domingo, 16 de setembro de 2018

Dead Train in the rain XXXI

   Vigie as panelas, ou elas voarão pela janela. A estação 31 traz o lado obscuro da competência, e a primeira de muitas coincidências. Deixe as panelas cozinharem em paz e embarque, o trem já vai sair.


A neve já deixa as pessoas transitarem a céu aberto sem grandes riscos. O sol brilha apenas para que enxerguem o caminho (...) Os oito chegam à escola na Suburban, que Richard ainda pretende manter por um bom tempo, os garotos seguem juntos à sala de aula enquanto são interpelados pelos colegas...

- É verdade que vocês vão fazer um museu da Dead Train?

- Como?

- É o que estão falando, desde que o governador anunciou a reativação da ferrovia.

- Silvia, conta essa história direito – Pede Patrícia.

- A gente mal nasceu e já querem um museu – se espanta Enzo.

A simpática tagarela de cabelos encaracolados solta o verbo. Dizem que planejam usar o prestígio da banda para reavivar a cidade (...) os outros aproveitam para confirmar ou não o boato. Já em sala de aula, Patrícia (...) pede à professora a palavra...

- Meus amigos, eu soube pela Silvia de alguns boatos que nasceram, enquanto estávamos quase isolados pela neve. Um deles o de que nossa banda passaria a sustentar Sunshadow.

- E não é verdade?

- Meia verdade, James. Meia verdade. Sunshadow tem uma história própria (...) Era para ser apenas uma vila temporária (...) cuja única função era dar suporte à construção de uma ferrovia. Acontece que essa vila sem nome atraiu mais gente do que o pretendido, pessoas que tinham perdido tudo, ladrões que acabaram que cumprir suas penas (...) negros libertos (...) enfim... A vila prosperou mais do que o desejado pelo governo, que com a conclusão das obras se recusava a dar a assistência necessária. Montgomery Winston foi ver o governador em 5 de Agosto de 1822 (...) conseguiu que as famílias ficassem onde estavam, mas nem um centavo furado seria investido na cidade onde até o sol faz sombra. Ele voltou o mais rápido que pôde e deu a notícia. Uma semana depois, após muita discussão e até brigas, os cidadãos firmaram um pacto de ajuda e proteção mútua, porque autoridades de cidades vizinhas abusavam e os bandidos nos viam como presas fáceis. Em 7 de Setembro de 1822, foi promulgada uma lista de leis do que pode ser chamada de a primeira constituição municipal, que marcou o nascimento de Sunshadow. Uma dessas leis versa que o cidadão que precisar sair da cidade, deve oferecer primeiro a outro a casa onde mora (...) lei que foi abolida há décadas, mas o costume de oferecer a casa aos concidadãos ainda persiste. Sunshadow tem vida própria, o que faremos é ajudar a revitalizar a cidade, não a sustentá-la, porque o sunshadower nunca recebeu ajuda externa, mesmo com as perdas da guerra, e mesmo assim conseguimos manter a dignidade de nossa cidade.

É aplaudida. Eles nunca pensaram que Vai Quem Quer tivesse uma história! Para eles, simplesmente tinha brotado em um lugar ermo e alguns andarilhos começaram a morar lá. Agora sabem que e como a cidade nasceu, e por que ainda hoje é tratada como uma filha bastarda. Renata a aborda e revela sua estupefação...

- 7 de Setembro de 1822???

- Sim, por quê? A data coincide com alguma comemoração de vocês?

- Dia, mês e ano da proclamação da independência do Brasil!

O primeiro dia de aula no ano começou bem. Helen pede que a brasileira vá à frente e esclareça isso. De cara pede que faça uma pausa e explique essa conversa de “imperador”. Ficam estarrecidos por um país no continente já ter sido uma monarquia (...) Terminam a aula sabendo que o Brasil tem o tamanho dos Estados Unidos, que a Amazônia fica a milhares de milhas do Rio de Janeiro, que o extremo sul do país tem neve no inverno e muitas coisas mais.

