domingo, 4 de novembro de 2018

Dead Train in the rain LXXIX

    Ninguém volta impune do paraíso. A estação 79 mostra o quanto uma oportunidade bem aproveitada pode mudar uma pessoa, e o quanto uma comunidade fechada pode ser hostil mesmo às melhores mudanças. Paciência! Embarquem, o trem vai partir.

Richard, Patrícia e Rebeca, juntos, treinando caratê, são uma visão tão fascinante quanto assustadora. O deslocamento de ar causado pelos movimentos do mecânico é estarrecedor (...) Frederico imagina com gosto alguns valentões de Recife (...), se metendo a bestas com ele. Toda a periculosidade demonstrada durante o treino desaparece, com os três entrando abraçados na casa, onde Patrícia se apressa em acolher seu rebento...
- Vamos tomar banho, menininho sapeca?
- Vocês não imaginam como fiquei, quando soube que ela colocou o meu nome no meu neto!
- Oxe! Deve ter sido arretado! Mas o senhor ainda é novo, Seu Richard!
- Melhor ainda, Tatty! Terei mais tempo pra aproveitar e ajudar a educar o garoto.
- Novo e sábio – diz Nancy. Casar cedo é um risco grande, mas tem suas vantagens. Aliás, vocês dois também são relativamente jovens!
- Mas filho, na nossa situação, não dá não – Diz o homem. Agora, com o carro novo de táxi, quem sabe, mas por enquanto não dá.
- Estamos cientes da situação – diz Richard. Usar o Corcel como táxi foi acertado, mostra que vocês têm juízo, então peço que aproveitem, aprendam o máximo com sua estadia, e coloquem em prática, quando voltarem a Recife.
Um conselho directo e certeiro do guru do Dead Train. Enquanto outros artistas enfiam bolos de dinheiro nos bolsos de gurus psicodélicos (...) o coerente Richard é uma fonte de conselhos e sabedoria dos seis (...) Patrícia desce com o pequeno, já trocada e pronta para cuidar dos convidados, então Richard sobe com Nancy. Rebeca foi tomar banho em casa (...) mas volta mais tarde, com os outros. Têm uma agenda extensa para hoje, começando pela fundação para as crianças. A baixinha veste sua indumentária de motoqueira e busca cada um em sua casa, já adiantando o que conversou com Patrícia.
O tamanho da sede da fundação impressiona. Os irmãos pequenos dos membros da banda a freqüentarem, mais ainda. Nancy, Eduarda, Diana, Maria e Norma ajudam a trocar fraldas (...) Tudo muito limpo, muito organizado e muito bem feito, com comunicados, escalas e tabelas para orientar funcionários e voluntários. Os pequenos sobrados ao redor do pátio central dão um ar de conto de fadas, como se a qualquer momento o coelho fosse aparecer correndo, olhando para o relógio, com Alice logo atrás. Há algumas Alices por lá, mas as que podem correr estão concentradas no trabalho.
No berçário o silêncio requerido é recompensado, a imagem daqueles bebês (...) é enternecedora. Os adultos que cuidam deles andam de meias e se comunicam por linguagem de sinais. Vão à cozinha industrial, que não pára durante o dia inteiro. Há uma ala para cada faixa etária (...) Se lembrando de cozinhas comerciais que conhecem, os visitantes quase choram.
Hora de conhecer algumas cidades das quais Sunshadow já foi periferia, e hoje são periferia dela. Começam pelo colégio onde os seis estudaram, em Summerfields...
- São esses os brasileiros que ganharam?
- São, Jeff! Tem um minuto para um papo?
Renata leva o ex-colega para conhecer os pernambucanos. Hoje ele é professor no colégio, onde leciona justamente música (...) histórias que a imprensa não publicou são reveladas naqueles poucos minutos (...) chegam até Lansing, uma das primeiras paradas da banda, antes do estrelato.
