quinta-feira, 6 de setembro de 2018

Dead Train in the rain XXII

  Falando de negócios. A estação 22 trouxe o profissionalismo à bordo, ele não vai mais tolerar actos falhos. Apresentem seus bilhetes, o Dead Train está finalmente nos trilhos.


(...) Josephine explica os motivos da surpresa. Fala de Shirley Temple, para exemplificar, e de alguns casos que o grande público desconhece, para dar início ao que interessa...

- Eu tinha dito que não queria que vocês explodissem cedo demais (...) Eu esperava poder acompanhar vocês por mais um ano, pelo menos, para que a fama não se alastrasse antes do tempo. Infelizmente, em termos, as sincronicidades os obrigaram a se relevar muito cedo e sua fama acabou ganhando vida própria, praticamente antes de percebermos. Por isso mesmo quero propor-lhes uma estréia oficial imediata (...) para vocês crescerem mais rápido, alcançarem a fama que já galopa louca pelo mundo e tomar as rédeas dela, antes que cause estragos irreparáveis. Peço que leiam com cuidado as cópias de contracto que têm em mãos (...) a urgência da redação pode ter me feito deixar algo de importante para trás. O texto inclui ainda as responsabilidades de Matthew como assessor de imprensa da banda, papel que ele já desempenha desde que vocês se revelaram.

- Financeiramente ele é muito interessante! Mas você deixa claro que tem medo que saiamos do controle. Por quê?

- Vi o vídeo de seu debute, vocês se empolgam com muita facilidade. Um grupo empolgado comete erros sem perceber, acaba não notando a tempo que cometeu excessos e jogou sua credibilidade pela janela.

- Poderíamos ver e você nos explicar?

Ela roda o vídeo colorido, para o deleite de Matthew. Aponta cada detalhe  (...) deixa claro que essa empolgação pode ser um elemento vital em um show ao vivo, se for mantida sob controle. Haver um negro e uma estrangeira na banda, conclui, pode piorar muito os efeitos de uma manchete depreciativa.

- Ok, eu compreendi. Vocês têm alguma observação?

- Não ficou claro para mim, a parte de eventuais turnês internacionais. Se está tão preocupada com nossa integridade, eu gostaria que incluísse parágrafos sobre nossa segurança e socorros médicos.

- Bem observado. Eu disse que poderia ter esquecido algo... Farei a inclusão, monsieur conde. Alguma observação mais?

- Só uma. Precisaremos das assinaturas de todos os outros pais (...) eu não posso assinar por todo mundo.

- Você tem uma procuração deles para cuidar dos seis, não tem? Então ligue para eles e avise. Se estiverem de acordo, providenciaremos o envio de um representante que voará com vocês para Sunshadow.

- Só mais uma coisa – arremata Richard - Não quero que eles ganhem um só centavo adiantado. Primeiro trabalham, depois recebem (...) ensinei minha profissão à minha filha e ela está acostumada a só receber o que tiver merecido.

Josephine aceita com satisfação, então Richard faz as ligações. Alguns têm ataques histéricos ao saberem que eles estão com Jose De Lane, mas todos concordam. O mecânico assina um protocolo e estão praticamente contractados, já podem ser apresentados como nova sensação do grupo de entretenimento que comanda os estúdios (...) os seis fazem a festa na sala de reuniões. Finalmente o Dead Train está nos trilhos da carreira artística. David chama a equipe de apoio para fazerem um planejamento profissional (...) O logo que Renata fez foi aceito. Alguns acharam meio sóbrio demais para um grupo de adolescentes, meio art déco, mas a proposta deles nunca foi a de mero entretenimento. O dia inteiro é dedicado aos trabalhos de planejamento. Patrícia se sente absurdamente confortável naquilo, especialmente porque os resultados aparecem logo, o que acalma a índole de Rebeca.

Assistem à íntegra do vídeo do aniversário de Patrícia, ela fica absolutamente encantada ao se ver na tela. A película colorida dá um ar de cinema ao evento, é quando Richard descobre quem é Bartholomew Simpson. A directoria dos estúdios viu o filme várias vezes, para avaliar o sexteto, não raro alguém saía dançando pela sala de reuniões. Ouvem passos e olham para trás, Renata e Matthew estão dançando. Afastam a mesa e dançam também.

