Vamo comer uma pizza, meu. |
Os grandes amigos de outrora não sabiam explicar como ela conseguia, esperavam vê-la aos pandarecos, deprimida e completamente humilhada. Mas não, ela fazia questão de desfilar naquele Mercedes-Benz conversível em baixa velocidade, esfregando nas suas caras a boa situação que exalava. Pelas regras da hipocrisia diária, eram obrigados a cumprimentá-la e desejar-lhe bom dia, embora a vontade fosse roubar seu carro e a atropelar com ele.
No shopping, era sempre vista pagando contas no caixa electrônico, para depois entrar nas lojas e lanchonetes. Os vendedores reconheciam a cliente exigente que era, quase nunca tinham o que ela procurava, mas viam sua persistência quando, no estacionamento, colocava as sacolas no porta-malas. Seletiva, já tinha banido algumas marcas de sua lista.
Não bastasse tudo isso, era vista dando um show de civilidade no trânsito, sempre respeitando a sinalização, dando a vez aos pedestres, nunca buzinando e se mantendo à direita. Se tivessem um pouco de vergonha, se envergonhariam. Mas só têm despeito, arrogância, egoísmo. Já mandaram toneladas de fofocas e calúnias para as colunas sociais e ela nem demonstra contrariedade. Se mostra altiva, superior, andando firme e a passos largos, estampando "PODEROSA" nas legendas e pensamentos alheios.
Quando a abordavam ela cumprimentava civilizadamente, mas mantendo a devida distância. Foram meses calando bocas e baixando cristas até que um dia sumiu. Mudou o e-mail e migrou o blog sem avisar a ninguém. O celular caríssimo, com a linha, foi dado de presente para uma empregada fiél, mas que não pôde acompanhá-la por causa da família.
Vendeu as empresas por bem mais do que pensavam que valessem. Queriam comprá-las a preço de banana e demorar a pagar por elas, talvez até enrolando para que nunca precisassem pagar. Em um meio onde todos se toleravam por conveniências, ela parecia ter se tornado desinteressante quando o marido morreu. A cena que os jornais mostraram era para fazê-la dar cabo de si; ele e dois garotos de programa nús, em um motel de quinta categoria, com sintomas de overdose, os três mortos. Nos primeiros dias ela até que sofreu um recolhimento forçado, mas depois emergiu diante de olhares incrédulos. Não conseguiram encontrar um só podre que justificasse sua boa fase, nem mesmo um amante socialmente inaceitável. Nada.
O que ninguém sabia porém, era que tudo não passava de aparências. No primeiro mês, para preservar a própria sanidade, colocava suas próprias roupas em sacolas de grifes caríssimas, preferencialmente daquelas que não perguntam e não dão informações sobre sua clientela, e saía pelos centros de consumo mais caros da cidade. Não sabia até quando o dinheiro que tinha duraria, então parou de gastar com supérfulos por puro instinto de sobrevivência, mas não poderia dar àqueles hipócritas o gosto de verem-na na sarjeta. Passou a andar bem devagar com o SL600 para poupar combustível e peças, mais que para respeitar o limite de velocidade. Redobrou os cuidados com a condução para evitar acidentes, bem como para não receber as multas que já não poderia pagar. Civilizou-se na marra.
Comprava pouco, mas não comprava peças baratas, comprava peças duráveis e do melhor acabamento, no fim das contas economizava. A alimentação ficou natural também na marra, fez a contas e descobriu que assim economizaria com cosméticos, pois para dar andamento aos seus planos não poderia descuidar da boa aparência. Dormir e acordar cedo fazia parte da nova rotina.
Tudo o que exibia não passava de aparências, tão somente aparências. Mas não foi isto que lhe ensinaram para fazer parte da "sociedade"? Pois aprendeu e se tornou melhor do que os mestres da hipocrisia. Ninguém podia imaginar que ela passava o dia fazendo contas, remanejando despesas e cortando supérfulos. Aprendeu a usar as revistas de sodoku para fingir que se divertia, quando estava era calculando o orçamento do mês. Estava vivendo muito modestamente, na verdade, mas dando a entender que nunca estivera em melhor situação financeira. Desfilar e sumir repentinamente lhe dava um ar principesco.
A bem da verdade, quase que deu cabo de si, realmente. Foi proibida pelo marido de trabalhar, teria que ser a "rainha do lar", e na sua concepção uma rainha era uma peça meramente decorativa. Sua inteligência era sumariamente ignorada, preferiam vê-la a ouvi-la. Todos a incentivavam ao casamento por interesse. O ex-namorado, hoje casado, vive bem, sem problemas e a esposa não passa pelos sufocos que foi obrigada a engolir calada. Ninguém aceitava ouvir que ela não era feliz, já que a parte material estava suprida e é só o que lhes interessava. Amor não valia nada, afinal não enche barriga. Só o que não levavam em conta, e viu de perto, era a infelicidade generalizada de pessoas que se vendiam umas às outras diariamente, para dar satisfações ao terrível "deus sociedade". Suicídios de "amigas" que foram abafados e registrados como taquicardias, derrames e outras doenças corriqueiras eram comuns, afinal tinham os donos de jornais nos bolsos e precisavam iludir a si mesmos para que não fizessem o mesmo. Precisavam e ainda precisam que o mundo acredite que suas vidas são felizes e perfeitas, para que possam ouvir isto de quem não conhece suas realidades e assim programar seus cérebros para acreditarem na mentira. E quer mentira maior do que o colunismo social pago?
