segunda-feira, 15 de abril de 2019

Dead train in the rain CCXVII

    Reconciliação e soberba. A estação 217 finda sete milênios de cisão, e põe um ninguém de importância zero em seu lugar. Todos à bordo, o rem vai partir.


O frio bate à porta (...) tornando o termômetro mais preguiçoso e as roupas mais longas. Phoebe e prole não contam! Elas (...) não dão a mínima para o zero grau que logo derramará neve em Sunshadow. Patrícia passa a usar as roupas mais “comuns” que Hassam lhe deixou, como agasalho para sair de casa. Agora o longo abrigo verde com fofas bordas de pelúcias brancas pontilhadas de losangos pretos de proporções áureas e opalas como botões. Gostaria de doar, mas as circunstâncias da aquisição lhe impedem moralmente de fazê-lo, e as roupas são muito caras para quem precisa de doação. Além do mais, a banda doa mais de um milhão de peças de roupa todos os anos. Roupas boas, bem cortadas, de material durável, com bolsos e mais estilo do que muitas roupas de marca.

Mesmo sendo a peça mais simples da herança (...) a deixa majestosa. Vai à casa da comadre, falar sobre o último show do ano e depois sobre a menina prodígio da mediunidade. Está preocupada com Naomi. Encontra a petiz conversando com a mãe...

- Só um instantinho, tia Patty. A gente já termina, tá?

- Falou com a entonação de uma criança, mas como uma adulta...

- Patty, a gente vai falar disso também...

- A Senhora Naomi está na fazenda, conversando com a Glenda. Ela não vai aparecer hoje na casa religiosa porque tem muito o que falar, mas vai sair coisa boa dessa conversa. Por isso é melhor a gente deixar fechada hoje, não vai ter reunião mesmo. São muitos milênios que elas precisam deixar a limpo, pra não piorar depois. A Glenda tem razão no que se queixa, mas por enquanto não dá pra mudar, quase todo mundo no mundo está amarrado a essas regras...

Enquanto uma Naomi explica à mãe por que não vão visitar a casa religiosa neste dia, a outra Naomi está, com a permissão da guardiã, à sua presença no jardim das fadas...

- Entretanto, guardiã, existe algo que você pode fazer para ajudar a mudar isso.

- Nossa, demorou! Sete mil e duzentos anos de espera!

- Não dava para dizer antes... Hoje você é tão competente que isola seu rebento até de pensamentos exteriores, então está apta a pegar algumas linhas da vida e trabalha-las. Comece pela de Elias, nada do que ele vive hoje é o que foi planejado.

- Não precisa ser vidente pra saber que tudo estava errado e, principalmente, que não havia a mais remota hipótese de ter dado em coisa melhor, quando mais corrido dentro do esperado!

- Você vai orientar a pequena Naomi para ela poder fazer o mesmo.

- E é claro que minhas filhas também vão fazer isso!

- Decerto que sim. Fica sob sua responsabilidade o treinamento dos mestres na Terra.

- Agora a gente tá falando a mesma língua.

A tarde chega e Naomi se vai. Está tudo acertado, Glenda já começa a ver as linhas entortadas e como deixar seus usuários o mais próximos possível do que fora planejado (...) os que escolheram se desviar serão deixados à própria sorte. No caso de Elias, seu destino foi, por obra de Patrícia, mais proveitoso do que o planejado, que era incomparavelmente melhor do que a penúria em que se encontrava, terá extremo cuidado para não estragar isso.

Naomi avisa que terminou, mas é melhor deixarem para amanhã a visita, por hoje as hostes estão trabalhando no que ficou acertado. Ela relaxa e volta a ser apenas uma garotinha com mediunidade extraordinária...

- Tá tudo bem, gente.

- Você não é diferente da Phee, só tem outro modo de nos deixar assustadas.

- Isso de novo?

