sábado, 1 de setembro de 2018

Dead Train in the rain XVII

    Estação dezessete. O mundo é rude e não perde a chance de tirar as esperanças de alguém, mas com nossos amigos ele falhou. Peguem sua teimosia e embarquem, o trem já vai partir.


Todos a bordo! Um GMC Coach com motor diesel marítimo, devidamente adaptado por Richard, aguarda os pré-astros da música para sua primeira turnê conjunta. O ônibus tem lugar para oito passageiros, atrás dos bancos há um dormitório, uma cozinha minúscula e um pequeno banheiro. Foi pintado de preto em baixo e verde acima da linha de cintura, as cores da banda. Há uma pequena comoção, a cidade inteira comparece às seis da manhã para se despedir dos garotos. Os bagageiros do Coach ficam lotados de mantimentos, material para primeiros socorros, cobertores, productos de higiene pessoal e filme, muito filme photográphico (...) Cada um leva sua câmera.

Sete horas, a porta se fecha e o ônibus parte. Pega rapidamente a rodovia e ruma para New York City. Mas antes uma visita a Cadillac, onde Richard entrega um compressor que fez de próprio punho, pelo qual recebe e então retomam o caminho...

- Agora que estamos a sós, posso contar uma coisa para vocês. Mr. Fischer me pediu para experimentar a carreira como técnico em competições de arrancada. Aquele foi o terceiro compressor que entreguei.

- Mamãe sabe?

- Vai saber, quando vir o saldo da nossa conta bancária (...) Esses sopradores são peças de muita precisão e podem destruir um motor, se mal regulados, esperei o primeiro completar um mês de uso, para aceitar a segunda encomenda. Na volta eu meto a cara no projecto e a grana começa a entrar de verdade.

A conversa se mantém em alto nível, animada, nem percebem o tempo passar e já chegam a Lansing (...) Ao contrário do que muitos pensam, inclusive alguns americanos, é esta a capital de Michigan. Todos já olham a população com olhos de profissionais da música, estão afinadíssimos. Alguém reconhece Richard, o cumprimenta e é apresentado à trupe, que ele diz apenas estar levando para conhecer a vida longe do conforto de suas pacatas cidades. O amigo aprova a idéia, diz que todos os pais deveriam fazer essa apresentação assistida aos filhos. Conta a história de um sobrinho que conheceu o mundo ainda cedo, por conta própria e de modo torto, cuja missa de sétimo dia foi tão dolorosa e repleta de culpa quanto seu sepultamento. Ele dá alguns detalhes e Robert começa a cutucar ritmicamente o peito, com os dedos indicador e médio, como se estivesse compondo uma melodia. Ronald o acompanha, discretamente. São convidados a um lanche.

A viagem começou muito bem, os seis discutem o ritmo que nasceu (...) Renata anota tudo em um caderninho, devidamente cifrado, com referências e detalhes do que gerou a música. São chamados à conversa, o anfitrião ainda não conhecia os garotos.

O ônibus parte (...) para Detroit. Relembram as experiências de suas viagens em família, que suscitam outras lembranças e algumas lambanças. Mesmo com mais de dez anos de uso, o veículo desliza como um Cadillac pela estrada. Ele foi completamente desmontado e aprimorado. Coisa que a linha de montagem seriada não permite, por questão de custos. Ou pensam que é simples parar uma linha de montagem para agregar detalhes e sofisticação? Sai mais barato fazer outra linha só para versões mais caras. Há, por exemplo, um motor eléctrico de 50hp no eixo dianteiro, para ajudar nas arrancadas, acelerações e regenerar as frenagens, inspirado no pioneiro Lohner Porsche, de fins do século XIX. Ter conhecido o Kilowatt de Fischer, o ajudou a se inspirar. Ao contrário do que acontece no Brasil, segundo soube por Renato, na América é fácil e barato conseguir peças e insumos.

Em Detroit eles vão ao estacionamento com que foi combinada a pernoite, depois saem para conhecer o museu de arte moderna. A cidade é pujante, a indústria metalúrgica lhe garante uma saúde financeira muito sólida (...) Richard ficou sabendo das Drag Races que há na cidade, pelos funcionários do estacionamento. Quer conhecê-las. Quando for época, também o Detroit Motor Show. Quer entrar de cabeça nesse ramo, mas sem negligenciar seus pupilos.

Acontece um incidente e Richard novamente para na delegacia, desta vez por uma tentativa de assalto. Ele levou um tiro de raspão, mas dominou os dois meliantes antes que ameaçassem os garotos, principalmente as garotas. Patrícia faz um curativo no pai (...) O chefe de polícia pergunta, vendo um negro entre eles, o que esses garotos estão fazendo nas ruas, e o mecânico explica, não tudo, mas bastante e a contento...

