A liberdade é um dos pretextos preferidos de quem quer fazer besteira, sem se importar com riscos ou conseqüências, só com o próprio umbigo. Ouço berros histéricos sempre que o facto de eu não querer fazer besteiras chega ao conhecimento de gente que vê cada um na obrigação de fazê-lo, como se minha recusa fosse uma ameaça ao seu modo de vida. Talvez porque "Todo mundo faz" também seja um bordão muito recorrente para essas pesoas. O problema é quando começam a disseminar a idéia de que quem não faz é hipócrita, enrustido, et cétera.
Há um adesivo infame, que até parece ser legítimo, que diz "Deus deu a vida, para que cada um cuide da sua". Seria até nobre, se o tipo de gente que cola cousas assim em seus carros não costumasse ser justo o que gosta de incomodar os outros, e ainda caçar briga se alguém se manifestar. Pessoas que, para usufruir da própria liberdade, se vêem no direito de tolher a do próximo; e até a do distante, porque esses carros com som são um inferno! Mas vai ligar o som do teu carro com algo que ele não gosta!
Comecemos pelo cigarro. O outro quer cometer suicídio? O problema seria só dele, se morasse sozinho desde o início da vida em um lugar isolado, onde no máximo um pesquisador aparecesse vez ou outra para colher dados, e então concluir com uma indicação do suicida para o Prêmio Darwin. A fumaça do cigarro não vai para onde o fumante quer, então não adianta ficar à porta, dar cem metros de distância, baforar para cima, nem cousa alguma. A fumaça é um amontoado de gases, ela obedece o fluxo do ar e vai para onde ele a levar. Fumaça não tem controle remoto. O fumante não percebe em seu olfato desgastado, mas o fedor da nicotina dura horas e é intenso. Quem estiver perto de ti mesmo assim, e não for fumante, pode dar-lhe uma procuração, este gosta de ti como de um filho. Há quem ache que se não gostas de cigarro, não gostas do fumante e começa a implicar. Também há os panacas que vestem a carapuça e querem fazer com os fumantes o mesmo que gostariam de fazer com o cigarro, tentando fazer a pessoa ser reduzida publicamente a uma erva em brasas. Bom senso passou longe, heim!
Quem vive em sociedade não tem liberdade plena. Nunca. Provavelmente nenhum eremita jamais teve liberdade plena. Para tê-la, seria preciso que seus actos não afetassem a ninguém, mas ninguém mesmo. Infelizmente devo informar que tudo o que se faz afeta alguém, em menor ou maior grau. Se tu entras no ônibus e se sentas em qualqueer lugar, o que entrar depois pode te ver como um invasor de seu lugar preferido. Neste caso não há direiro de reclamação, o ônibus é público e quem chega primeiro escolhe onde se sentar, salvo disposições legais em contrário. Mas se ligas teu aparelho de som em volume acima de tua audição exclusiva (o que é proibido, podem chamar a polícia se quiserem) já excedeste o teu direito. Como espaço público, o ônibus deve ser o mais neutro possível, pois ninguém é obrigado a partilhar das preferências alheias. Não é da tua conta as agruras pelas quais os outros passaram até o momento do embarque, é com eles e não devem te incomodar com isto. Não é da conta dos outros passageiros o teu gosto ou mau gosto para sonorização, para isto existem os phones de ouvido. Com eles, o que ouves está dentro do teu espaço, sem eles estás invadindo o espaço alheio, o que daria a qualquer um o direito de revidar com algo de que tu certamente não gostas em volume igual ou maior.
Lembre-se de que isto seria o exercício de tua mentalidade, o outro estaria fazendo o que tu estarias fazendo; se lixando para quem não gosta e se metendo na vida alheia. Ou achas que incomodar não é se meter na vida do outro? É mais ou menos como alguém entrar na tua casa, sem a tua permissão, e começar a soltar asneiras goste tu ou não. Resultado? Briga.
