sábado, 10 de novembro de 2018

Dead Train in the rain LXXXV

    Conspiração à brasileira. A estação 85 mostra quem manda e que é melhor obedecer. Apresentem seus bilhetes e embarquem, o trem vai partir sem nem um segundo de atraso.


Mikomi já foi avisada de que farão piada com seu nome, então ela trata de comprar alguns quilos de bom humor (...) Ninguém avisou que a banda viajará em família, a imprensa e o público só saberão quando embarcarem em Los Angeles. Lucille já está afinada e espera com as três coristas pelos demais. O caso dela é mais delicado, porque a imprensa já tem um vasto material para fofocas a seu respeito (...) A moçoila se olha no espelho do closet, tira o terninho, a camisa e se observa (...) Sua compleição esbelta poderia torná-la uma modelo requisitada, se quisesse, mas tem pavor de multidões e a perspectiva da carreira musical ainda a assusta. Teve um misto de medo e felicidade quase incontrolável quando pensou que estivesse grávida, levou essa empolgação em discrição até o noivado e caiu das nuvens...

- Chérie, estamos te chamando para o jantar! O que houve?

- Pirações minhas... Eu tenho medo da fama.

- Enzo também tinha. Ainda pensando na sua decepção?

- Decepção comigo mesma. Eu não deveria ter feito tantas expectativas!

- É uma lição que quase ninguém aprende, Lucy. Mesmo quem aprende reincide com freqüência. Não pense nisso agora, ponha algo confortável e venha jantar.

Fica introspectiva até o dia do embarque, chorando pela voz quando precisa.

No Brasil (...) alguns atrasos e a falta de profissionalismo de muitos envolvidos quase cancelou o de Brasília. Por outro lado, Porto Alegre fez um milagre e conseguiu ser incluída no roteiro. Os humoristas já soltam seu material, as revistas fazem retrospectivas e os programas de televisão esmiúçam a intimidade dos seis com gente poderosa (...) Entre pontos de protestos contra a influência da massificação cultural imperialista, os fãs contam os dias para a chegada do Dead Train.

O Airtrain decola três dias depois para o aeroporto de Guarulhos. Julia está a bordo (...) Ter visitado um Estado de um território desse tamanho não faz de ninguém um conhecedor do país. A muito custo as emissoras de televisão conseguiram entrevistas, mas (...) não poderão desperdiçar chances com assuntos irrelevantes, o tempo é contado.

Patrícia e Richard têm compromissos à parte, a presença de Arthur será útil para manter o controle enquanto eles tratam de assuntos secretos. Forjar mortes para algumas pessoas começarem vidas novas em outros países, com novas identidades, faz parte de sua agenda.

&

Grande São Paulo em festa! Guarulhos recebe o Airtrain. A multidão barulhenta berra assim que avisam que o Boeing está para chegar. A imprensa se esmera em tagarelar e esvair a ansiedade pela radiodifusão. Quando o primeiro avista um jato verde e preto, todo mundo se aglomera ao redor (...) Os procedimentos de aterrissagem têm início e é como se narrassem uma final de copa do mundo decidida nos pênaltis (...) A aeronave aterrissa e a turba fica histérica, com muita gente passando mal por antecipação.

Assim que o aparelho pára e a escada é posicionada, Matthew corre para registrar a primeira vez da banda no Brasil e as moças berram loucamente ao verem Richard tomando toda a extensão da porta, mas há uma surpresa. Ainda em Sunshadow, em uma visita de Josephine e Zigfrida, a sueca deixou escapar que há um fã clube dedicado a Richard no Rio de Janeiro, com algumas filiais pelas principais cidades do Brasil...

- Mas Ritchie não é um artista!

- Não, mas ele é lindo, enorme, másculo, tem uma aura misteriosa e é visto como o guru do Dead Train, além de estar ficando melhor com o passar dos anos.

- Jose, me diz que é brincadeira! É brincadeira?

- Qual o problema, Nancy? Está com ciúmes?

- Estou... Vocês sabem algo desse fã clube?

- “We Love Richard Gardner Fan Club of Brazil” lhe diz alguma coisa?

- Frida... RICHARD GARDNER!

Foram pai e filha atender à emergência, ele já se perguntando o que teria feito de errado para ser chamado pelo nome completo...

- Pelo amor do deus de vocês, o que eu fiz de errado?!

- Nada, nem vai fazer. Você sabia desse fã clube no Brasil?

- Eu ouvi falar, mas não levei a sério, eu vou viajar a trabalho, inclusive ajudar a salvar o mundo, você sabe. Diga a ela, filha!

- Yes, mom! É só um grupo de adolescentes, mulheres jovens e balzaquianas... Bem... Muitas...

