sábado, 20 de março de 2010

Da não liberação das drogas


A alegação de que a descriminalização reduziria o poder do tráfico esbarra na mesma questão dos jogos de azar, o próprio Estado oferece e dá concessões de jogos, mesmo assim os cassinos clandestinos continuam existindo. É assim com qualquer vício. Não se trata de questão social, o indivíduo parte para a clandestinidade para lucrar mais, fazer o que bem entender sem ter que dar satisfações, até ser descoberto e preso, é claro. O traficante não quer um meio para sustentar sua família, ele quer dinheiro e poder, não importa a que custo.

Quando se fala no assunto se esquece, ainda, que não bastaria autorizar e sair ao primeiro supermercado para comprar um maço do baseado. Tratamos aqui de entorpecentes fortes, que na legalidade estão sujeitos a regras rígidas. Já vi pharmácias de manipulação tradicionais fecharem e seus responsáveis técnico e legal serem presos, enquadrados em tráfico de entorpecentes, porque um balconista mau caráter vendeu mais anabolizantes do que todo o Estado de Goiás seria capaz de consumir, para uso terapêutico.

Na hipótese da legalização, os productos só poderiam ser produzidos ou importados, distribuídos, manipulados e vendidos no varejo por estabelecimentos credenciados. Seria necessário ter um livro electrônico para registro de entrada e saída de matéria-prima e doses prontas, registro de talonários de receitas B2, presença de um pharmacêutico durante todo o período de funcionamento do estabelecimento, alvará sanitário, caderneta de registro de irregularidades, responsáveis técnicos capacitados, enfim, toda uma estrutura que custa caro erguer e manter, e que reduz muito os bons lucros que o ramo de medicamentos permite. Um estabelecimento legalizado dá satisfações até mesmo do modo (não estou brincando) como a mobília é disposta.

O fornecimento de matéria-prima só poderia ser feito por indústrias legalizadas, que têm custos altos. Não tanto quanto os lucros, mas têm. E quando eu digo "custos altos", é como comparar um jogador de basquete com um jóquei. A legislação é dura e actualizada com freqüência. Quem se acostumou a ganhar muito sem sequer tratar direito o consumidor, não vai abrir mão do lucro fácil e rápido para se adequar às normas sanitárias e tributárias, principalmente às tributárias. O poder vicia, raras pessoas estão preparadas para ele e os traficantes não estão, por isto são dependentes dele.

Agora, na remotíssima, praticamente folclórica descriminalização para uso recreativo, a lei seria novamente um entrave. A constituição preconiza a igualdade de todos perante a lei. Se os traficantes puderem oferecer livremente seus entorpecentes, então os laboratórios também poderão. Se tu podes comprar um papelote de qualquer pó na esquina, então as tarjas de controle serão banidas. Drogarias e pharmácias poderão vender livremente e por preços menores, substâncias alucinógenas, anorexígenas, enrtorpecentes e outros. Por que? Porque eles têm estrutura para isto. Uma indústria compra toneladas diárias de substâncias químicas e princípios activos, com isto o custo unitário de cada dose é baixíssimo. Uma empresa legalizada tem condições e obrigação de oferecer garantia daquilo que vende. Quantos usuários já não reclamaram de haver farinha no meio do pó, ou morreram de imediato porque havia veneno misturado! Um estabelecimento legalizado seria duramente penalizado até mesmo por um mal-estar não descrito nos efeitos colaterais, constantes na bula. Ah, sim, haveria uma bula informando até mesmo o que fazer em caso de adversidades. O preço inclui a verba para indenizações. Na legalidade se exige um padrão mínimo de qualidade e seu monitoramento permanente, tanto a matéria-prima quanto o producto acabado devem permanecer em condições climáticas favoráveis à sua preservação. No caso do uso ilegal, se cair na rua todo mundo foge para não levar a culpa. Climatização e limpeza não estão nos planos de um traficante, indenização então, nem pensar.

Com o poder da mídia a seu favor, as empresas legalmente estabelecidas poderiam fazer uma campanha maciça, vibrante, algo como "Seu barato não pode sair caro" ou "Viva para o próximo barato". Esmagariam rapidamente os vendedores ilegais, que assim teriam que passar a ser empregados ou arranjar outro emprego. Francamente? Eles arranjariam outra actividade ilícita para ganhar dinheiro fácil e poder dar demonstrações de poder. Talvez passassem a assaltar drogarias para continuar vendendo a preços competitivos.

No caso do usuário, ele poderia alegar que ninguém tem nada a ver com a sua vida somente se vivesse em uma caverna, no deserto, longe de todo mundo. Mas enquanto estiver em meio social, vai onerar o erário público. Vai consumir força policial, jurídica e as já precárias prestações de serviço da Saúde Pública, porque não se sujeitaria aos trâmites do uso legalizado. Um viciado entorpecido pode ser considerado como um bêbado bastante piorado, com todas as conseqüências inerentes para a comunidade. Doses de entorpecentes registrados são controladas para fazer o efeito necessário e manter o paciente vivo, e mesmo assim ocorrem casos fatais. Entorpecentes ilegais são preparados para suprir a necessidade de doses cada vez maiores, não importa a que preço.

Por tudo o que disse, ainda que o Fungando Henrique Cheiroso seja garoto-propaganda, as drogas actualmente ilícitas não poderão ser liberadas tão cedo, não enquanto não houver controle sobre o tráfico e de modo algum para fins recreativos. Não se trata de ser careta nem de querer tolher a liberdade alheia, mas de saúde e segurança públicas. Se trata de ser o que se passa a ser aos dezoito anos: adulto. Reconhecer que o mundo não existe para suprir nossos prazeres e que estes devem ser conseqüências de alcançar um objectivo, não o objectivo. Isto faz parte de ser adulto.

Sou particularmente a favor do uso terapêutico dessas substâncias, sei muito bem o bem que o uso correcto proporciona. Mas no contexto em que vivemos não dá. Controlar o crime organizado pode abrir caminho para legalizar o uso útil das ervas hoje proibidas, o que depende muito dos usuários, mas simplesmente liberar não vai reduzir a criminalidade. Sim, é certo que existem empresas de fachada, legalizadas apenas para camuflar o tráfico, mas mais hora, menos hora elas caem. Sua existência não constitui argumento pró descriminalização.

Se alguém quer fazer uso de entorpecentes de modo seguro, com o devido amparo, que procure um psiquiatra. No decorrer do tratamento as doses serão ministradas com critério médico, até ele saber exactamente o que fazer. Asseguro que em pouco tempo ele traz a tua maturidade à tona e a vontade passa. Vida de adulto não é tão chata como fazem parecer, chato é adolescente ganhar idade, querer liberdade e não querer assumir os ônus da vida adulta.

2 comentários:

Adriane Schroeder disse...

Muito sensato, Nanael.
A descriminalização das drogas apenas transformaria o tráfico em descaminho (importação ilegal de produto legal), pirataria, sem deixar de existir o contrabando (comércio de produto ilegal).
Só entre nós: quando me dizem que a maconha é natural, eu digo que cicuta também é. Vai um chazinho? :P

Nanael Soubaim disse...

O chocolate é manufaturado, mas é um dos alimentos mais saudáveis que a ciência e a magia conhecem, tanto que a cada dia se descobre um novo poder terapêutico. Eles usam qualquer desculpa para justificar suas asneiras.