Durante o intervalo os seis conversam reservadamente (...) Patrícia meditou um pouco sobre o que a colega disse...

- A gente tem uma história bem rica, mas (...) nada público que lembre os pioneiros!

- Tem muitas casas desocupadas, uma delas pode servir provisoriamente – sugere Ronald.

- Já que a cidade nasceu em função da ferrovia, a gente podia também fazer um museu temático. Alguém lá tem material, photos, qualquer coisa sobre ferrovia?

- Tem, Rebeca... Na verdade, acho que quase todo mundo na cidade tem um bom acervo de família...

Interrompem a discussão quando Nancy chega, e conversam com ela depois da aula...

- O baú da sua avó tem centenas de photographias, cartas, uniformes, alguns recortes de jornal... Acredito que podemos fazer um museuzinho, enquanto não temos um de verdade.

À tarde estão com o prefeito, que disponibiliza o seu acervo pessoal e manda um recado à rádio, pedindo que os cidadãos colaborem. Se impressionam com a quantidade de material que pessoas comuns conseguem acumular. Fazem uma pequena força-tarefa para catalogar e organizar tudo. Acabam catalogando mais de dez mil itens. Patrícia liga para Josephine e (...) Recebe algumas orientações (...) Ela espalha o que recebeu e a população fica excitada como nunca. Richard chega com a boa notícia, conversou com Fischer, ele gostou tanto da idéia que vai transformar sua propriedade em um museu (...) Apesar de ficar um pouco longe da sede, a propriedade é facilmente acessível, o calçamento de pedra resiste bem há quase cem anos; tem todas as facilidades modernas em casa.

Quase uma semana de planejamento e ações, e todo o acervo visual da cidade é photocopiado e ampliado, sendo os originais devolvidos aos seus donos. No total, mais de quinze mil itens, desde 1859, integram o acervo do museu criado por decreto municipal. A falta de burocracia em uma cidade tão pequena, permite que em Janeiro mesmo o museu seja inaugurado, com a imprensa local, de algumas cidades vizinhas e o prestígio da Dead Train presentes. É tudo muito simples, mas também muito organizado (...) há uma ala para o século XIX e mais uma para cada década, com alguns manequins vestidos a caráter, e há uma lanchonete bem ao lado. Matthew manda por via aérea o material já com o esquema pronto e o título “Dead Train resgata a história de sua cidade”. O texto deixa claro que foi uma cooperação coletiva, mas o título (...) fará as pessoas lerem a notícia.

No dia seguinte o sexteto volta a ser notícia nacional. Não notícias banais como “Rebeca Spring mostra o dedo para paparazzo”, isso ela já fez, eles estão criando a figura da celebridade útil, embora sempre digam que têm em quem se inspirar, como Audrey Hepburn e Jose De Lane. Eles se convencem, para seu alívio, que podem prosperar na carreira sem queimarem seu filme. Josephine entrega um exemplar do jornal para cada membro da directoria, para verem no que estão investindo tempo e dinheiro. Fica claro o quanto é vantajoso, com a delinqüência juvenil crescente, vincular a imagem da banda aos estúdios. Não são uma banda conformada e bem moldada ao status quo (...) em certos países seriam até mesmo banidos por subversão, é questão de tempo para eles serem conhecidos mundialmente e isso acontecer...

- O que a preocupa, então?

- É exatamente por eles não darem motivos para serem atacados, mon ami. Perceberam que eles parecem ser certinhos, perfeitinhos demais? Eu já fui informada que duas (...) bla-bla-bands que estão reformulando sua falta de estilo, para serem antagonistas da Dead Train. Há inclusive uma sendo formada no colégio deles. Nancy me contou que quatro alunos despeitados estão tentando alcançar o sucesso de qualquer jeito, para serem mais populares do que eles... Isso incluiria plantar notícias falsas, cooperar com o lodo da imprensa...

