Reconciliação e soberba. A estação 217 finda sete milênios de cisão, e põe um ninguém de importância zero em seu lugar. Todos à bordo, o rem vai partir.
O frio bate à porta (...) tornando o termômetro mais preguiçoso e as roupas
mais longas. Phoebe e prole não contam! Elas (...) não dão a mínima para o zero grau que logo
derramará neve em Sunshadow. Patrícia passa a usar as roupas mais “comuns” que
Hassam lhe deixou, como agasalho para sair de casa. Agora o longo abrigo verde
com fofas bordas de pelúcias brancas pontilhadas de losangos pretos de
proporções áureas e opalas como botões. Gostaria de doar, mas as circunstâncias da aquisição lhe
impedem moralmente de fazê-lo, e as roupas são muito caras para quem precisa de
doação. Além do mais, a banda doa mais de um milhão de peças de roupa todos os
anos. Roupas boas, bem cortadas, de material durável, com bolsos e mais estilo
do que muitas roupas de marca.
Mesmo sendo a peça mais simples da herança (...) a deixa majestosa. Vai à casa da comadre,
falar sobre o último show do ano e depois sobre a menina prodígio da
mediunidade. Está preocupada com Naomi. Encontra a petiz conversando com a
mãe...
- Só um instantinho, tia Patty. A gente já
termina, tá?
- Falou com a entonação de uma criança, mas
como uma adulta...
- Patty, a gente vai falar disso também...
- A Senhora Naomi está na fazenda,
conversando com a Glenda. Ela não vai aparecer hoje na casa religiosa porque
tem muito o que falar, mas vai sair coisa boa dessa conversa. Por isso é melhor
a gente deixar fechada hoje, não vai ter reunião mesmo. São muitos milênios que
elas precisam deixar a limpo, pra não piorar depois. A Glenda tem razão no que
se queixa, mas por enquanto não dá pra mudar, quase todo mundo no mundo está
amarrado a essas regras...
Enquanto uma Naomi explica à mãe por que não
vão visitar a casa religiosa neste dia, a outra Naomi está, com a permissão da
guardiã, à sua presença no jardim das fadas...
- Entretanto, guardiã, existe algo que você
pode fazer para ajudar a mudar isso.
- Nossa, demorou! Sete mil e duzentos anos de
espera!
- Não dava para dizer antes... Hoje você é
tão competente que isola seu rebento até de pensamentos exteriores, então está
apta a pegar algumas linhas da vida e trabalha-las. Comece pela de Elias, nada
do que ele vive hoje é o que foi planejado.
- Não precisa ser vidente pra saber que tudo
estava errado e, principalmente, que não havia a mais remota hipótese de ter
dado em coisa melhor, quando mais corrido dentro do esperado!
- Você vai orientar a pequena Naomi para ela
poder fazer o mesmo.
- E é claro que minhas filhas também vão
fazer isso!
- Decerto que sim. Fica sob sua
responsabilidade o treinamento dos mestres na Terra.
- Agora a gente tá falando a mesma língua.
A tarde chega e Naomi se vai. Está tudo
acertado, Glenda já começa a ver as linhas entortadas e como deixar seus
usuários o mais próximos possível do que fora planejado (...) os que escolheram se desviar serão deixados
à própria sorte. No caso de Elias, seu destino foi, por obra de Patrícia, mais
proveitoso do que o planejado, que era incomparavelmente melhor do que a penúria
em que se encontrava, terá extremo cuidado para não estragar isso.
Naomi avisa que terminou, mas é melhor
deixarem para amanhã a visita, por hoje as hostes estão trabalhando no que
ficou acertado. Ela relaxa e volta a ser apenas uma garotinha com mediunidade
extraordinária...
- Tá tudo bem, gente.
- Você não é diferente da Phee, só tem outro
modo de nos deixar assustadas.
- Isso de novo?