- Deixe eu ver, por gentileza... Aham... Sim, certo, parece tudo em ordem, senhor Gardner. Eu lamento muito que seu primeiro dia em Detroit tenha sido marcado por um incidente tão desagradável!

- Ah, tudo bem. Essa gente brota feito erva daninha em todos os lugares. Não fosse aqui, seria em New York, Los Angeles, qualquer lugar do mundo.

- Curativo pronto.

- Obrigado, filha. Ela cuida de mim melhor do que eu dela. Aliás, ela cuida da gente melhor do que eu deles. Até do conde.

Aponta para Ronald e causa espanto. O rapazote tem um porte altivo, quase arrogante, consegue se manter alinhado sem esforço. Ronald Julius Jean Patrick Marie Leon Denis Goulart Delizard Solei De Champs Elisée Roi Louis Van Provence Lumiére de Canard Noir de Savoir conversa um pouco com o bacharel e impressiona, não só pelo tamanho do nome, também pela vastidão cultural que herdou da família.

Saem com qualquer vestígio de má impressão debelado. Até porque foram preparados para encontrar isso (...) Seguem com o dia de folga, há coisas a conhecer, incluindo potenciais fãs.

Retomam a estrada meia hora após o desjejum, com tanque cheio e dois filmes a menos (...) nada foi photographado sem a presença de pelo menos um deles na imagem, tudo já visando registros para a carreira. Continuam clicando, sempre que aparece algo interessante na paisagem. Detroit, apesar do incidente, deixou uma boa impressão. Sobra dinheiro para a cultura e ela é prestigiada. Entretanto, viram uma quantidade considerável de carros importados, inclusive  Volkswagens como o de Nancy. Esse dinheiro sobrando pode ser um tiro pela culatra.

Entram em Ohio. Agora só param e descansam em Cleveland. Decidem alguns detalhes da viagem pelo caminho, inclusive que os filmes serão revelados em New York, com duplicatas a serem enviadas por correio a Sunshadow. Onde, no momento, a jovem Nancy distribui as notícias que já teve por telephone.

Um acidente e a viagem é interrompida. Um caminhão Studebaker 1950 foi abalroado pelo ônibus, saindo do posto de combustível. O motorista (...) subestimou a carga de sucata. Ninguém teve ferimentos graves, Patrícia cuida de contar isso à mãe antes que a imprensa local chegue. E chega rápido, estão a menos de cinqüenta milhas de New York. Renata olha atentamente para o caminhoneiro magricela, está vendo sombras ao seu redor. Relata a Patrícia assim que ela desliga o telephone...

- Sombras? Como assim?

- Ele está cercado por uma legião de trevosos. Bêbados, em sua maioria. Estão com pressa, tentando esconder algum mal feito.

- Isso explicaria ele não ter calculado direito a manobra, e sua agressividade também. Vou avisar o meu pai.

Enquanto a polícia tenta colher dados, o caminhoneiro tenta de todo jeito dar o assunto por encerrado (...) O policial estranha a pressa, troca olhares com o repórter e com Richard, que se prontifica a cutucar o leopardo...

- Por que essa pressa?

- Estou atrasado! Tenho muito o que fazer! Não é da sua conta, cuida da sua vida!

- Bêbado você não está, mas tá muito paranoico!

Ronald vai até o caminhão, ver se encontra algo estranho. No noticiário da tarde, o destaque é “Homem mata a própria filha na prensa do ferro velho e tenta esconder o corpo”. O pequeno conde recebeu sua primeira ameaça de morte, com altíssimo viés racista. O assassino chegou a puxar a arma e apontar para sua cabeça, até Richard mostrar para que deveria ser usada a força bruta. Dos dois tiros, um pegou de raspão, na face esquerda do rapazote. Aquelas revistinhas de detetives, que lhes pareciam tão absurdas há até um ano, começam a ser levadas a sério.

Richard e Patrícia consertam o que podem, comprando algumas peças no posto mesmo (...) se despedem do repórter, que ajudou bastante a encontrar um lugar seguro para os reparos pesados, mas antes ele dá um conselho...

- Senhor Gardner...

- Richard. Pode me tratar por Richard.

