sábado, 18 de agosto de 2018

Dead Train in the rain III

    Mais um trecho da viagem que vai durar mais do que vocês imaginam, por isso a cada estação a despensa do trem é reabastecida. Isto não é um conto de aventuras, embora as tenha, é uma história de vidas inteiras.


Depois que os militares saíram, elas ainda ficaram um bom tempo se consolando sem saber direito quem a quem. Fester, irmão caçula, preferiu ficar no quintal, para ver seu mundo desabando sem que os outros o vissem chorando (...)
Nancy liga para Richard, seu namorado. Ele também perdeu o pai, além do tio que lhe ensinou o ofício de mecânico, ouviu seu grito a poucas casas de distância. O garoto está descrente do futuro, não só por causa do duplo luto. Começou a estudar e trabalhar muito cedo, apenas pelo prazer de ser útil, imitando seu herói paterno. Sua mãe lhe disse “Deus o trará de volta”, no que pensou se seu pai era tão melhor do que os outros, para ter esse privilégio. Ele consegue consolá-la, mas não com palavras de consolo propriamente ditas, lhe diz que não há escolha, que seguir em frente é o único caminho possível...
- Mas eu estou perdida!
- Eu também. Está escuro, não sei o que existe lá na frente, mas sei o que existe lá atrás e não quero ficar lá. Ainda se pudéssemos trazê-los de volta... mas não podemos! Não vamos voltar no tempo se deixarmos de viver nossas vidas...
A convence a ser forte, depois que passar o pior do luto. Ele está em uma situação delicada porque precisa consolar mãe, irmã, tia e toda a família da namorada, precisa ser forte, mas por dentro quer colo. Não só isso, ainda terá o ônus de assumir precocemente a responsabilidade financeira por sua família e esquecer os próprios sonhos.
Naquele ano o natal não teve luzes. A cidade, pequena, tinha perdido mil de seus habitantes para a guerra. Não havia uma alma em Sunshadow que não amargasse luto, quer em família, quer por proximidade e amizade. Algumas crianças ainda colavam os rostos nas janelas, na vã esperança de que tivessem mentido ou se enganado, que veriam seus pais chegando no meio da neve, com as mãos cheias de presentes, com o típico sorriso cínico dos cidadãos locais. Ninguém apareceu.
A cidade mais esquecida de Michigan agora era também a mais triste. Eles sempre contaram só consigo, já que o Estado e Washington nunca priorizaram uma cidade que parece não ter futuro, de estar sempre à beira da extinção. Mas na hora de ir às armas, foi uma das com perda proporcional mais cara.
Por esse desprezo explícito ainda existe o pacto de proteção mútua entre os nativos, que chegam a cuidar das casas desocupadas (...) não querem que o ar de cidade-fantasma se repita na sua. A desvalorização dos imóveis é o de menos para eles, querem manter a dignidade de Sunshadow, como a de seus habitantes. Sabem de cidades que desapareceram ou estão em vias de extinção, por falta de habitantes. Não querem que seu lar tenha o mesmo destino, mas a taxa de natalidade tem sido perversa.
Com o fim da guerra os Estados Unidos entram em uma euforia inédita. Apesar da União Soviética, ninguém contesta sua liderança, o que reforça o clima interno festivo. Entretanto, lugares como a pequena Sunshadow só sentem o amargor aumentar. Nenhum de seus filhos voltou. Nenhum. Piora o facto de nenhuma cidade vizinha dar valor ao sacrifício que aquela gente esquecida ofereceu. Poderia ser, de então em diante, a cidade dos mil heróis, mas aos olhos do Estado continuava a ser a desprezada Vai Quem Quer; Pequena demais, sem qualquer atrativo, com uma arrecadação medíocre e sem expressividade regional; além de tradicional bode expiatório da região.
A ferrovia é desactivada poucos meses depois, por falta de demanda, tirando a única fonte confiável de recursos para a cidade. Para muita gente, Sunshadow não duraria muito mais tempo, se tornaria uma cidade fantasma como tantas outras pelo país. Os cidadãos, porém, tinham outros planos, ainda que ficassem conhecidos como mulas teimosas.

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