sexta-feira, 14 de maio de 2010

De brinde, o carro

Entre cálculos e negociações, os dois conseguem fazer um abatimento aqui, outro acolá, adicionar um agrado, mas continua caro. Entretanto, sabem que o que o Estado dá com uma mão, tira com a outra e ainda cobra pelos honorários.
O primeiro lote vem com ICMS, royalties, ISSQN, Confins, Seguro ambiental, Seguro de logística, pedágio (que também tem ICMS, IPTU, et cetera) entre outros menores...
- Mas como assim?
- É que são sete pedágios ao longo da estrada, a velocidade média mal passa dos sessenta por hora. E dá-lhe troca de marchas, frenar, acelerar, retomar velocidade, queimar mais combustível... Só em São Paulo o rapaz pagou quarenta e quatro passagens de pedágio.
- Tá, entendi. Por que IPI? Não é só matéria-prima?
- Sim, mas utilizam maquinário importado caríssimo. Fabricar esse equipamento aqui custaria mais do que a própria jazida.
- Lá fora não se paga isso.
- Não, mas entrando aqui, tem que pagar.
- Meu Deus... Vá, continua. E o segundo lote?
Novamente vêm ICMS, ISSQN, royalties, Confins, Seguros de toda sorte, IPVA, IPI directo, IPTU, entre outros menores. O caminhoneiro paga IPVA, Seguros, Pedágios para dar com pau, ICMS pois tem que fornecer nota do serviço prestado, manutenção e alimentação do caminhão. O posto de combustível também paga e repassa uma horda de impostos em cascatas, em série e paralelas...
- E ainda não acabou?
- Tá na metade. Mas sabe que é juro sobre juro, né.
- Então eu vou levar o carro de brinde, tô comprando imposto, meu!
- Poderia ser pior. Se você tivesse optado por aquele importado tão "baratinho", iria morrer em um motor novo, também importado, no primeiro defeito que desse.
- Por exemplo?
- Gasolina adulterada, porque eles não bebem etanol. Conhece alguém que saiba mexer naqueles motorzinhos made in China? Um V8 americano é mais barato de manter e consertar.
- É. Pior...
O próximo bloco repete todos os impostos supracitados, adicionando o licenciamento da frota, os gastos com empresa de segurança privada, licença especial para armazenar combustível, enfim, chegam ao preço do carro...
- vinte e um mil reais, redondos. Fora o licenciamento, o seguro, você sabe.
- Só pra me localizar, sem os impostos cobrados na mineradora, depois de novo os mesmos na siderúrgica e na petroquímica, novamente na fábrica e prestadores de serviços, final e novamente em cima de vocês, quanto custaria?
- Vamos ver... Vamos sentar. Sônia, pega o calmante.
Leva-o para uma poltrona confortável, próximo à caixa de primeiros socorros, onde um piripaque pode ser rapidamente socorrido...
- Oito mil reais.
- Putz-que-paralho!
Ele não passa mal, mas é uma dificuldade conter sua indignação. Não fosse a taxação em cascata, progressiva e com ágio, poderia estar comprando um sedã de médio luxo em vez de um hatch popular semi-urbano. Enfim, como comprou na promoção, levará a pintura metálica.
Volta no dia seguinte, para buscar o carro regularizado. O vendedor lhe entrega um grosso encadernado com notas fiscais de todos os impostos pagos, desde as fontes de matéria-prima até a assinatura do cheque...
- Ali está o seu brinde.
Aponta para um carrinho com não mais que três metros e meio de comprimento por um e meio de largura. Leva quatro adultos sem folga, desde que não sejam muito pesados, pois o torque do motor não dá para muito. Não é tão econômico, os testes são feitos em situações alheias á realidade, aqui fora existem rampas, variação de carga e tudo mais que um motor fraco pena para empurrar, acaba bebendo mais que um mais potente...
- O que ele tem?
- Vamos lá. Motor de quinhentas cilindradas, dois cilindros, pneus 135/00-R-13. Velocidade máxima de 125km/h, faz de zero a cem em quarenta e seis segundos...