Não fosse o Estado de Direito, mesmo com todas as mazelas que carrega, ainda estaríamos na barbárie. Notícias que nos chocam e dão audiência não seriam sequer veiculadas, pois ninguém se importaria. Um dos mecanismos para isto, devo informar com todo o respeito, é a restrição da liberdade. Ainda hoje tem vagabundo que se acha no direito de matar a mulher que tentar findar uma relação, ele acredita que está no exercício de sua liberdade de macho. Sem a lei e seus recursos de inibição, catar pedaços de corpos pelas ruas faria parte da rotina da limpeza pública, e ninguém veria nada demais.
Parece estúrdia a comparação? Asseguro que não. Os princípios são os mesmos. As pessoas acreditam que têm o direito de viver plenamente suas vidas, mas o conceito de "viver plenamente" muda muito de pesoa para pessoa. A maioria sem grandes sobressaltos, mas muitos são conscientemente nocivos. Agridem aos outros pelo simples prazer de transgredir e sair impune.
Tocando na ferida, quem usa drogas ilícitas alegando que ninguém tem nada a ver com isso é, no mínimo, egoísta. Na esphera social, quem usa financia o traficante. É de tostão em tostão que o arsenal das quadrilhas se forma, quanto mais fontes, mais difícil de rastrear. O "prazer" de quem usa prejudica uma sociedade inteira.
Na esphera pessoal, caso vocês não tenham percebido, uma comunidade é feita de todos os seus integrantes. Se um falta, ainda que provisoriamente, afeta o funcionamento do grupo, tanto mais quanto mais coeso este for. Quem usa afeta a vida de quem está ao redor. Queira ou não, o teu abuso de "liberdade" faz mal à tua família, aos verdadeiros amigos - que os falsos querem é te ver picotado por balas - e todas as pessoas com quem tens alguma convivência. Quer se matar? Primeiro espere a maioridade, rompa todos os laços e se jogue de um avião com a mochila vazia. A sensação de alteração de consciência é semelhante, só que causa menos sofrimento aos que ficarem. Se tu não respeitas o bem-estar dos teus entes, como queres que respeitem as tuas decisões? Aliás, tens mesmo idade (inclusive mental) para tomar decisões importantes? Seja o que fizeres, não importa o quê, vai afetar alguém. Se tens um mínimo de consideração por alguém que não habite o teu corpo, faça algo reversível. Quando começar a empolgar, é o sinal vermelho para pedir ajuda, ainda é fácil voltar atrás.
Se alguém se zangou com o que eu cabei de dizer, feche a página e vá ver outra cousa. Depois, se quiser, com a cuca fresca, volte a ler desde o início. Não estou tentando tolher, embora lhe pareça, a liberdade de ninguém. Só demonstrando o quão relativa e até ilusória é a liberdade humana. Não pensem que foi fácil para mim, ainda saindo da adolescência, concluir que esta vida NÃO É MINHA. Sou sócio majoritário, minhas decisões prevalecem, ou deveriam prevalecer, mas de tudo o que eu decidir os outros sócios terão dividendos ou prejuízos. É por isto que os amigos de verdade muitas vezes parecem ser chatos, implicantes, querendo meter o bedelho onde não foram chamados. Acontece que nós os chamamos, quando os aceitamos como amigos, com isto também trocamos ações da Vida S/A. Alguns têm participação acionária suficiente para nos dar sermões.
E a sua mãe, como vai? Os cabelos brancos dela são naturais ou forçados pelo estresse? E de onde vem o estresse?
Ter um filho é estressante por natureza, mas a maioria adora assim mesmo. Ter um filho estessante é passaporte para o enfarto precoce. Faça o favor de não piorar. Há uma diferença entre "curtir a vida adoidado" e curtir a própria pele em vida, infelizmente a maioria dos adeptos do "não se meta na minha vida, mas me meto na tua" não consegue ver a fronteira, pois está muito embriagada com os próprios gozos.