- Certo, pode me chamar de Matthew. Richard, eu vi que vocês se prepararam bem, mas tenho que dar um conselho. Fiquem de olhos bem abertos. A América ainda não é um país tão hospitaleiro quanto se pensa, nem com o próprio americano. Eu admiro muito quem enfrenta a morte com dignidade, o garoto negro se portou como um herói, mas heróis também morrem. Quando virem a cor da pele dele, o bom coração do público vai endurecer um pouco e todos se perguntarão se ele não provocou a tentativa de homicídio. Eu sei, é algo estúpido! Mas a estupidez ainda está muito arraigada na nossa sociedade. Não deixem ele andar sozinho pelas ruas, nem a garota médium, que será facilmente confundida com uma mexicana e também sofrerá alguma hostilidade.

- Eu sou brasileira.

- Desculpe ter falado de você, não sabia que estava perto... Brazilian? You’re from Brazil, in Soult America?

- Yes, I’m.

Ele fica empolgado. Conta das histórias que seu pai trouxe da guerra, dos brasileiros malucos que ninguém sabia de onde tinham saído, mas é elogioso em seu humor. Ele agradece à moçoila com um abraço, porque foi um brasileiro que salvou seu pai, levando-o nas costas, quando os próprios americanos disseram que estava morto e deveria ser deixado para trás. E vejam só...

- Daniel Ribeiro? É meu avô! Ele ainda vive em Rio Verde.

Aquela garota tão encantadora, que lhe deu um furo de reportagem (...) começa a ficar irresistivelmente linda. Ele chora. Viu vários vizinhos receberem a péssima notícia dos militares, gelou completamente quando três deles apareceram à sua porta, até ver que um deles era seu pai. Ele vai ao telephone e liga para os pais...

- Pai? Sim, sou eu... Lembra-se do Daniel Ribeiro?...Sim, ele mesmo... Acabo de conhecer a neta dele.

E assim os sete conseguem o bem mais precioso que se pode ter em New York, conseguem amigos. Já não estão mais sozinhos em uma cidade gigantesca e quase desconhecida, onde ninguém conhece ninguém. Quando se é um amigo, ser negro ou estrangeiro pesa bem menos na balança (...).

São aconselhados a mudar seus planos, esquecer a viagem à Los Angeles por terra e irem de avião. As passagens aéreas não são mais o luxo de outrora (...) Terão que deixar para conhecer o país inteiro em outra ocasião, talvez em uma turnê profissional. Por agora, tratam de descansar da manhã turbulenta e refazer os planos. Não poderão contar com o ônibus, que até agora lhes serve de alojamento. Da mesma forma, os suprimentos que estão no bagageiro perdem sua razão de ser. Matthew levanta o dedo e dá uma sugestão, há uma comunidade hispânica em New Jersey que ajuda pessoas carentes, tem um albergue onde os víveres seriam muito bem vindos.

- Sim, mãe, papai está refazendo todos os cálculos e roteiros. A gente vai sair daqui directo para Los Angeles, de avião.

- Ok, vou avisar Jose. Como está Ronald?

- Melhor do que todo o resto. Você não imagina como ele ficou altivo, com os olhos brilhando, depois de encarar aquele cara (...) parece que gostou de ter se metido em encrenca e ser ameaçado de morte! Sei lá, deve ser herança da tradição medieval que ele traz.

- E como está Renata?

- Outra com um sorriso de orelha a orelha. A cada decepção que temos aqui, ela parece ficar mais feliz.

- Só tem doido nessa banda... Menos mal. Enzo, Robert e Rebeca?

- Os dois tiveram que conter a baixinha, para ela não pular no pescoço do sujeito, e quase apanharam dela. As personalidades estão aflorando aqui, entende? Já sei exatamente com que tipo de gente estamos lidando; Gente que não troco por ninguém!

- Ah, muito bem! Tava começando a ficar brava – exclama Rebeca!

- Assim, sim, rabinho espichado – diz Renata.

- Falando da gente às escondidas, Patty Petty! Solta o verbo – Diz Ronald.

- Queria ouvir o que a pessoa do outro lado está falando também – Diz Enzo, se aproximando.

- O que a nossa adorável líder está tramando?

- Nadica de nada, Bobby. Mãe, depois conversamos, tem um parlamento querendo satisfações de sua rainha, aqui. Meus queridos, estamos tirando algumas coisas boas desses apuros todos. Os âmagos de nossas personalidades estão aflorando (...) Isso é bom, porque vai evitar que tenhamos surpresas desagradáveis em nossas turnês.

- Então, tudo bem se eu enforcar alguém com a fiação das caixas de som, se me irritarem?
- No, honey. Mas tudo bem se você impuser respeito. Não dá para fazer shows da cadeia, queridinha. Tranqüilizei Mamãe Urso, para ela conseguir dormir nesta noite fria.

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