Sim, ela soube de ricos felizes, mas eram poucos. Fizeram algo que eles jamais cogitariam, temendo o que os outros pudessem pensar: desceram do pedestal. Não admitiam não serem vistos como seres superiores.
As photographias de jornal, as matérias de televisão, tudo falso. Era constantemente ameaçada pelo marido para que não desse vexame, especialmente quando começou a desconfiar de seu gosto por rapazes. Ele não podia deixar a fama de machão cair por terra, era o seu status. Ser homophobico em nome da sua religião era o que mais lhe dava aceitação social em seu meio. Com esta aceitação conseguia obter negócios e negociatas mais vantajosos. Precisava ser cada vez mais agressivo diante da esposa para preservar seus porões. Não era à toa que raramente visitava a família, nunca sem ele por perto. Foi obrigada a abortar porque ele acreditava que a criança não seria um menino. Tudo acobertado. A fiscalização não aparecia, pois sempre havia um deputado para "defender a moral da família brasileira" e evitar um escândalo, não raro com capangas.
Sem filhos, apesar do sofrimento, tudo ficou mais fácil. Sem que os outros vissem, cuspiu no caixão e ficou lá até ter certeza de que estaria bem enterrado. Mandou colocar duas placas de cimento para que não houvesse a mínima chance de ele conseguir sair, se aquilo fosse apenas catalepsia. Foi para casa ver o que faria da vida. Ficou vários dias se informando, estudando e tomando ciência de tudo o que ele não lhe permitia saber. Conseguiu saber o suficiente do patrimônio para traçar sua estratégia. Por ironia, a tragédia seria sua tábua de salvação. Viu seu algoz ali, morto, frio. Viu o caixão ser fechado e não saiu de perto até ter certeza de que estivesse bem travado. Não deu no pé até ver as mudas de guiné serem plantadas no túmulo. Seu trauma estava morto e enterrado. Fora o que lhe ensinaram não fora? Estava agindo por interesse pessoal, e seu interesse era se livrar daquele mundo falso, daquela bolha de aparências que ajuda a manter o país no terceiro mundo. Desde a viuvez que suas imagens na mídia eram ignoradas, de "dama da sociedade" passara a ser apenas uma figurante sem importância. Admirou ainda mais os cães desde então.
Pediu segredo aos pais, contou tudo pelo que passara e o que pretendia. A família toda recomeçaria a vida em São Paulo, onde o anonimato do indivíduo garantiria sua retomada. Eles foram primeiro, para a casa de uma parente distante, até a mobília chegar ao apartamento comprado.
Parte de sua estratégia foi não mais publicar balanços das empresas, que iam mal, mas não como se pensava. Abriu perfis falsos em redes sociais para sondar possíveis compradores, em quem concentrou esforços e conseguiu os frutos devidos. Enquanto os chacais sociais idolatrados pelos jornais esperavam com as moedinhas em mãos, ela desmembrava e vendia cada empresa, tendo o cuidado para só oficializar tudo na última hora. Nem mesmo seus gerentes, tão más figuras quanto o falecido, souberam até ser tarde demais. Foi deles que partiu o alarme tardio que pegou a todos de surpresa.
E lá ia ela, exibindo uma prosperidade que não havia, uma civilidade forçada, uma vida ainda mais falsa do que a daquela gente. Tão falsa que parecia verdadeira. A única cousa verdadeira estava de mudança para São Paulo, próximo à subprefeitura de Pinheiros. Lá ninguém lhe conhecia, ninguém sabia de seu passado nem estava interessado em sua tragédia. Ninguém além da família. Tanto melhor, estava conseguindo superar tudo sozinha. Sempre esteve sozinha, não era a presença daquela bicha troglodita que coçava as partes a toda hora que revertia a solidão.
São Paulo gosta de quem trabalha. Ela estava entrando de sócia em uma pizzaria vinte e quatro horas, que só precisava desse investimento para deslanchar. E foi tão bem recebida nas vezes em que esteve lá, os nativos desmentiram na prática tudo o que se falava da cidade. E o que ela fazia naquele casamento de araque nada menos era que trabalho árduo, em regime de semi-escravidão.
Mas acabou! Deu tudo o que não vendeu de presente para as empregadas, inclusive as casinhas em que moram, viajou pra Brasília, lá vendeu o Mercedes e voou para São Paulo. Os pais a esperavam ansiosos em Guarulhos, onde o choro típico do nascimento delongou por quase uma hora. Vida nova.
Acabou! A vida de aparências acabou! Está livre! Nunca mais quer rever aqueles arremedos de pessoas. Nunca mais precisará dar beijinhos em açougueiras que posam de boas cristãs. Nunca mais terá que aparecer ao lado de políticos que acabaram que vender seus eleitores para quem pagou mais. Poderá tacar tomate podre neles sem medo. Plantará e cultivará amigos de verdade, companheiros para assegurar sua sanidade mental, fará o que aquela vida falsa não lhe permitia. A vida começa hoje, e o que é melhor, pizza grátis todos os dias.
2 comentários:
Muito bacana a história!
E olha, deve ser uma regra homofóbico se esconder no armário.
Essa hipocrisia é folder.
Todo Tiãozão-da-construção faz exame de próstata três vezes por mês.
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