Se viram, é Phoebe com sua turma. Às vezes se esquecem, pela extrema habilidade com a tecnologia, que também é médium e pode ser avisada de que falam a seu respeito. Elas explicam e a moça (...) quer detalhes do que aconteceu hoje. Liga para Glenda e praticamente exige saber do babado, corre para a casa da comparsa e vão as duas agentes tricotar fofocas mediúnicas...

- “Fofoca mediúnica”?

- Rê... É maluquinha, que nem a gente!

Desatam a rir. Ela conseguiu aliviar o ambiente, de quebra deixou as pequenas para as avós babarem e a pequena tia brincar.

&

Kurt mostra à família três quadros surrealistas que fez recentemente, misturando óleo sobre tela e sua prodigiosa pasta de mármore (...) Inspirou-se no dia das bruxas, mas de forma lúdica, não assustadora. Com o olhar sereno e a voz tranqüila, ele fala sobre suas inspirações coadjuvantes, porque não precisa explicar as obras. Ligia escolhe para o acervo doméstico um com garotos trocando os monstros pelos livros, um surrealismo à moda Norman Rockwell (...) Os outros dois são doados ao museu de arte de Sunshadow (...) São imediatamente encaminhados para análise e catálogo, mas as photographias de apresentação, claro que sem flash, são publicadas no mesmo dia.

Desafetos que o artista nem sabia que tinha vêm à tona. Criticam com rudeza seu trabalho, dizem que não é artista de verdade, que não instiga, não provoca ódio, não promove debates acalorados e raivosos, não causa inimizades por discordâncias, é limpo e harmonioso, agradável a quem analisar, respeitoso com quem não fez pós-doutorado em algum artista obscuro que morreu sem reconhecimento e já foi tarde...

- Se não é sujo e repulsivo, não é arte!

Contam-lhe dos comentários, em especial do último. Ele responde “Cada um dá o que pode oferecer” (...) Usam a resposta para reafirmar que não é um intelectual e muito menos um artista, e que por isso todos teriam a obrigação de agredi-lo e impedí-lo de pegar um pincel. Ele está ocupado demais (...) actualizando as medidas de Patrícia, o que é quase uma bobagem...

- Você almoçou bem?

- Com Amina no meu pé, eu tive que comer as esfihas de sobremesa.

- Então não preciso modificar nada. Tome aqui o atestado.

Os médicos da cidade passaram a utilizar os atestados de costureiras e alfaiates para avaliar melhor seus pacientes (...) O chamam do museu. A polícia deteve um sujeito com um brutamonte, que queria jogar seus quadros fora e colocar no lugar imensas telas em branco, exceto por pequenos rabiscos coloridos na borda inferior esquerda. Patrícia vai junto. O sujeito é conhecido no meio acadêmico, é adorado por intelectuais, influente em muitas faculdades de artes, tem títulos, pompa e circunstância. Já expos a própria urina em copinhos descartáveis dos mais ordinários, a vendeu por uma fortuna, não sem antes humilhar o comprador e determinar onde e como sua arte deveria ser exposta.

O jovem homem de rosto afilado e olhar sereno chega com a tia Patty, ela com o semblante mais severo. O Beast os cumprimenta e involuntariamente denuncia suas presenças ao sujeito...

- Ah, chegou o verme. Você vai ouvir o que merece, moleque. Já você não é nada, vá embora.

- Muito arrogante para um sujador de telas medíocre que está prestes a ser preso.

Ela o irritou. Ele manda seu capanga expusá-la, mesmo com a polícia presente. Ele até a toca, mas o que se segue cala o arrogante. O brutamonte, acostumado a agredir e ser mimado, tem a mandíbula deslocada violentamente para a esquerda, para onde a cabeça se vira bruscamente e o corpo todo gira em torsão, enquanto sobe uma polegada e meia, mais ou menos, em um spin medonho, mas suave, transitando harmônica e regularmente da vertical para a horizontal, enquanto perde altitude dentro do previsível, considerando-se a aceleração da gravidade, sendo detido abruptamente e previamente desacordado pelo chão de granito polido. Aquela pilha de músculos repousa inerte no piso encerado (...) Todos se viram para o ponto de partida e vêem o gigante furioso, de rosto desfigurado pela raiva, com seus músculos de pedra quase a rasgar a camisa...

