sábado, 3 de abril de 2010

Sou pago para vadiar


Mas não vadio. Talvez seja este o meu problema.

Como o atendimento ao público começa uma hora depois de iniciado o expediente, eu poderia chegar atrasado e assinar o ponto sem medo.

Poderia me apresentar ao serviço apenas duas ou três vezes por semana, que qualquer tentativa de punição seria facilmente revertida em indenização, porque a lei do funcionalismo público me ampararia.

No decorrer do expediente, eu poderia sair sem prestar satisfações para fazer o que bem me proviesse, se fosse mulher poderia marcar salão e esticar até o shopping.

Ninguém me repreenderia se eu passasse a manhã perambulando pelos corredores, jogando conversa fiada e reclamando da miséria que a prefeitura nos paga, logo viria alguém ligado a algum sindicato me apoiar e a discussão duraria até a hora de fechar. Se eu estivesse com papelada nas mãos, então é que ninguém me incomodaria, pois em uma repartição pública ninguém sabe o que o outro está fazendo, então ninguém poderia dizer que eu não estaria trabalhando.

Se o contribuinte ligasse e eu o repassasse imediatamente, sem sequer dizer "alô", para outro departamento, ninguém daria a mínima. Todos fariam o jogo do empurra até o coitado desistir. Se ele fosse à televisão, melhor ainda, a reportagem registraria nossas precárias condições de trabalho, a papelada parada por falta de pessoal, as viaturas com problemas e a chefia sempre interrompida por uma reunião de emergência, que nunca dá em nada.

Por falar em reunião, eu poderia me disponibilizar para freqüentá-las e assim teria mais motivos para cultivar o ócio, pois quase sempre são eventos em que todos falam demais, retorizam demais, acham demais, se magoam demais, para no final se marcar a próxima reunião, a fim de dar andamento ao que não foi discutido; ou seja, tudo.

Qualquer machucadinho me valeria um atestado médico, bastando levá-lo com antecedência à divisão operacional, o que me renderia três dias de papo para o ar, corrompendo assim um direito que deveria apenas resguardar a saúde do trabalhador. Mas quem se importa?

Vai haver protesto? O contribuinte que se lasque! Será um dia inteiro com o álibi perfeito para vadiar e ao mesmo tempo agir em causa própria, ninguém pode punir alguém por reivindicar direitos trabalhistas.

O colega não fez o seu trabalho? Maravilha. Basta eu folhear peças e processos, coçar a cabeça de vez em quando e fazer as caminhadas pelo departamento, porque a culpa será toda dele. Aliás, a culpa será deste governo corrupto e reacionário, que explora o tabalhador assalariado em prol dos interesses bla-bla, bla-bla, bla-bla...

A culpa sempre seria do outro, mesmo que o outro não exista. Se fizesse tudo isto, eu seria muito popular.

Só que eu não fico de papo pelos corredores, não sei das últimas bobagens inúteis da televisão, não falto ao trabalho mesmo (isto em mim é crônico) com a cabeça estourando, não perco as preciosas horas da manhã alimentando intrigas internas, não desisto de um trabalho se o procedimento padrão não funcionou, e geralmente não funciona... É triste ter que admitir que, às vezes, o Boris Casoy tem razão. Tenho certeza de ter inimigos não declarados por isto.

Hoje eu votaria pelo fim da estabilidade do servidor público, ao menos do jeito que está não deveria permanecer. Porque quem quer fazer hora extra, e o contribuinte sempre precisa de hora extra, não recebe e às vezes é proibido, mas quem entra mais tarde e sai mais cedo não tem um centavo de desconto, mesmo sem se justificar. Quem quer fazer o que a honestidade espera de um servidor púiblico é trouxa, pelego, uma pernona non grata no ambiente. Estamos na iminência de perder colegas de grande valor por isso, e ninguém dá a mínima.

2 comentários:

Adriane Schroeder disse...

Vadiar é para quem não se importa.
Eu me importo.
Sou funcionária pública. Se falto 4vezes num mês, e só posso fazê-lo diante de atestado médico (como mês passado, atingida por amigdalite e faringite bacterianas causadas por uma cepa muito resistente), tenho de ir à perícia e apresentar todos os exames.
Mas tem quem engane os peritos e não se importe. E, estranho, a cobrança sempre vem pros que se importam. É soda, como diria Fócratres.

Nanael Soubaim disse...

Para piorar, se eu fosse sair, não teria como conseguir um emprego decente.