São levados à sua hospedagem. Quem falou em hotel? Ficarão hospedados na residência de Josephine, em Beverly Hills. A família inteira da diva costuma passar o natal com ela, isso justifica morar em um palacete. O estilo é o mais fino do art déco (...) tudo da mais fina procedência, de matéria-prima e mão de obra. A amplitude é para seus sobrinhos poderem brincar à vontade, quando a neve atrapalhar lá fora. A viuvez trágica e precoce não lhe transparece na face, nem o aborto que sofreu no incidente. Ainda hoje alguns dogmopatas a acusam de ter deixado seu filho morrer, como se capotar por quase uma quadra (...) lhe desse muitos meios de proteger o feto. Os fãs que testemunharam o acidente, ainda hoje se lembram do desespero e da histeria que a cena causou.

Deixa-os à vontade, para que escolham seus aposentos. Por agora não falarão de negócios, são amigos em uma tarde livre. Patrícia já puxa Renata para dividir uma suíte consigo, não só por precaução. Quer actualizar as conversas sobre a mediunidade da amiga, não esquecendo do (...) adulto onze anos mais velho. A brasileira explica (...) das peripécias pelas quais passaram em New York e nem se deram conta. Continuam conversando, se revezando na ducha, com a americana cada vez mais estarrecida...

- Quer dizer que tem alguém aqui, agora?

- Dezenas.

Ela se envelopa na toalha imediatamente, arrancando risos. Renata explica que não adianta e não é necessário, é como ter vergonha de ficar nua diante de um bicho (...) a nudez pura e simples não acarreta coisa alguma...

- Mas você disse que tem um monte de caras aqui! Nunca fiquei nua na frente de ninguém!

- Não é só aqui, eles estão em todos os lugares, inclusive no seu quarto, em Sunshadow. Há basicamente dois tipos de espíritos; os com os quais não precisa se preocupar, e os com os quais não adianta se preocupar. Sua avó é uma deles.

- Ela está aqui? Então estou tranqüila... Mas quem são os outros?

- Relax, baby! (...) a maioria deles não pode nem perceber a sua presença. Imagine a massa de espíritos que nos cercam, como fãs; se você for mudar cada rotina, cada atitude com medo que alguém veja, vai virar uma múmia!

- Jura?

- Juro. Pode se trocar sem medo.

Ela tira a toalha, tentando ver algo escondido entre os móveis de vez em quando, mas tira. Evitam demoras, logo chamam para o jantar e a moçoila sabe como Josephine preza a pontualidade. Usam a primeira roupa confortável que pegam e vão. Do alto da escadaria vêem uma das faces cruéis da diva, ser cruel consigo mesma. Ela vistoria milimetricamente a arrumação da mesa de jantar, usando as estampas da toalha de mesa como marcação para os elementos (...) tudo feito para o roteiro ser seguido a contento. Seu olhar, se vê do alto, é crítico, aguçado, atento ao menor desvio. Patrícia pede que preste atenção, a cena é uma demonstração de como não aborrecer a anfitriã, inclusive (...) Josephine termina, está tudo a contento, já pode relaxar em seu vestido azul profundo. Olha em volta e vê as duas protegidas em sua observação...

- Pardon moi, mes chèries. Esta é a Josephine chata e implicante que as câmeras não mostram, eu devo ser um flagelo para meus empregados – se justifica a diva.

- Não é muito diferente da minha mãe. Ela não aceita de mim menos do que cem por cento...

Renata para de falar e observa ao redor da diva, nunca viu tantos espíritos elevados em um só lugar, agora ela é quem fica tímida...

- Algum problema?

- Você... Acredita em espíritos?

- Oui, sou espírita. Você é médium?

Patrícia trata de intermediar a conversa (...) diz inclusive que o pai, ateu, estudou o assunto para poder ajudar sua amiga. Encerram o assunto quando os demais começam a descer, mas ela quer tratar com a brasileira sobre essa mediunidade. À mesa ela pede permissão a Richard, que consente com uma prece de agradecimento, mostrando que é ateu e não um chateu misoteísta. A festa gastronômica tem início, com todos os comensais sob a rígida observação da tutora (...) é de sua natureza estudar as pessoas com quem lida. A experiência de vida só acentuou essa característica, que irrita muita gente, mas os benefícios que traz são muito maiores do que o incômodo por seu olhar de raios X.

Deixam os garotos descansarem da comilança, pela primeira vez sem precisarem lavar as louças, vão os três conversar no escritório. Em vez das cadeiras à mesa, Josephine escolhe as poltronas, para não haver possibilidade de alguém esconder um gesto ou tique comprometedor. Seu alvo principal é Matthew, que tem se mostrado útil, mas é um repórter e deve ser tratado com o cuidado necessário...