Lágrimas escorrem a cada linha da ficha técnica. Deveria ter aceito o convite do irmão e ir morar com ele na Irlanda, mas agora não dá, não com mulher e filho. Não acredita que vendeu seu Monza com painel digital para comprar um monte de impostos, acompanhados de um pedaço de lata que faz o antigo Mille parecer uma Maserati. Até o vendedor tem vergonha de oferecer um carrinho para adolescentes a um pai de família, mas sai muito caro homologar um carro no Brasil. Agora ele sabe porque não deixam importar caros usados, mesmo os que atendem às legislações de segurança e emissões. Por este preço compraria fácil um Caprice com décadas de vida útil pela frente. Sempre quis ter um Caprice.
Sem rádio, bancos de lona estofada e armada em tubos de aço, direção mecânica, acabamento de plástico barato, suspensão por duros feixes de mola nas quatro rodas e interior preto fosco, a pintura é só externa, para poupar tinta. Liga o motor de seu Nacional Meio e ouve o sopro anêmico dos trinta e nove cavalos a altos 6500 giros. Tem que acelerar muito para ter alguma potência. Os pneus, três centímetros mais finos do que os dos antigos populares de mil cilindradas, são duros e transmitem até o relevo do piso de concreto. Mas ele sabe que está dirigindo um brinde, um chaveirinho que acompanha tantos impostos que não lhe dão benefício algum, que o calhamaço completo certamente pesaria mais do que o carro. De cara mantém a curta primeira marcha para, com esforço, vencer a rampa da concessionária. Que enganação! Até o Fusquinha 1300L ano 1977 do seu pai acelera mais, na metade do tempo e com carga plena. Mas já gastou o dinheiro. Ganha a rua.
Ao lado vê, parado no sinaleiro, um BMW Série 1, pelos quais os alemães pagam o que vale. Mas o dono teve que desembolsar o valor de uma casa para tirá-lo da loja, imagina só o valor das peças. Sorte dele que BMW não quebra. Já o seu Nacional Meio não inspira confiabilidade, não para o uso intenso a que se destina, mais adequado a uma perua de tração traseira. O BMW sai silente e rápido quando abre o sinal, o Meio sai esgoelando meia potência para acompanhar o trânsito. Poderia ter mais um cilindro, sim, mas a montadora teria que pagar a carga tributária de dois cilindros extras e encareceria muito o carrinho, que ficaria de fora do programa do governo. Logo descobre que da terceira não pode passar, não na cidade, senão perde velocidade na primeira ladeira. Ah, se arrependimento matasse, se pudesse não ser responsável pelos canalhas que elegeu, se pudesse ter sido uma boa pessoa na encarnação passada e ter nascido Belga, por exemplo.
Chegando em casa, triste, dá de cara com um Chevrolet Caprice Wagon, semi-nova com alimentação de Fórmula Indy, para poder beber etanol. Vermelha, lindíssima, que custa no país de origem pouco mais do que pagou pelo treme-treme ambulante. Ao lado, fazendo pose com a chave, a mulher que sempre o faz lembrar porque a pediu em casamento...
- Esse sofrimento foi muito bem feito, pra você aprender a não cair na conversa do governo. Na próxima, você me ouve.
- Que carro é esse?
- Seu irmão falou com amigos da embaixada americana. Assim que venceu o prazo legal, ele comprou o carro pra gente. Com malandros, meu amor, aprende, só funciona a malandragem. Principalmente malandros em cargos eletivos. Foi tudo legal, nos mínimos detalhes. Dá esse treco aí pra sua sobrinha e vamos aproveitar o carro novo. Além do mais, não é seguro levar duas crianças pequenas nesse banco traseiro aí... É, estou grávida de novo.
Final feliz, mas só porque ela não acreditou na propaganda do governo.

4 comentários:

Adriane Schroeder disse...

Adorei.
A gente costuma criticar os inúmeros impostos pagos pelos servos durante o sistema feudal. Mas olha, talha, corvéia, banalidades, dízimo e tudo o mais não sei se eram tão pesados quanto nossa carga tributária.
Se ao menos não houvesse tanta corrupção e tantos ralos pelo caminho...

Anônimo disse...

Adorei o blog...
estava pesquisando sobre o artista Leonilson...e encontrie seu espaço...
beijos
Leca

Adriane Schroeder disse...

Bem-vinda, Leca!
:)

Nanael Soubaim disse...

E os povos antigos reclamavam de ter que pagar DEZ POR CENTO de impostos à Roma... Com esta alíquota os brasileiros teriam um padrão de vida nórdico.

Bem-vinda, Leca.