- E atiçar a sanha homicida da Rebeca?

- É... Sabemos o quanto as pessoas na verdade detestam quem é bom. Eles ficam de olho não para seguir seus exemplos, mas para registrar e alardear os tropeços. Eu disse a Patrícia que iria falar com ela na primavera, estão tendo algum problema com as irmãs de Enzo e Ronald, nada realmente sério, mas em virtude desse sucesso com vida própria...

- Eu quero ir com você – se oferece David. Será bom eu sondar o lugar onde vivem, para avaliar os riscos reais.

- E por que não fazem isso de modo profissional? Quer dizer, vão com uma equipe, como se fosse uma visita promocional dos estúdios. Assim vai ficar até mais fácil vocês conseguirem a cooperação da população, conhecer bem mais a fundo o que precisam, et cétera. Podemos até usar as filmagens em nossas campanhas.

- Mademoiselle, o que está fazendo neste cargo de secretária executiva? Seu lugar é na directoria! Que pena que não temos uma vaga, sua idéia é excelente! Vamos bancar os espiões, camuflados pelas filmagens. Você terá sua recompensa.

A moça suspira aliviada, de início acreditou que fosse receber uma reprimenda. Josephine liga para Patrícia, para combinar a visita, e a garota vai pessoalmente avisar ao prefeito...

- Câmeras? Jose De Lane e David Grant em Sunshadow, com filmagens??! Meu Deus, a cidade ainda está uma bagunça por causa da neve!

- Por isso vim avisar com antecedência (...) Podemos pedir que cada um limpe a frente de sua casa, pouparia bastante tempo.

Volta para casa imaginando o motivo de Josephine trazer um alto executivo e uma equipe de filmagens. Acredita que usarão para algum filme institucional dos estúdios, mas ela nunca tinha aparecido em um, ao menos que saiba. De qualquer forma (...) vai contar aos outros e pedir que se preparem, especialmente Enzo e Ronald. Ah, pronto, ela está com o peso do mundo inteiro sobre os ombros de novo! Agora ficará compenetrada e taciturna até a diva chegar e desfranzir o cenho. Esbanja sua beleza principesca pelas ruas (...) com a neve finalmente baixa o suficiente para os estragos do inverno serem limpos. Encontra Matthew voltando no Ford dos pais, da agência dos correios e avisa-o sobre a visita, olha para a carona e reconhece de imediato, toda empacotada de agasalhos, como um urso de pelúcia...

- Ora, ora, ora... A senhorita não perde tempo!

- E eu ia perder um passeio de Ford de Bigode?

- Sei, o Ford... Vou fingir que acredito. Avise Rebeca e Bobby, vou falar com os outros.

- Você está com essa cara de novo.

- “Essa cara”?

- Essa cara de quem vai pra guerra! Depois nós conversamos, mocinha, passe lá em casa. Vamos, Matt, vamos avisar aos outros.

Rapidamente a notícia de que Jose De Lane visitará a cidade, se espalha até pelas vizinhas. O efeito adulador é imediato, mas Patrícia acredita que a amiga já previa isso. E previa mesmo, ela quer medir o nível da falsidade local (...) a população se empenha mais no embelezamento de Sunshadow, inclusive o museu de história local e sua lanchonete. Aliás, Fischer está caprichando no brilho de sua frota de carros antigos, já chamou Richard para fazer uma revisão (...) Em toda a sua história, fora o debute de Patrícia, Sunshadow jamais foi filmada. Jamais!

Tudo resolvido, Patrícia vai à casa da amiga, receber a reprimenda prometida (...) Renata a põe para dentro. Antes da conversa em si (...) ela serve café quente com broa de milho, e mostra as photographias que os parentes mandaram de Goiânia, e algumas de uma viagem feita ao Rio de Janeiro. É sempre necessário lembrar que no Brasil, nesta época do ano, é alto e tórrido verão...

