Centro Cultural Gustav Ritter |
É um alívio ouvir passos de sapateado e dança flamenca, logo após um imbecil passar com o som do carro ligado no último volume, fazendo alarmes dispararem e cabeças doerem, inclusive a minha. Digo "som" porque "música" eles não ouvem. Vocês ouvem jazz sem precisar do phone de ouvido? Música clássica? Blues? Eu ouço não só isso, mas também músicas sazonais e comemorativas antes do resto da cidade.
Já acompanhei várias vezes a evolução de alunos que começaram com uma cacophonia controlada, e em poucos meses já tocavam com maestria, desde músicas militares até a marcha imperial de Darth Vader, como o apresentado no vídeo do link. Sim, fãs de Guerra nas Estrelas, eu tenho esse prazer e vocês não. O repertório é tão eclético quanto bem escolhido, vocês têm que vir para ver.
Também é um colírio ver as pequenas bailarinas, pouco mais que bonequinhas de corda, saindo serelepes com suas mães, aquelas já cansadas e suadas, mas sem dar o braço a torcer à fadiga. Saem felizes as pequenas pelo dia recheado, e as mães porque seus rebentos tiveram uma actividade sadia e que vai ampará-los por toda a vida. Claro, também há as moças, elegantes, altivas e com aquele ar de dignidade que em muitos lugares faz parte apenas do passado. É quase anacrônico, mesmo com as adversidades que enfrentam, a altivez faz parte da grade.
Hoje mesmo duas bandas marciais estiveram na praça da matriz, em frente à entrada, fazendo um ensaio para o dia da proclamação da república. Preciso dizer que foi um espectáculo? Que todo mundo parou para ouvir? Que é um dos poucos privilégios que Campinas ainda reserva aos campineiros? Vocês podem até imaginar, mas só presenciando para sentir a alma leve e revigorada pela boa música, pelas notas afinadas, pela progressiva e contínua melhoria dos alunos, por ter cultura perene à disposição quando o país se preocupa com o destino de um "reality show de horrores".
O mais impressionante do Centro Cultural Gustav Ritter, porém, é a resistência ao descaso. Cultura nunca foi prioridade no Brasil República para absolutamente nenhum presidente. Nem mesmo um blog no nome do centro cultural eu encontrei, por mais que procurasse. O que acontece aqui é um crime contra a formação sócio-cultural de uma juventude inteira, que carece até de leitura simples. Se aproveitando do desdém que o povo costuma ter com manifestações culturais que não estimulem a pubis, o governo virou as costas durante os meses que precederam o pleito eleitoral, muitas vezes nem segurança interna o centro cultural teve. Na verdade faz tempo que não sei de guarda noturno. Piora o facto de um ginásio semi-abandonado dividir a quadra com ele, é um ponto de venda e uso de drogas que o prefeito e o governador não se preocupam em utilizar, o que afastaria os meliantes. Não sei o que se passa em suas cabeças, decerto que não é o bom andamento da cultura. Nem a boa formação artística e social que essa garotada tem lá dentro, muito menos o amor com que os professores se dedicam à instituição.
Faz não muito tempo que vagabundos atearam fogo à massa vegetal, que restou da poda do bosque que há dentro da meia quadra que o Gustav Ritter ocupa. Essa massa de folhas e galhos ficou na calçada por dias, sem que a prefeitura se dignasse a recolher, o que é uma obrigação básica. Não se trata de uma instituição privada que pode tomar decisões de gastos sem dar satisfações, é um instituto público, que depende do governo para sua manutenção. Ainda hoje as marcas do vandalismo estão no muro chamuscado e descascado pelo fogo. Bombeiros? Estavam muito ocupados com as queimadas no cerrado, o contingente não dá conta do campo e da cidade ao mesmo tempo. Repito, a prefeitura negligenciou uma obrigação básica, não era nenhuma tarefa cara nem extraordinária, era só mandar um caminhão recolher o entulho e pronto.
O belo prédio já foi um convento, ainda hoje conta com uma capelinha em cuja frente há uma bela imagem em azulejos. Provavelmente pelo pouco uso, é a parte mais preservada. Enquanto o Estado se limitava a passar demãos de tinta em cima da pixação do muro, a estrutura sentia o peso dos anos e da negligência. Portas com lascas arrancadas são a regra lá dentro, fora o piso típico dos anos trinta e quarenta que há anos pede restauro, que sabemos que não virá se não se tornar um escândalo, mas deve ficar lindo nas condições originais. Nem falo da escadaria, vocês vão chorar.
Mas o que é um centro cultural de uma capital interiorana, quando o país está tão imerso em discussões estéreis entre os que odeiam e os que idolatram o presidente e sua equipe? Que vantagem há em preservar uma instituição que nunca foi adoptado por nenhum artista ou político de prestigio nacional?
O que se tira de bom do episódio lamentável é o amor que os professores demonstram. Já mandaram alunos para companhias do exterior, mesmo com a miséria que o Estado lhes paga, afinal balé é dança de fresco, de burguês, de veado, enfim, não dá voto. Mesmo assim eles conseguem burilar e lapidar os alunos com a paciência e a dedicação que verdadeiros mestres oferecem aos discípulos. Houve no meio do ano um protesto dos mestres por conta da situação precária do instituto, os pais tomaram a frente e me parece que um mínimo foi atendido. Mas foi só. Não fosse a polícia militar, os traficantes já teriam invadido e expulso todo mundo, porque rondar eles rondam todos os dias.
Eu sugeriria, se o próximo governador tiver um pingo de interesse pela cultura, uma reforma emergencial e completa, do piso ao telhado, para dar condições dignas de trabalho e aprendizado. Depois o aparelhamento e a contractação de gente, porque eles precisam, o efetivo é pequeno para a procura. Indo mais além, eu incorporaria o terreno do ginásio, que hoje é um mocó, ao do Gustav Ritter, porque o espaço também está se tornando insuficiente para a demanda. De quebra é um lugar a menos para a bandidagem agir. Não bastasse a tranqüilidade de um bairro menos violento, imaginemos em um esforço de optimismo o cenário: O dobro do espaço, instrumentos em perfeitas condições e acrescentados, material humano suficiente e talvez o triplo ou mais de jovens (dos oito aos oitenta anos) atendidos. Com o tempo se poderiam fundar uma sinfônica, uma filarmônica, uma orquestra que rivalizaria com qualquer outra no mundo. O corpo de dança fazendo mais apresentações, promovendo bailes temáticos, chamando de volta os moradores que foram embora do bairro. Campinas já foi um bairro residencial agradável de se viver, assim como o Gustav Ritter já foi muito melhor cuidado pelo poder público. Os professores, e muitos dos alunos, podem suprir facilmente as escolas públicas com aulas de suas competências, seria apenas uma questão de planejamento e vontade firme.
2 comentários:
Investir na cultura que realmente traz resultados não interessa. Enquanto isso, espertalhões tem usado as leis de incentivo à cultura para divulgar suas obras e enchero bolso de grana.
Goiás vive financiando "obras genuinamente goianas" as quais poucos têm conhecimento, ninguém se lembra uma semana depois e ninguém perde absolutamente nada em não se lembrar. No caso do Gustav Ritter, o facto de eu ser literalmente vizinho multiplica minha indignação.
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