Antes de mais nada, advirto que fui batizado ainda sem saber o que acontecia, ou porque tinha que inchar e encolher o tempo todo para não passar mal.
Venho de uma família mal resolvida em termos religiosos. A parte materna é híbrida, católica-espírita, com tradição em magia popular, benzedeiros, umbandistas e afins. A parte paterna cola adesivos como "Deus que me deu" ou "Se houver arrebatamento, este carro ficará desgovernado" e se acha no direito de infringir todas as leis fiscais e de trânsito, não importa quem se fira no desenlaçar.
Por quase quarenta anos enfrentei pressões de todos os lados, camufladas das piores maneiras possíveis. Na infância me forçavam a ir à presença do padre, louvar preconceitos e tabus dogmáticos para fazer tudo ao contrário quando saísse pela porta. Na adolescência a parte crente radical e intolerante da família dizia que lamentava por mim, pois eu era bom, mas não iria para o céu por não ser da congregação deles, mas os malandros da família iriam pois eram "cristãos". O fedor sulfúrico da hipocrisia me afastou de tal modo, que passei a ver com desprezo os cultos religiosos, especialmente porque continuavam me obrigando a auxiliá-los no caso. Cheguei a ter que desenhar o rosto de Jesus no asfalto, com giz, sob a repetição em tom de escárnio dos meus argumentos para não querer fazê-lo, para a procissão que se daria no dia seguinte.
A resultante desta equação não poderia ser outra, me tornei cético. Eu não tinha outra referência de religiosidade, mudava de endereço com tamanha freqüência que não tinha tempo de fazer amigos, absorver a contento outros pontos de vista, et cétera. Eu andava na linha porque queria, já não temia castigos nem esperava por recompensas.
Com a maturidade e a busca por conta própria de respostas, pisando em ovos, o panorama à minha frente mudou. A tempestade de emoções e traumas no decorrer dos anos lavou um pouco a minha visão embaçada e deturpada.
A proliferação de igrejas caça-níqueis, muitas das quais usuárias de (eu conheço, elas não me enganam) magia negra, me fez ver o catolicismo como um dos males menores. Em Goiânia há bem poucas luteranas e todas são muito discretas, até demais para o meu gosto, e para quem tem o dever de divulgar uma mensagem, ainda mais com o conhecimento bíblico tão apurado e fundamentado que eles têm.
Eu já sabia que a Nenê era católica, só não sabia que ela freqüentava a Matriz de Campinas, quase na esquina com meu actual endereço, Deus sabe até quando. Certa feita, em minhas caminhadas dominicais, vejo seu carro e ela saindo da missa. Por minha imensa afinidade com esta moça, passei a ver aquele lugar com mais simpatia. Com o tempo a via voltando para casa, de carro, com a família à bordo.
Cauteloso, passei a ouvir os sermões de fora. Sinceramente não me pareciam mais tão enfadonhos e ruins, na verdade alguns pontos me agravaram deveras.
Um dia entrei. Apesar de há muito tempo não a ver nesta missa, continuo freqüentando, firmei o compromisso de iniciar uma tradição onde falharam comigo. Já estou ouvindo um certo Filho de Oxóssi fazendo insinuações do tipo "Ahm, então foi por causa dela, safadión", mas ele vê sexo até em uma lâmina de vidro, então relevarei.
Muitos podem se perguntar se eu, tão desacostumado às cerimônias católicas, não sinto um desconforto com a duração das missas. Minhas preces diárias duram mais ou menos o mesmo que uma missa, estou acostumado a rigores disciplinares bem maiores durante as mesmas. A diferença é que eu rezava por conta própria, agora há um compromisso formal de minha parte com a minha consciência.
A Matriz tem assistência do Alto, não tivesse não teria suportado a primeira missa. Com o passar das semanas, fui tomando ciência das nuances e energias que circulam lá dentro. A Nenê mesma não concorda com tudo o que o alto clero diz e faz, mas ela sabe separar o joio do trigo e em em que acreditar. Conhece a história tão bem quanto eu, mas ao contrário de mim ela teve suporte para viver infância e juventude naquela comunidade, sabe o que deve ou não considerar. Se mesmo os apóstolos discutiam entre si e Jesus jamais pensou em deixá-los, não será uma fé com inteligência que vai nos condenar. Não deixarei de acreditar naquilo que sei porque acredito e não abrirei mão das missas de domingo.
A parte ruim disto tudo é que eu poderia ter tido uma tradição, uma âncora para me estabilizar nos anos mais difíceis, em que quase me tornei ateu. Tradição, meus amigos, não é cousa de velhos nem um freio para o progresso. Isto é conversa de radicais revanchistas. A tradição bem cultivada auxilia na formação do caráter, equilibra os pensamentos e potencializa os talentos do indivíduo, quem é ou conhece judeus sabe do que estou falando. Infelizmente tudo isto me faltou e só relativamente tarde consegui iniciar alguma cousa, sozinho, por conta própria.
Não são as missas que são chatas, não são os jantares em família que são chatos, não são os passeios à casa dos avós que são chatos. Somos nós, adultos, que tornamos o mundo cinza e insípido para os jovens, transformando em mera obrigação o que deveria continuar sendo um canal de agregação familiar e social.
Minha mente, que já era aberta, ficou um pouco mais livre desde que iniciei esta tradição, contrariando o que alguns catedráticos de extremo rancor universitário apregoam e tentam nos enfiar orelha adentro.
Amanhã, Domingo, estarei às sete horas em ponto, com celular desligado, na missa. Ouvindo, refletindo, filtrando e orando ao meu modo, íntimo, silente, sem medo de ser interrompido desnecessariamente.
2 comentários:
Parabéns, Nanael.
Torço e oro para que você consiga manter a sua "nova tradição".
Grato, fiota. Fique à vontade para soltar teus grilos. Tio Nanis é feio, mas é gente fina.
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