- Prova irrefutável de que a Terra é redonda. Ainda hoje há quem pregue que é plana...

- Gente que prefere uma certeza falsa a uma dúvida concreta. Olha aqui, este é o Palácio das Esmeraldas, na Praça Cívica, sede do governo de Goiás.

- Mais art déco do que isso, impossível!

Impressiona à americana a quantidade de bicicletas nas ruas, mérito da topografia plana da cidade. Conduz a conversa até que a tensão ceda, então a deixa admirando as imagens até quando quiser, consentindo com o pedido de algumas cópias. Quando termina a leva para a varanda no fundo da casa (...) Renata pensa seriamente em estudar psicologia, demonstra muito talento para a função espinhosa. O vizinho dos fundos se mudou há quase vinte anos (...) desde então sua casa fica sob os cuidados dos concidadãos, como no pacto original de proteção mútua. Sentam-se ambas em uma cadeira de balanço, pendurada por correntes na viga do telhado, a anfitriã dá um primeiro impulso e deixa a inércia pendular fazer o resto. Se concentra na amiga, a primeira pessoa que conheceu fora de Goiás...

- Por que essa sensação de responsabilidade tão grande, Patty?

- Não tenho certeza... Minha avó era consultada para aconselhamentos por muita gente, talvez eu tenha herdado isso dela.

- Talvez sim (...) mas não explica tudo. Você está fazendo o serviço do prefeito! Desculpe parodiar sua mãe, mas você ainda é uma menina! Seu rosto ainda está em formação, você ainda tem alguns centímetros para crescer, por incrível que pareça...

- Ra! Ra! Ra! Ra! Ra...

- Até a sua voz ainda está em maturação! Ei, você aí em cima! O que a preocupa tanto?

Patrícia termina de rir e pensa um pouco. Não sabe dizer exactamente o que a preocupa, sabe que tem a ver com seu amor pela cidade, o facto de ter nascido nela e conhecido na pele o preconceito que seus cidadãos sofrem, de estar ficando rica e assumindo as contas da casa...

- Entendi; Maturidade precoce. Tem noção das conseqüências que isso pode ter?

- Não doutora, quais?

- Posso resumir tudo em chegar à velhice já sem saúde nem vigor, e ver que a vida passou, com seus amigos, seus parentes, seus pais... Tudo.

- Já ouvi falar de pais ausentes, mas “filha ausente”...

- É possível e acontece. Não é o seu caso, mas esses garotos mimados que proliferam como ervas daninhas na sociedade, são exemplos de filhos ausentes. Eles vão “viver suas vidas” com a mesada do papai (...) e, quando vêem, já nem fazem mais parte da família. As pessoas já fazem festas sem nem lembrar de convidá-los, os convites de casamento não os incluem mais...

- Isso é sério! O que prescreve então, doutora?

- Delegue e relaxe. Você não entrega tarefas para incompetentes, não precisa ficar em cima, encucada, se perguntando se as coisas vão sair a contento. Quando alguém tem algum problema, você sabe que vai te ligar, não precisa forçar a vidência para antecipar os desfechos!

- Eu faço isso???

- Sim, faz. Age como se nada fosse correr bem sem a sua intervenção, piora os outros agirem como se isso fosse verdade. Você vestiu a carapuça de rainha, Patty, e os outros a de súditos. Nós teremos que reportar isso à Jose.

Delegar, para ela, não é problema, o problema é delegar e se desligar. Está acostumada a acompanhar de perto tudo o que tem que fazer, na cozinha monitora as panelas como se elas fossem fugir a qualquer momento. É convidada a sair com a anfitriã até a lojinha de doces caseiros, que fica a norte da praça central. De lá vão chamar os outros, para estragarem os dentes e sobrecarregarem seus pâncreas. Isso não chega a acontecer, porque saem distribuindo doces por onde passam, mas têm uns bons momentos de juventude descompromissada.

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