Todos são obrigados a rspeitar aquelas tuas calças ridículas, o teu penteado estrambólico e aquela camisa que parece ter saído de uma convenção dadaísta. Comer porcaria, até certo ponto, também não é da conta de ninguém. Até certo ponto porque se tu passas mal e não consegues se virar sozinho, o erário público terá que arcar com o socorro, até teu plano de saúde ser contactado. Se cair na rua e te atropelarem, aí é que complica, porque a área poderá ficar interditada pelo dia inteiro, se for fatal nem penses nos transtornos que causarás, vais ter vontade de meter a cabeça na parede. Mas alguém terá que lavar o sangue da parede e duvi-de-o-dó que se prontifiques.
Dá sim para curtir a vida adoidado sem destruí-la. Dá para ter muito mais liberdade do que imaginas sem prejudicar quem está por perto. Se pensas que és livre por fazer baderna, pense de novo, és escravo de um grupo que te esfola vivo (literalmente) no dia em que quiseres sair. A polícia não bate com o carinho da mamãe, podes ter certeza. Olhar um policial de frente e poder pedir informações não é liberdade? Regras não são invenções humanas, só as ridículas. O universo segue regras, e a principal é que dois corpos com massa se atraem. Nem as partículas são totalmente livres. Entre os animais existem regras, aliás, extremamente rígidas. Nenhum bicho, mesmo os solitários, é totalmente livre. Os animais sabem o que devem evitar e evitam, sabem escolher um caminho e não se desviam dele, sabem que não devem afrontar criaturas de grande porte e não afrontam. Mesmo entre as plantas há regras, a diferença é que são totalmente conduzidas pelo ambiente. Nenhum animal em estado natural se queixa das limitações, o que fazem é aproveitar ao máximo a liberdade de que dispõe, vivendo dentro dela tudo a que têm direito, como se fosse cada minuto o último da vida, porque na selva pode ser o último.
Regras de convivência são naturais. Só mesmo a boçalidade intrínseca do Homo-imbecilis as rompe por puro prazer e ainda acredita que ninguém tem nada a ver com isso. Todos têm algo a ver com o que te acontece, poucos têm ações suficientes para se sentirem afetados, menos ainda para dat pitacos, mas têm. Exija respeito pelo teu espaço, mas tenhas ciência de que ele não é inexpugnável, principalmente se invadires o alheio. Sempre haverá alguém mais forte e, em vez de te matar e te tornar uma lenda entre aqueles debilóides que chamas de amigos, pode preferir te deixar em uma cadeira de rodas pelo resto de tua vida egoica, inerte do pescoço para baixo, dependendo dos outros até para se alimentar. Aí vais não só depender dos outros, como terás que aceitar tudo o que fizerem perto de ti sem ter como revidar. Garanto que há muita gente nesta situação, ela nada tem de hipotética, basta visitar um hospital de urgências ou uma clínica de reabilitação motora. O retardado que dirigia como se fosse um piloto, verás, hoje só vai aonde quem empurra a cadeira quiser. A pouca liberdade que lhe coube ficou no asfalto onde dela abusou.
Quer um exemplo de irresponsabilidade calculada? Veja o filme "Curtindo a Vida Adoidado" rodado em 1985, e do qual deixo um trecho em vídeo. Vais aprender mais sobre liberdade com ele, do que em anos maltratando tua família e tua comunidade. Porque é fava contada que quando tiveres a minha idade, se ainda lhe restar um pingo de sanidade mental, vais dar razão a tudo o que eu escrevi aqui... É, estou ficando velho.
sexta-feira, 1 de outubro de 2010
A fumaça vai com o vento
Postado por Nanael Soubaim às 20:57
Marcadores: Nanael Soubaim
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2 comentários:
Adoro Curtindo a vida...
Texto excelente, nanael.
O filme é um exemplo perfeito de transgressão bem calculada e por uma boa causa.
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