Se viram, é Phoebe com sua turma. Às vezes se
esquecem, pela extrema habilidade com a tecnologia, que também é médium e pode
ser avisada de que falam a seu respeito. Elas explicam e a moça (...) quer detalhes do que aconteceu hoje. Liga para Glenda e
praticamente exige saber do babado, corre para a casa da comparsa e vão as duas
agentes tricotar fofocas mediúnicas...
- “Fofoca mediúnica”?
- Rê... É maluquinha, que nem a gente!
Desatam a rir. Ela conseguiu aliviar o
ambiente, de quebra deixou as pequenas para as avós babarem e a pequena tia
brincar.
&
Kurt mostra à família três quadros
surrealistas que fez recentemente, misturando óleo sobre tela e sua prodigiosa
pasta de mármore (...) Inspirou-se no dia das bruxas, mas de forma lúdica, não
assustadora. Com o olhar sereno e a voz tranqüila, ele fala sobre suas
inspirações coadjuvantes, porque não precisa explicar as obras. Ligia escolhe
para o acervo doméstico um com garotos trocando os monstros pelos livros, um
surrealismo à moda Norman Rockwell (...) Os outros dois são doados ao museu de arte
de Sunshadow (...) São imediatamente
encaminhados para análise e catálogo, mas as photographias de apresentação,
claro que sem flash, são publicadas no mesmo dia.
Desafetos que o artista nem sabia que tinha
vêm à tona. Criticam com rudeza seu trabalho, dizem que não é artista de
verdade, que não instiga, não provoca ódio, não promove debates acalorados e
raivosos, não causa inimizades por discordâncias, é limpo e harmonioso,
agradável a quem analisar, respeitoso com quem não fez pós-doutorado em algum
artista obscuro que morreu sem reconhecimento e já foi tarde...
- Se não é sujo e repulsivo, não é arte!
Contam-lhe dos comentários, em especial do
último. Ele responde “Cada um dá o que pode oferecer” (...) Usam a resposta para reafirmar que não é um intelectual e muito menos
um artista, e que por isso todos teriam a obrigação de agredi-lo e impedí-lo de
pegar um pincel. Ele está ocupado demais (...) actualizando as medidas de Patrícia, o que é
quase uma bobagem...
- Você almoçou bem?
- Com Amina no meu pé, eu tive que comer as
esfihas de sobremesa.
- Então não preciso modificar nada. Tome aqui
o atestado.
Os médicos da cidade passaram a utilizar os
atestados de costureiras e alfaiates para avaliar melhor seus pacientes (...) O chamam do museu. A polícia deteve
um sujeito com um brutamonte, que queria jogar seus quadros fora e colocar no
lugar imensas telas em branco, exceto por pequenos rabiscos coloridos na borda
inferior esquerda. Patrícia vai junto. O sujeito é conhecido no meio acadêmico,
é adorado por intelectuais, influente em muitas faculdades de artes, tem
títulos, pompa e circunstância. Já expos a própria urina em copinhos
descartáveis dos mais ordinários, a vendeu por uma fortuna, não sem antes
humilhar o comprador e determinar onde e como sua arte deveria ser exposta.
O jovem homem de rosto afilado e olhar sereno
chega com a tia Patty, ela com o semblante mais severo. O Beast os cumprimenta
e involuntariamente denuncia suas presenças ao sujeito...
- Ah, chegou o verme. Você vai ouvir o que
merece, moleque. Já você não é nada, vá embora.
- Muito arrogante para um sujador de telas
medíocre que está prestes a ser preso.
Ela o irritou. Ele manda seu capanga
expusá-la, mesmo com a polícia presente. Ele até a toca, mas o que se segue
cala o arrogante. O brutamonte, acostumado a agredir e ser mimado, tem a
mandíbula deslocada violentamente para a esquerda, para onde a cabeça se vira
bruscamente e o corpo todo gira em torsão, enquanto sobe uma polegada e meia,
mais ou menos, em um spin medonho, mas suave, transitando harmônica e
regularmente da vertical para a horizontal, enquanto perde altitude dentro do
previsível, considerando-se a aceleração da gravidade, sendo detido
abruptamente e previamente desacordado pelo chão de granito polido. Aquela
pilha de músculos repousa inerte no piso encerado (...) Todos se viram para o
ponto de partida e vêem o gigante furioso, de rosto desfigurado pela raiva, com
seus músculos de pedra quase a rasgar a camisa...