Como ninguém é de ferro (...) vão ao New Town Shopping Center que atende a toda a região, na cidade nova. É outra coisa que os visitantes só viam em filmes (...) aquilo é gigantesco! As escadas rolantes dão alguns sustos e algumas casquinhas, eles sobem amparados pelos ídolos. Matthew e os paparazzi, claro, estão lá. Robert aproveita para comprar alguns incensos para Mikomi.
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Voam para Los Angeles. Os recifenses olham para o letreiro de Hollywood pela janela, ficam hipnotizados (...) Fãs, jornalistas e paparazzi os aguardam no aeroporto. Durante o vôo, os seis discutiram mais uma vez sobre a necessidade de comprarem um avião para a banda (...) Vão directo para o escritório central, onde encontram alguns empresários que pegam de surpresa. Os sorrisos dos seis diante daqueles desaforados (...) o constrangimento de quem voltou com o rabinho entre as pernas, a mídia gravando tudo; o mundo girou. Aceitam o patrocínio de volta, mas as regras agora são outras. Dura pouco e Matthew começa a clicar uma súbita melhoria do humor, que já estava bom. Levam os convidados para a praça miniatura do jardim e explicam o que houve...
- Aqueles senhores – diz Enzo – soltaram um monte de desaforos na última vez em que estiveram aqui, porque não aceitamos as condições estapafúrdias deles.
- Queriam desvirtuar completamente a banda para obter mais público. Nós não somos uma banda de modinhas que corre atrás de polêmicas! NEM MORTO EU ME FINJO DE AMIGO DAQUELE MARGINAL – esbraveja o conde!
- Relax, Ron! A gente já está tendo a desforra, dada por eles mesmos – diz Patrícia. O que vamos fazer com esse dinheiro?
- O avião – diz Rebeca.
Os brasileiros têm em primeira mão a formalização da intenção de compra da aeronave, ainda a ser definida. Há anos que a freqüência com que voam se tornou quase que diária (...) Levam-nos para a sala de reuniões, onde todas as decisões da corporação são tomadas oficialmente, depois para a biblioteca e a sala de jogos, onde aproveitam para brincar um pouco. O telephone toca, É Josephine perguntando quando vão tomar bênção. Patrícia comunica aos outros cinco e decidem fazer uma surpresa para os dois.
Vão para Beverly Hills sem dizer uma palavra a respeito, apenas entretendo os convidados (...) Eles ficam encantados com a paisagem (...) mas eles começam a ver rostos conhecidos, os seis começam a cumprimentar gente muito conhecida e a situação fica estranha. Renata troca cumprimentos rápidos com David Jones, depois Sean Connery acena para os seis...
- Oxente! Patty, que lugar é esse? É cenário de filme, é?
- Beverly Hills, Freddy. Muitos amigos e colegas nossos moram ou freqüentam este bairro. Ah, estamos chegando!
Aquela mansão! Eles conhecem aquela mansão! Os olhos começam a arregalar e as pupilas dilatam, quando vêem aquela mansão. Uma dama de vestido dourado esvoaçante aguarda os seis, no jardim da frente (...) O ônibus entra e Patrícia desce para o abraço, sacudindo a diva e arrancando risos com sotaque de Champagne. Os outros descem e fazem montinho na sua tutora, tudo registrado por Matthew, que convence o casal a descer também.
Eles descem, bem devagar, quase que temendo pisar em solo sagrado com os pés sujos de mundo. A diva trata de acabar com a formalidade (...) eles a vêem e é como se o tema de “Sad Portraits” tocasse...
- Bienvenui, mes amis! Desçam, a grama não está aqui para servir de enfeite, é nosso piso!
Ela deveria estar acostumada, deveria ser banal, mas (...) já não deveria mais acontecer. Os dois ficam como se ela fosse Maria de Nazaré os ajudando a descer de um ônibus angélico ao chão do paraíso. Ela (...) acha um enorme exagero ser tratada como Sua Santidade por tantas pessoas. Chegou a cogitar abandonar o cinema, até Grant a apresentar à organização e se tornar importante demais para pensar só em si...
- Venham, eu preparei pessoalmente um lanche para receber vocês.
Curto-circuito. Ela sabe cozinhar! Não sabiam que havia cozinha no céu. Patrícia os alerta de que vão comer os melhores acepipes de toda a Califórnia...
