pior dicção, mas por hoje a menina de oito anos não vai se preocupar com isso. Precisa confortar sua mãe, que tem o mesmo pensamento em relação ao rebento.

Só se salvou o que estava no galpão da oficina, posta a cinco metros da casa para não incomodar com seus ruídos (...) Se lembra quando, no último aniversário, ela lhe deu a última lição de vida...

- Mas eu não quero que você morra! Não quero perder você!

- Patrícia, ouça o que eu vou te dizer (...) O que eu sou hoje, o que sofro e do que usufruo hoje, tudo foi fruto de minhas escolhas, tudo derivou de minha estrita responsabilidade. No dia em que eu me for, eu quero ter a certeza de que você continuará com sua vida, não vou morrer sossegada se acreditar que não vai lutar por seus sonhos, não posso ter paz se souber que você vai se acomodar e se moldar ao que os outros querem que você seja. Sob hipótese alguma existirá céu para mim, se você cair na armadilha de ser feliz na medida do possível. Eu acredito em vidas futuras, mas tenho os pés no chão para saber que esta oportunidade, se você perder, nunca mais vai recuperar. Se eu, quando desencarnar, tiver concluído sua educação básica a contento, e você tem correspondido, eu vou feliz. Ainda que não possa te ver de novo, minha parte mais preciosa vai te acompanhar pela sua vida inteira.

- “Desencarnar”?

- Embora eu freqüente a igreja, como luterana, eu sigo a philosophia kardecista. Desencarnar, no kardecismo, é abandonar definitivamente o corpo (...) Um dia vai aparecer alguém para te explicar melhor, se eu não tiver tempo. O importante, meu amor, é que você seja a melhor Patrícia que puder ser. Não tente ser melhor do que o outro, porque ele pode se revelar um medíocre com pompa intelectual, e até uma lesma é melhor do que esses tipos. Seja você. Aprenda a se amar, não por causa de suas qualidades, porque isso é condicionar o amor. Se ame apesar de seus defeitos. Se amando, você saberá amar o próximo. Amando o próximo, em vez de o querer para sua estante, você saberá se desapegar e deixa-lo ir, como eu, quando for a minha hora. Se você me ama mesmo (...) você vai chorar quando eu for, mas só porque não poderá mais conviver comigo. Saudade dói mesmo. Mas depois vai passar. Sabendo que eu ficarei triste em te ver triste, você vai se esforçar em ter de mim o que eu te dei.

- Eu não quero te perder...

- Eu nunca fui sua, Patrícia. Sou sua avó, não sua boneca. Você não pode me perder porque não tem minha posse. E se não tem minha posse, pense bem, ainda que eu me vá, você nunca vai me perder. O que eu te passei até hoje, foi mais do que consegui passar à sua mãe durante toda a vida (...) Lembre-se sempre, Patrícia Petty Gardner, você nunca vai me perder. Você me ama, vai me deixar ir embora, e indo eu nunca vou sair do seu lado. O que eu te ensinei é o meu pedaço que nunca vai sair de você, e que nos ligará para sempre. Saudades doem, mas sabendo cuidar delas, elas também afagam. Lembre-se sempre disso, eu te amo.

A menina se lembra de cada palavra, cada expressão daquele rosto lindo e meigo, de cada movimento daqueles olhos austeros, mas também doces. Volta a lacrimejar, mas sorri...
- Também te amo, vovó. Obrigada.

0 comentários: