Falando de negócios. A estação 22 trouxe o profissionalismo à bordo, ele não vai mais tolerar actos falhos. Apresentem seus bilhetes, o Dead Train está finalmente nos trilhos.
(...) Josephine explica os motivos da surpresa. Fala de Shirley Temple,
para exemplificar, e de alguns casos que o grande público desconhece, para dar
início ao que interessa...
- Eu tinha dito que não queria que vocês
explodissem cedo demais (...) Eu esperava
poder acompanhar vocês por mais um ano, pelo menos, para que a fama não se
alastrasse antes do tempo. Infelizmente, em termos, as sincronicidades os
obrigaram a se relevar muito cedo e sua fama acabou ganhando vida própria,
praticamente antes de percebermos. Por isso mesmo quero propor-lhes uma estréia
oficial imediata (...) para vocês crescerem mais
rápido, alcançarem a fama que já galopa louca pelo mundo e tomar as rédeas
dela, antes que cause estragos irreparáveis. Peço que leiam com cuidado as
cópias de contracto que têm em mãos (...) a urgência da redação pode ter me feito deixar algo de importante
para trás. O texto inclui ainda as responsabilidades de Matthew como assessor
de imprensa da banda, papel que ele já desempenha desde que vocês se revelaram.
- Financeiramente ele é muito interessante!
Mas você deixa claro que tem medo que saiamos do controle. Por quê?
- Vi o vídeo de seu debute, vocês se empolgam
com muita facilidade. Um grupo empolgado comete erros sem perceber, acaba não
notando a tempo que cometeu excessos e jogou sua credibilidade pela janela.
- Poderíamos ver e você nos explicar?
Ela roda o vídeo colorido, para o deleite de
Matthew. Aponta cada detalhe (...) deixa claro que essa empolgação pode ser um elemento vital em um show
ao vivo, se for mantida sob controle. Haver um negro e uma estrangeira na
banda, conclui, pode piorar muito os efeitos de uma manchete depreciativa.
- Ok, eu compreendi. Vocês têm alguma
observação?
- Não ficou claro para mim, a parte de
eventuais turnês internacionais. Se está tão preocupada com nossa integridade,
eu gostaria que incluísse parágrafos sobre nossa segurança e socorros médicos.
- Bem observado. Eu disse que poderia ter
esquecido algo... Farei a inclusão, monsieur conde. Alguma observação mais?
- Só uma. Precisaremos das assinaturas de
todos os outros pais (...) eu não posso assinar por todo
mundo.
- Você tem uma procuração deles para cuidar
dos seis, não tem? Então ligue para eles e avise. Se estiverem de acordo,
providenciaremos o envio de um representante que voará com vocês para
Sunshadow.
- Só mais uma coisa – arremata Richard - Não
quero que eles ganhem um só centavo adiantado. Primeiro trabalham, depois
recebem (...) ensinei minha profissão à minha
filha e ela está acostumada a só receber o que tiver merecido.
Josephine aceita com satisfação, então
Richard faz as ligações. Alguns têm ataques histéricos ao saberem que eles
estão com Jose De Lane, mas todos concordam. O mecânico assina um protocolo e
estão praticamente contractados, já podem ser apresentados como nova sensação
do grupo de entretenimento que comanda os estúdios (...) os seis fazem a festa na sala de reuniões.
Finalmente o Dead Train está nos trilhos da carreira artística. David chama a
equipe de apoio para fazerem um planejamento profissional (...) O logo que Renata fez foi aceito. Alguns acharam meio
sóbrio demais para um grupo de adolescentes, meio art déco, mas a proposta
deles nunca foi a de mero entretenimento. O dia inteiro é dedicado aos
trabalhos de planejamento. Patrícia se sente absurdamente confortável naquilo,
especialmente porque os resultados aparecem logo, o que acalma a índole de
Rebeca.
Assistem à íntegra do vídeo do aniversário de
Patrícia, ela fica absolutamente encantada ao se ver na tela. A película colorida
dá um ar de cinema ao evento, é quando Richard descobre quem é Bartholomew
Simpson. A directoria dos estúdios viu o filme várias vezes, para avaliar o
sexteto, não raro alguém saía dançando pela sala de reuniões. Ouvem passos e
olham para trás, Renata e Matthew estão dançando. Afastam a mesa e dançam
também.
São levados à sua hospedagem. Quem falou em
hotel? Ficarão hospedados na residência de Josephine, em Beverly Hills. A
família inteira da diva costuma passar o natal com ela, isso justifica morar em
um palacete. O estilo é o mais fino do art déco (...) tudo da mais fina procedência, de matéria-prima e mão de obra. A amplitude é
para seus sobrinhos poderem brincar à vontade, quando a neve atrapalhar lá
fora. A viuvez trágica e precoce não lhe transparece na face, nem o aborto que
sofreu no incidente. Ainda hoje alguns dogmopatas a acusam de ter deixado seu
filho morrer, como se capotar por quase uma quadra (...) lhe desse muitos meios de proteger o
feto. Os fãs que testemunharam o acidente, ainda hoje se lembram do desespero e
da histeria que a cena causou.
Deixa-os à vontade, para que escolham seus
aposentos. Por agora não falarão de negócios, são amigos em uma tarde livre.
Patrícia já puxa Renata para dividir uma suíte consigo, não só por precaução.
Quer actualizar as conversas sobre a mediunidade da amiga, não esquecendo do (...) adulto onze anos mais velho. A brasileira explica (...) das peripécias pelas quais passaram em
New York e nem se deram conta. Continuam conversando, se revezando na ducha,
com a americana cada vez mais estarrecida...
- Quer dizer que tem alguém aqui, agora?
- Dezenas.
Ela se envelopa na toalha imediatamente,
arrancando risos. Renata explica que não adianta e não é necessário, é como ter
vergonha de ficar nua diante de um bicho (...) a nudez pura e simples não acarreta coisa alguma...
- Mas você disse que tem um monte de caras
aqui! Nunca fiquei nua na frente de ninguém!
- Não é só aqui, eles estão em todos os
lugares, inclusive no seu quarto, em Sunshadow. Há basicamente dois tipos de
espíritos; os com os quais não precisa se preocupar, e os com os quais não
adianta se preocupar. Sua avó é uma deles.
- Ela está aqui? Então estou tranqüila... Mas
quem são os outros?
- Relax, baby! (...) a maioria deles não pode nem perceber a sua presença. Imagine a
massa de espíritos que nos cercam, como fãs; se você for mudar cada rotina,
cada atitude com medo que alguém veja, vai virar uma múmia!
- Jura?
- Juro. Pode se trocar sem medo.
Ela tira a toalha, tentando ver algo
escondido entre os móveis de vez em quando, mas tira. Evitam demoras, logo
chamam para o jantar e a moçoila sabe como Josephine preza a pontualidade. Usam
a primeira roupa confortável que pegam e vão. Do alto da escadaria vêem uma das
faces cruéis da diva, ser cruel consigo mesma. Ela vistoria milimetricamente a
arrumação da mesa de jantar, usando as estampas da toalha de mesa como marcação
para os elementos (...) tudo feito para o roteiro ser seguido a contento. Seu olhar, se vê do
alto, é crítico, aguçado, atento ao menor desvio. Patrícia pede que preste
atenção, a cena é uma demonstração de como não aborrecer a anfitriã, inclusive (...) Josephine termina, está
tudo a contento, já pode relaxar em seu vestido azul profundo. Olha em volta e
vê as duas protegidas em sua observação...
- Pardon moi, mes chèries. Esta é a Josephine
chata e implicante que as câmeras não mostram, eu devo ser um flagelo para meus
empregados – se justifica a diva.
- Não é muito diferente da minha mãe. Ela não
aceita de mim menos do que cem por cento...
Renata para de falar e observa ao redor da
diva, nunca viu tantos espíritos elevados em um só lugar, agora ela é quem fica
tímida...
- Algum problema?
- Você... Acredita em espíritos?
- Oui, sou espírita. Você é médium?
Patrícia trata de intermediar a conversa (...) diz inclusive que o pai, ateu, estudou o assunto para poder ajudar sua
amiga. Encerram o assunto quando os demais começam a descer, mas ela quer
tratar com a brasileira sobre essa mediunidade. À mesa ela pede permissão a
Richard, que consente com uma prece de agradecimento, mostrando que é ateu e
não um chateu misoteísta. A festa gastronômica tem início, com todos os
comensais sob a rígida observação da tutora (...) é de sua natureza estudar as pessoas com quem lida. A experiência de
vida só acentuou essa característica, que irrita muita gente, mas os benefícios
que traz são muito maiores do que o incômodo por seu olhar de raios X.
Deixam os garotos descansarem da comilança, pela
primeira vez sem precisarem lavar as louças, vão os três conversar no
escritório. Em vez das cadeiras à mesa, Josephine escolhe as poltronas, para
não haver possibilidade de alguém esconder um gesto ou tique comprometedor. Seu
alvo principal é Matthew, que tem se mostrado útil, mas é um repórter e deve
ser tratado com o cuidado necessário...