- Oui, eu sei cozinhar. Eu sou gente, como vocês. Venham.
Eles vão, mas sem acreditar nessa conversa de “gente como vocês”. Entram com o fascínio crescendo a cada passo, a observam em tudo, a postura erecta, os passos regulares, o olhar, os cabelos balançando, o requebrado (...) Ela é terna, acolhedora, gentil, generosa, encantadora...
- Eu já estive em Recife em 1962, em segredo, claro. Acho que me lembro de vocês... Não estavam em uma wagon preta, não me lembro em que praia, vendendo côco e doces?
Cabelos arrepiam. Sim, eram eles mesmos, trabalhando juntos (...) Oras, ela é Jose De Lane, a agente Star, a diva das artes e da espionagem, a mulher mais poderosa do mundo, é claro que ela sabe! Anita pessoalmente arruma a mesa para as visitas (...) Eles a reconhecem...
- Trabajo com la señora De Lane desde que cheguei acá. Ela me acolheu e me ensinou tudo o que eu sei...
- Anita? Venha, sente-se.
A diva acolhe a secretária, a examina, faz algumas perguntas e começa a festejar...
- Só pode ser isso, você está grávida! Renata...
- Por que todo mundo me faz essas perguntas? Eu não posso saber de tudo.
- Não perguntei nada ainda, chérie... Ela está?
- Tá legal, só um instante... Ela está grávida, mas é melhor fazer os exames para isso não ficar no campo da metafísica!
Como reza a tradição, Anita é carregada pela copa e enchida com paparicos. Os convidados são integrados à festa, mas continuam vendo Josephine como a secretária executiva de Nossa Senhora. Quanto mais próxima e simpática a diva se mostra, mais eles se apaixonam (...) Aumenta o fascínio ela ser uma mulher alta mesmo para os padrões americanos, e eles baixos mesmo para os padrões brasileiros (...) Patrícia novamente avisa, em tom confidencial, que não adianta ela tentar ser uma pessoa comum...
- Eu já não consigo, nenhum de nós consegue mais. Queira ou não, você é um ídolo até para seus inimigos, insistir só vai te desgastar, aprenda a conviver com isso.
- Je sais, chérie. Mas eu gostaria tanto de ter uma vida comum, sem precisar me disfarçar para sair de casa.
- Eu também, mas não podemos mais contar com privacidade fora de nossas casas. São nossos ônus, Star, como artistas e como agentes, será assim pelo resto de nossas vidas; aonde formos, em qualquer parte do mundo, alguém apontará o dedo e todos olharão para nós. Pelo menos nós temos Sunshadow, lá você pode andar pelas ruas sem disfarces.
- Oui... Nós temos Sunshadow...
Voltam para o miolo do burburinho e se reintegram à conversa. A jovem percebe que está ficando velha em plena juventude, após dar conselhos à sua conselheira.
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Tatiane e Frederico fizeram o que Richard aconselhou. Aproveitaram e aprenderam o máximo que puderam em parcos oito dias de estadia. A escassez de prazo os fez aguçar seus sentidos e extrair mais de tudo o que viram e ouviram (...) Terem aprendido algo (...) para a organização, suas mentes estão abertas e agora são colaboradores inconscientes. Manterão contacto para monitorar seus progressos, e ajudá-los a se desvencilhar das armadilhas medievalescas que o poder público brasileiro trama contra quem se atreve a vencer honestamente.
Aterrissando em Recife, a imprensa os espera e vários programas de auditório esperam um sinal positivo para entrevistas, só não esperam ouvir o cabedal que absorveram (...) Ele volta ao trabalho de taxista, agora com mais qualificação, ela fica com o Gordini e começa a costurar para fora. Em poucos dias percebem que (...) as pessoas ao redor não estão abertas para as mudanças que sofreram (...) Suaram para construir aquela casinha onde mal cabem os móveis e equipamentos que ganharam no sorteio, mas a vizinhança está hostil e talvez em breve aquilo não seja mais um lar.

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