sábado, 10 de janeiro de 2009

Novos Pobres

O último natal foi o último fora do país. Cada um em um lugar diferente. Mas o reveillón foi tenso e obrigou todos a ficarem em casa, um duplex no Pedro Ludovico. O pai chorou litros antes de dizer "E... Estamos... Estamos falidos" e ter o enfarto fulminante. Tanto corrompeu e trapaceou na vida, tão bem ensinou isto aos directores e aos amantes (morreu, tudo que é podre apareceu) que eles lhe depenaram completamente.

Ironicamente, a maior artimanha para burlar a Receita Federal é justo o que está garantindo o sustento da família. Ficaram apenas com uma casinha simples de três quartos, no Coimbra e uma pensão da previdência social. Ele sempre pagou em dias, como autônomo, subornava funcionários e ficava como se ganhasse cinco salários por mês. Cinco salários mínimos. Faturava mais de cinco milhões por mês, sem se importar com os métodos.

Choros das filhas patricinhas e ameaças do filho ex-pit-boy não faltaram, nos primeiros dias. Mas logo na primeira loja a recusar o cartão de crédito, elas caíram em si. Ele, barrado na academia após levar uma surra dos seguranças, também se deu conta da realidade. Perceberam que são pobres. Exagero! São mais de dois mil reais por mês, líquidos, o quíntuplo do bruto que pagavam aos empregados. Um centavo para estes era muito dinheiro, mas um milhão para a vida desregrada, promíscua e perdulária que levavam, valia à pena. Inclusive pagar espaços na tevê para parecerem bons cristãos e preocupados com a coletividade.

Mas acabou. A mãe tem que puxar orelhas e meter colher de pau em cabeças, de vez em quando, mas não cede. A ex-fresca que não andava em carro sem bancos de couro e ar condicionado individual, hoje tem um robusto e confiável Fusquinha 1300L, azul claro, ano 1977, com motor à álcool que o antigo dono arrematou no Detran. Há ar condicionado para ele, no mercado, mas o orçamento não lhe permite esse luxo. Mesmo assim ela dá graças à D'us por ainda terem um transporte particular, casa própria e uma fonte de renda que (embora tenham tentado) os traidores não conseguiram tomar. Reconhece o sofrimento dos filhos que jamais tinham conhecimento do quanto custava viver. Simplesmente passavam o cartão sem limites e saíam sem olhar preços e quantidades, sem perceber que os vendedores, já acostumado com riquinhos mimados trouxas, incluíam suas próprias compras nas notas, certos de que eles jamais ficariam sabendo, como de facto não sabem até hoje. Nenhum deles comprou vestidos de noiva, mas seis casamentos foram completamente financiados por sua invigilância.

Nenhum dos quatro estava preparado para mais do que ser adulado, dar ordens e executar vinganças sem maiores motivos. A lição foi duríssima e ainda é muito difícil.

Felizmente sempre há um ou dois empregados com os quais se davam mais ou menos bem. Uma cozinheira lhe ensinou o básico de prendas domésticas, dentro do possível com o pouco tempo disponível, antes de o oficial de justiça entregar a ordem de despejo. Ainda assim as primeiras refeições pós falência foram terríveis. Ela descobriu porque se lavam arroz e feijão, porque verduras são enxaguadas, enfim. De vez em quando alguém ainda cospe uma pedra que estava no feijão, a caçula já vomitou à mesa ao perceber que uma lesma caminhava em sua língua, o primeiro arroz virou argamassa e o primeiro bife nem os vermes da terra digeriram até hoje. Refrigerante? De vez em quando tem, mas não tomam mais Haägen-Daz de sobremesa. Aliás, descobriram que existem marcas de sorvete que custam menos de um real o copinho, basta trocar frutas e leite fresco por aromatizante vagabundo e gordura hidrogenada reciclada.

Amigos? Ra, ra, ra, ra, ra, ra, ra, ra, ra, ra, ra, ra, ra, ra, ra, ra, ra, ra, ra, ra, ra! Boa piada, gostei. Nunca mais entraram em nenhuma das casas que freqüentavam.

Neste ano começam a estudar em escolas públicas, que o pai ajudava para abater no imposto de renda, sempre superfaturando notas. O facto de terem saído de escolas caríssimas não é vantagem, passavam de ano a custa de chantagem, ameaças, esfregando na cara dos professores quem pagava quem ali. Adivinha! Um terço desses professores leciona em escola pública. Adivinhem em qual escola pública.

Sem parentes, sem amigos, sem todo aquele aparato que caracterizava a bolha artificial que os separava da vida real. Restou a dignidade da mãe, que embora nunca tenha trabalhado na vida, estudou do começo ao fim em um colégio católico caríssimo e aprendeu de verdade para ser aprovada. Quem sabe ganha um extra com aulas de reforço, dando aulas de música... Não tem mais o piano, então não pode ser em casa. Mas está disposta a trabalhar, ainda que esporadicamente, no que lhe permitir a pele fina e delicada. Não poderá exigir isto dos filhos antes de dar o exemplo. Pega o bloquinho onde anotou as entrevistas agendadas, entra do (vergonha para os filhos) Fusquinha e vai tratar de buscar um trabalho. Se sujeitou a tantas humilhações para manter as aparências, tolerou cartinhas cheias de ironia das falsas amigas, por que não pode se submeter ao trabalho? É a chance que rezava para ter e não enxergava até agora. Vai à luta.

3 comentários:

Gabriel Leite disse...

Pior que nascer pobre, é se tornar pobre ao longo da vida. No primeiro caso, pelo mens, não nos faltam amigos.



O que são estas postagens de ficção no Talicoisa? Uma nova onda de contos na blogosfera?

Adriane Schroeder disse...

Vai à luta...
Minha frase predileta, Nanael!
Adoro os contos que estão sendo publicados aqui no TC!

Nanael Soubaim disse...

Aí está o castigo, Gabriel; quem sempre andou sozinho num Mercedes Benz, agora terá que dividir um com mais cento e vinte pessoas.
Mein Fräu, contos são parábolas, é por elas que as pessoas aprendem melhor.