- NINGUÉM TOCA EM MINHA MÃE! Você, candidato
a cadáver, vai me poupar de ensangüentar minhas mãos e acompanhará os policiais
até a chefatura, de onde só sairá acompanhado de seu advogado, para nunca mais
colocar seus pés podres e inúteis nesta cidade!
Faz nas calças o que costuma vender como arte (...) Aquele é o Capitão Gardner, adorado
pelas forças armadas, herói americano por excelência, queridinho do
International I Love Richard Gardner Fan Club, o homem que desmontou um
helicóptero militar com as mãos nuas, entortou um fuzil para dar recado
inequívoco ao atrevido que o apontou para si, entre outros prodígios não menos
assustadores...
- Oh, vem pra mamãe, vem!
Ele vai. Ela domina aquele monstro de
extensão continental (...) acalmando aquele armagedom ambulante até ter seu Ricky de
volta. O amor da mamãe aproveita para ir também actualizar suas medidas.
Precisa acalmar mais gente. Nancy e Richard
bradam furiosos e disparam para a chefatura, mas a implacável e extremamente
perigosa agente Knockout chega primeiro, munida de uma espada de estilo
espanhol (...) A imprensa ama aquilo, há anos esperava por aquela
desforra. Elias poderia detê-la, mas também está furioso, ele ama aquela
mulher, lhe deve tudo, ela salvou sua filha (...) Quem pode deter toda aquela massa enfurecida de parentes e
parceiros, aparece nos braços de sua mãe. Aretha desce e vai em seus passinhos
pueris até a bárbara ensandecida, se põe diante dela e pede colo. Amolece na
hora aquela gente, para o alívio do trêmulo arrogante, que odeia crianças.
Sandra a pega nos braços e é afagada pela pequerrucha, que sorri do modo mais
maroto do mundo e reverte o demônio em anjo (...) Alguém vai se aposentar das “artes”.
Os abutres não tiveram sua carniça, mas
tiveram carne fresquinha, do tipo a que não estão acostumados, se esbaldam.
Coast to Coast News, Sunshadow News e Interesse Popular publicam em primeira
mão, deixando ghost drivers furiosos no mundo inteiro. Até na estação espacial
internacional se ouvem gritos e juras de vingança. Fester lamenta ter saído da
cidade, quando o desaforo aconteceu...
- Quem esse merda auto replicante pensa que
é? Eu eduquei esses garotos! Eu mostrei o caminho das pedras para eles! Eu poli
os dons da minha sobrinha! Não fiz isso para um canastrão vagabundo tocar nela!
Nancy dá todo apoio ao irmão, os dois
planejam uma emboscada para o caso de o atrevido decidir voltar. Sem chance!
Ele sai com seu advogado (...) de volta para New
York, de carro mesmo, o aeroporto está repleto de fãs indignados.
Os ânimos esfriam aos poucos, estão normais
quando a banda volta do último show do ano, com a neve cumprimentando
Sunshadow (...) Trajes pesados em várias camadas,
exceto é claro para quatro pessoas, três delas ainda crianças. Suha e Itzhak
flagram as quatro em agasalhos leves e coloridos, a zombar do frio em direção à
chocolateria...
- Olá, ajudantes de Papai Noel! Ele já leu a
minha cartinha? Cara, é sério que vocês estão à vontade assim? Eu tô congelando!
As três desatam de rir do judeu, a menorzinha
ri por contágio. O casal é convidado a acompanha-las à mesa para um chocolate
cremoso bem quentinho em grandes canecas coloridas. Irrecusável. Depois falam
com Patrícia sobre a gravidez (...) Quando perguntada se não seria incoerente uma
muçulmana comemorar o natal, ela respondeu “Se fosse, nenhum muçulmano
trabalharia em fábricas de brinquedos, nesta época do ano... e não confunda o meu Marrocos com financiadores de terroristas”.
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