- Eu estou certa de que vocês perceberam o naipe dos talentos que temos na sala de estar, também estou certa de que compreenderão minha preocupação em relação ao relacionamento de monsieur Tamasauskas com Renata, que é pouco mais do que uma criança, e uma criança que precisa de atenções especiais.

Ela fala com sua dicção perfeita e seu fôlego excepcional, dando espaços enormes entre vírgulas. Deixa claro que não é a diferença de idade que a preocupa, é o facto de alguém da imprensa estar inserido na intimidade de um membro muito delicado da banda (...) Por hora só avisa que seu bom comportamento será regiamente recompensado, exaltando a vida nababesca que levará, mas com isso deixando claro que o exacto oposto também é verdade (...) Ela pede que ele se pronuncie sobre a brasileira e presta uma atenção científica a absolutamente tudo o que consegue. É actriz. Não só isso, é a diva de milhões, a musa de gerações, é Jose De Lane, sua majestade no mundo artístico, ela sabe identificar melhor do que qualquer um o menor traço de fingimento; já ajudou a polícia a identificar psicopatas, com esse talento. Não é o caso. Ele fala de Renata com um misto de afeto e gratidão, seus olhos brilham, seu timbre fica suave e, se deixam, ele vara a noite tecendo elogios à amada. Ela percebe a sinceridade, fica mais tranqüila (...) sem deixar transparecer. Se volta para Richard...

- Sobre nossa preciosa Patrícia...

- O que ela disser ou fizer, eu assino em baixo.

- Eu tenho certeza. Mas quero tratar de um assunto delicado. Eu sei pelo que ela passou ainda criança, estou a par de todo o desenvolvimento dela desde então. Minha pergunta é, ela realmente superou tudo isso?

- Eu não sei. Sei que ela está agindo como mulher de verdade, mas na nossa vizinhança não temos profissionais de psicoterapia, não em quem possamos confiar. Conhece algum?

- Muitos. Foi bom ter tocado no assunto. As letras que ela me mandou, em nossas correspondências, são de uma poesia maravilhosa, mas algumas delas são extremamente tristes!

- “I fix my face in the window, I have a hope, they will back so happy to us. I fix my eyes in the snow, my mind is a magic postman, have a news from you. You ill back to us...”

- Sim, principalmente esta. Eu quase chorei quando terminei de ler! Há uma semelhança perversa e uma diferença gigantesca, entre superar um trauma e apenas suportá-lo.

- Ela está trabalhando nesta canção há mais de um ano. Não é fácil chegar à porta do quarto e ouvir os soluços dela. Já protegi minha filha de fanáticos religiosos, de malandros mal intencionados, recentemente até de bandidos, mas a dor no coração dela eu não posso curar.

- Então concorda em eu arranjar ajuda profissional para os seis?

- Concordo e agradeço.

É a primeira vez que Matthew vê aquele cara enorme e debochado, ficar tão taciturno e triste. Percebe que a filha é seu calcanhar de Aquiles. São interrompidos por uma música, deduzem que eles encontraram a sala de música e estão se esbaldando. Ouvem a voz de Enzo dando o sinal para a contagem regressiva e vão até lá. É uma distância curta, Josephine faz questão de tocar algo, após o trabalho pesado...

- Cé uno, duo, tre... Adesso!

- Uuuuuu-uuuuu... Uuuuuuuuu...

- Back to Sunshadow now, were your home stand by you. Back to your home again, were your people stand by you...

Esquecem o clima denso do escritório, se concentram na voz do rapaz ao violão, com os outros fazendo o coral. Começam a ter saudades de Sunshadow, sem a menor idéia do que se passa por lá. Não sabem que os pais de Matthew se enturmaram e decidiram se mudar para a cidade (...) O certo é que deixaram Renato mais tranqüilo, convencido de que um homem mais velho pode ser um bom marido para sua filha. Já escolheram a casa, é bem próxima à dos brasileiros (...) Ainda há muitas casas desocupadas na cidade.
              Na Califórnia os garotos aproveitam os últimos momentos de despreocupação profissional. Amanhã começarão a trabalhar pesado, farão ensaios para gravar o disco, participarão de reuniões, auxiliarão o departamento de marketing, combinarão entrevistas e planejarão shows. De hoje em (...) o que fizerem em público não será mais relevado, tudo o que disserem a seu respeito deverá ser levado em conta, e não poderão se dizer surpresos quando detalhes de suas tenras infâncias vierem à tona.

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