O dia em que soube que um sujeito outrora flagrado em uma boca de fumo, chamou de "meus heróis" um bando de desocupados, cuja única função era dar maus exemplos pela televisão, eu desabei. Li a notícia várias vezes para ter certeza de não ter me enganado.
Tenho noção do que é ser um herói, do quando custa ao sujeito ser um herói, principalmente porque quem é não pretendeu ser um herói, nem se considera um herói.
À parte os super poderes que a fantasia imprime, necessários à conquista de leitores, os quadrinhos clássicos mostram o que realmente é um herói. Tomarei o exemplo de Batman, cuja verdadeira identidade é... Batman. Bruce Wayne é seu alter ego. Batman presenciou o assassinato dos pais ainda em tenra idade, sendo então criado pelo mordomo Alfred. Se para uma criança é duro perder toda a sua família (não me consta que tenha primos, tios e afins), imaginem presenciar seu assassinado. Claro que um evento como este destrói completamente a infância, e me atrevo a dizer que o pequeno Bruce morreu com seus pais. Naquela noite, tomou o seu lugar uma criança perturbada e anônima, a quem todos insistiam em chamar pelo antigo nome, mas de modo algum era Bruce. Ele poderia ter se revoltado, se refugiado na vida fútil, na auto destruição, na corrupção e na vingança. Mas um herói, se bem que pode se construir, também pode nascer com a tendência heróica. Batman se refugiou no trabalho árduo, nos estudos, na vida útil e productiva, não se deixando dominar pela dor e pela perturbação mental que se instalara. Ou seja, ele fez todo o contrário do que se esperava de uma pessoa em sua situação. Quando se sentiu pronto, pôs seus recursos e sua vida à disposição de uma causa, quando então Bruce Wayne passou a ter utilidade, como alter ego, dando suporte e financiando a sina de Batman.
Não são os apetrechos caríssimos e onerosos (imaginem o quanto o batmóvel bebe) que o tornam um herói, é a renúncia. Batman dedica sua vida à comunidade em que vive, usando a máscara de homem de negócios apenas para investigar quem as autoridades consideram acima de qualquer suspeita. Ele não participa de programas fúteis, não dá entrevistas torpes, não fornece audiência para apresentadores de quinta categoria. Ele não busca holofotes, trabalha nos bastidores, pois é lá que surgem os problemas que serão tão menos danosos quanto mais cedo forem corrigidos. Ele não age em seu benefício, não busca recompensas, apenas faz o que é preciso fazer e depois se recolhe até a próxima urgência.
Alguém aí achou a última sentença parecida com o trabalho de policiais, enfermeiros, médicos, bombeiros, assistentes sociais e afins? Se sim, começou a entender o que quero dizer.
O problema é ter havido uma completa deturpação do que é um herói. Antes reservado a quem realizasse feitos de extrema coragem e relevância, hoje o termo é dedicado a qualquer idiota que dê lucros de seis dígitos pela audiência. Com isto não é de se espantar que a juventude passe a idolatrar bandidos, comprar revistas em que vilões altamente perversos (e que se existissem dariam cabo sem dó de quem os idolatra) são as estrelas.
Não conheço um fã-clube da Irmã Dulce, mas ela abriu mão de tudo o que poderia ter vivido para assistir à gente necessitada, fazendo de graça o que a prefeitura era paga para fazer, mas não fazia. Hoje podemos contar nos dedos os jovens que sabem quem ela foi. A seu exemplo, temos muitas missionárias em países miseráveis, que erguem hospitais do nada e fazem as vezes de Estado onde ele inexiste.
Temos soldados no Haiti. A onu (minúscula mesmo, não merece melhor) virou as costas para nossas tropas, sabotou tudo o que podia e mesmo assim estão conseguindo fazer seu trabalho, sem holofotes. Quando um grupo deles volta eu não fico sabendo, não é notícia. Eles estão lá, entregues à própria sorte em um país que faz o Brasil parecer o primeiro mundo.
Eu não sou afeito à idolatria, mas conhecendo a tendência humana em se apegar a ídolos, gostaria muito que voltassem a idolatrar quem merece, não pessoas que foram colocadas em pedestais por seu potencial carismático.
Quando um completo idiota é alçado à fama, já há todo um aparato preparado para vender futilidades com seu nome, sua esfinge ou relacionados á sua imagem. Quando a vida lança um homem comum à fama, não demora para alguém começar a futricar sua vida, até transformar faltas corriqueiras em crimes hediondos. O mundo tem demonstrado uma imensa aversão aos heróis de verdade, aqueles que fizeram por merecer o título, mas têm muito o que fazer para darem atenção ao que não merece.
Em breve teremos uma geração inteira de adultos perdidos, gente que não saberá o que está fazendo no mundo, de tanto insistirem, hoje, nos valores efêmeros dos fogos de artifício que lhes são vendidos. Gente que terá aprendido a trocar senhas de celulares, mas não terá nenhum preparo para lidar com decepções e mudanças bruscas de rotina, como a morte. Gente que terá todo o conhecimento necessário ao entretenimento, mas nenhum para a imprevisível vida real, que tira freqüentemente das mãos do indivíduo o leme de seu destino.
Não vejo problemas em se cometer um erro, o problema está em fomentar o erro e querer torná-lo um comportamento natural. Ser fútil é uma fraqueza comum, idolatrar a futilidade é patologia. Não demora muito para que os serviços essenciais sintam falta de gente competente, estarão repletos de diplomados e vazios de profissionais. A negligência que hoje se faz aos valores do heroísmo já resulta em uma sociedade que quer o gozo imediato sem o mérito. Não precisa de um oráculo para saber que essa maioria será quase inútil em um futuro breve, precisando a todo momento receber ordens para saber o que fazer, quando não estiver se divertindo. Por agora, frustração é tabu.
Como acontece com o herói, uma dose de dificuldade útil seria o medicamento certo para o quadro, para as pessoas reaprenderem a merecer o que desejam, e que nem tudo o que se deseja é lícito. A lição do herói é a própria superação, trabalhar seus problemas em vez de apelar para uma pistola porque o garoto da sala ao lado torce para outro time. Superar problemas, superar frustrações, superar fraquezas, superar limitações, superar más tendências, superar a própria condição de animal. Dá muito trabalho, é muito demorado, não dá audiência.
Sob o pretexto de trazer o público à realidade, corromperam e deturparam a imagem dos heróis, mesmo os de ficção. Precisa dizer que não ajudou em absolutamente nada ter destruído algo bonito? Só alimentaram o vício inato que a maioria tem de zombar de bons exemplos.
Enquanto isso, por uma imensa teimosia e identidade com a causa, existe gente trabalhando nas sombras, resolvendo os problemas que precisam resolver à margem de toda a publicidade que hoje se reserva para o que não presta. Eles não querem aparecer, talvez até fossem atrapalhados pelo assédio da imprensa fútil, mas deveria haver divulgação de glamurização de seus bons exemplos, sem deixar de lado as dificuldades que enfrentam.
1 comentários:
Começou o bagulho XP
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