- Eu estou certa de que vocês perceberam o
naipe dos talentos que temos na sala de estar, também estou certa de que
compreenderão minha preocupação em relação ao relacionamento de monsieur Tamasauskas
com Renata, que é pouco mais do que uma criança, e uma criança que precisa de
atenções especiais.
Ela fala com sua dicção perfeita e seu fôlego
excepcional, dando espaços enormes entre vírgulas. Deixa claro que não é a
diferença de idade que a preocupa, é o facto de alguém da imprensa estar
inserido na intimidade de um membro muito delicado da banda (...) Por hora só avisa que seu bom comportamento
será regiamente recompensado, exaltando a vida nababesca que levará, mas com
isso deixando claro que o exacto oposto também é verdade (...) Ela pede que ele se pronuncie sobre a
brasileira e presta uma atenção científica a absolutamente tudo o que consegue.
É actriz. Não só isso, é a diva de milhões, a musa de gerações, é Jose De Lane,
sua majestade no mundo artístico, ela sabe identificar melhor do que qualquer
um o menor traço de fingimento; já ajudou a polícia a identificar psicopatas,
com esse talento. Não é o caso. Ele fala de Renata com um misto de afeto e
gratidão, seus olhos brilham, seu timbre fica suave e, se deixam, ele vara a
noite tecendo elogios à amada. Ela percebe a sinceridade, fica mais tranqüila (...) sem deixar transparecer. Se volta para
Richard...
- Sobre nossa preciosa Patrícia...
- O que ela disser ou fizer, eu assino em
baixo.
- Eu tenho certeza. Mas quero tratar de um
assunto delicado. Eu sei pelo que ela passou ainda criança, estou a par de todo
o desenvolvimento dela desde então. Minha pergunta é, ela realmente superou
tudo isso?
- Eu não sei. Sei que ela está agindo como
mulher de verdade, mas na nossa vizinhança não temos profissionais de
psicoterapia, não em quem possamos confiar. Conhece algum?
- Muitos. Foi bom ter tocado no assunto. As
letras que ela me mandou, em nossas correspondências, são de uma poesia
maravilhosa, mas algumas delas são extremamente tristes!
-
“I fix my face in the window, I have a hope, they will back so happy to us. I
fix my eyes in the snow, my mind is a magic postman, have a news from you. You ill back to us...”
- Sim, principalmente esta. Eu quase chorei
quando terminei de ler! Há uma semelhança perversa e uma diferença gigantesca,
entre superar um trauma e apenas suportá-lo.
- Ela está trabalhando nesta canção há mais
de um ano. Não é fácil chegar à porta do quarto e ouvir os soluços dela. Já
protegi minha filha de fanáticos religiosos, de malandros mal intencionados,
recentemente até de bandidos, mas a dor no coração dela eu não posso curar.
- Então concorda em eu arranjar ajuda
profissional para os seis?
- Concordo e agradeço.
É a primeira vez que Matthew vê aquele cara
enorme e debochado, ficar tão taciturno e triste. Percebe que a filha é seu
calcanhar de Aquiles. São interrompidos por uma música, deduzem que eles
encontraram a sala de música e estão se esbaldando. Ouvem a voz de Enzo dando o
sinal para a contagem regressiva e vão até lá. É uma distância curta, Josephine
faz questão de tocar algo, após o trabalho pesado...
- Cé uno, duo, tre... Adesso!
-
Uuuuuu-uuuuu... Uuuuuuuuu...
-
Back to Sunshadow now, were your home stand by you. Back to your home again,
were your people stand by you...
Esquecem o clima denso do escritório, se
concentram na voz do rapaz ao violão, com os outros fazendo o coral. Começam a
ter saudades de Sunshadow, sem a menor idéia do que se passa por lá. Não sabem
que os pais de Matthew se enturmaram e decidiram se mudar para a cidade (...) O certo é que deixaram Renato mais tranqüilo,
convencido de que um homem mais velho pode ser um bom marido para sua filha. Já
escolheram a casa, é bem próxima à dos brasileiros (...) Ainda há muitas casas desocupadas na
cidade.
Na Califórnia os
garotos aproveitam os últimos momentos de despreocupação profissional. Amanhã
começarão a trabalhar pesado, farão ensaios para gravar o disco, participarão
de reuniões, auxiliarão o departamento de marketing, combinarão entrevistas e
planejarão shows. De hoje em (...) o que fizerem
em público não será mais relevado, tudo o que disserem a seu respeito deverá
ser levado em conta, e não poderão se dizer surpresos quando detalhes de suas
tenras infâncias vierem à tona.
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