- NINGUÉM TOCA EM MINHA MÃE! Você, candidato a cadáver, vai me poupar de ensangüentar minhas mãos e acompanhará os policiais até a chefatura, de onde só sairá acompanhado de seu advogado, para nunca mais colocar seus pés podres e inúteis nesta cidade!

Faz nas calças o que costuma vender como arte (...) Aquele é o Capitão Gardner, adorado pelas forças armadas, herói americano por excelência, queridinho do International I Love Richard Gardner Fan Club, o homem que desmontou um helicóptero militar com as mãos nuas, entortou um fuzil para dar recado inequívoco ao atrevido que o apontou para si, entre outros prodígios não menos assustadores...

- Oh, vem pra mamãe, vem!

Ele vai. Ela domina aquele monstro de extensão continental (...) acalmando aquele armagedom ambulante até ter seu Ricky de volta. O amor da mamãe aproveita para ir também actualizar suas medidas.

Precisa acalmar mais gente. Nancy e Richard bradam furiosos e disparam para a chefatura, mas a implacável e extremamente perigosa agente Knockout chega primeiro, munida de uma espada de estilo espanhol (...) A imprensa ama aquilo, há anos esperava por aquela desforra. Elias poderia detê-la, mas também está furioso, ele ama aquela mulher, lhe deve tudo, ela salvou sua filha (...) Quem pode deter toda aquela massa enfurecida de parentes e parceiros, aparece nos braços de sua mãe. Aretha desce e vai em seus passinhos pueris até a bárbara ensandecida, se põe diante dela e pede colo. Amolece na hora aquela gente, para o alívio do trêmulo arrogante, que odeia crianças. Sandra a pega nos braços e é afagada pela pequerrucha, que sorri do modo mais maroto do mundo e reverte o demônio em anjo (...) Alguém vai se aposentar das “artes”.

Os abutres não tiveram sua carniça, mas tiveram carne fresquinha, do tipo a que não estão acostumados, se esbaldam. Coast to Coast News, Sunshadow News e Interesse Popular publicam em primeira mão, deixando ghost drivers furiosos no mundo inteiro. Até na estação espacial internacional se ouvem gritos e juras de vingança. Fester lamenta ter saído da cidade, quando o desaforo aconteceu...

- Quem esse merda auto replicante pensa que é? Eu eduquei esses garotos! Eu mostrei o caminho das pedras para eles! Eu poli os dons da minha sobrinha! Não fiz isso para um canastrão vagabundo tocar nela!

Nancy dá todo apoio ao irmão, os dois planejam uma emboscada para o caso de o atrevido decidir voltar. Sem chance! Ele sai com seu advogado (...) de volta para New York, de carro mesmo, o aeroporto está repleto de fãs indignados.

Os ânimos esfriam aos poucos, estão normais quando a banda volta do último show do ano, com a neve cumprimentando Sunshadow (...) Trajes pesados em várias camadas, exceto é claro para quatro pessoas, três delas ainda crianças. Suha e Itzhak flagram as quatro em agasalhos leves e coloridos, a zombar do frio em direção à chocolateria...

- Olá, ajudantes de Papai Noel! Ele já leu a minha cartinha? Cara, é sério que vocês estão à vontade assim? Eu tô congelando!

As três desatam de rir do judeu, a menorzinha ri por contágio. O casal é convidado a acompanha-las à mesa para um chocolate cremoso bem quentinho em grandes canecas coloridas. Irrecusável. Depois falam com Patrícia sobre a gravidez (...) Quando perguntada se não seria incoerente uma muçulmana comemorar o natal, ela respondeu “Se fosse, nenhum muçulmano trabalharia em fábricas de brinquedos, nesta época do ano... e não confunda o meu Marrocos com financiadores de terroristas”.

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