- Mais de dez, mocinha?

- Well...

O olhar da matriarca foi convincente o bastante para ela soltar “Mil setecentos e quarenta membros”...

- Oh, só isso? Vocês têm meus documentos, não têm? Pois peguem os das meninas também e providenciem. SEM MIM, NÃO TEM TURNÊ ALGUMA!

E assim as três viajaram pela primeira vez ao Brasil (...) Nancy surge logo atrás e toma o braço do amado, com as gêmeas logo em seguida, então uma pequena multidão se manifesta, em meio ao silêncio de perplexidade dos outros...

- What?!

Ela fica absolutamente estarrecida ao descobrir que existe o “Fã Clube Mamãe Broto”. Mães e aspirantes de todas as idades a têm como exemplo e modelo de sucesso na educação de sua prole. Patrícia surge logo atrás, mais perplexa ainda, e provoca um verdadeiro cataclismo no aeroporto. Ela exclama “GOD! My mom have a fans!” e os outros logo atentam para o pequeno cartaz que diz “Nancy Petty Gardner, a example and model of mother” (...) A perplexidade logo dá lugar à farra de sempre, com o adicional de Nancy agora ser uma celebridade. A proximidade com os fãs é a de sempre (...) A imprensa brasileira adora saber que o país teve essa regalia, que talvez nunca se repita.

Por causa da comitiva subitamente maior, o ônibus também é. O Mercedes-Benz OM 364 Rodoviário recebe praticamente uma invasão americana e segue para o hotel. Pelo caminho a receptividade e o carinho da banda para com os fãs são vistos ao vivo, e o dono do ônibus já recebe propostas que excedem o valor do veículo novo (...) viajam com janelas abertas, porque por aqui ar-condicionado ainda é um luxo raro. Chegam ao hotel praticamente dentro de um corredor da fãs, repórteres, paparazzi, humoristas e outras criaturas estranhas (...) Nancy fica encantada com a quantidade de Volkswagen Beetle nas ruas, se pudesse levaria todos para casa.

Tem gente da Dead Train Corporation coordenando os trabalhos (...) um padrão de serviços raro de se encontrar no país (...) arranjar gente com uma mínima vontade de aprender e crescer foi um suplício. Dão uma sopa para os photógraphos e sobem para as suítes. Assim que se alojam e soltam “Meu Deus, que calor infernal pé esse?!” vão para a suíte do casal mestre da turnê. Richard dá as últimas advertência e informações úteis, inclusive que tudo por aqui é muito barato para o dinheiro que têm, mas que troquem dólar por cruzeiro ou correm o sério risco de serem enganados. Nancy assume e reitera algumas recomendações...

- Não custa lembrar que vocês podem e devem se divertir, mas estão viajando a trabalho, por isso reitero as regras: Sua alimentação ordinária já está definida, não haverá uma gota etílica à mesa e ninguém sai sozinho. Ninguém mesmo, Richard! Cinco de vocês ainda estão em idade escolar e eu vou acompanhar de perto o seu desenvolvimento, fui professora destes seis e serei de vocês enquanto estivermos em turnê. O toque de recolher, não se iludam com os dias longos deste país, é às vinte horas; mandarei gente atrás de quem não tiver chegado; evitem a qualquer custo companhias desconhecidas. Mais uma coisa, o sol dos trópicos é inclemente, os riscos de manchas, desidratação severa e um câncer de pele são muito maiores, a recomendação médica e minhas ordens são para evitarem ficar ao sol após as dez e antes das dezesseis horas, mesmo Renata, Ronald, Lucille e Rita; suas peles são mais resistentes, mas não são imunes. Qualquer coisa fora do que já foi exposto, por mais inocente que pareça, se reportem a Ritchie ou a mim imediatamente. Agora o principal: Nós não estamos em uma democracia, tomem cuidado com o que falam em público! Entendido? Óptimo. Honey, eu sei que este papel normalmente é seu, mas por esta turnê eu o assumo.

- WOHOOOOOOOO!!! Mommy, I loved!

Ela dispara para abraçar e sacolejar a mãe. (...) agora poderá se concentrar em ser cantora internacional e agente secreta sabotadora de guerras mundiais. Tudo tendo ficado claro, podem todos aproveitar suas horas de folga (...) Os brasileiros ficam espantados com a simpatia e o domínio que eles têm do português. Embora não percebam, há agentes infiltrados no hotel, só Patrícia, Arthur e Richard os identificam. Conversam com alguns como se fosse com serviçais e hóspedes, repassando e colhendo informações vitais. Voltam aos seus afazeres civis já sabendo o que fazer, começando com a primeira ligação de Josephine, logo mais à noite. Agora vão ao lanche que foi encomendado. A presença das crianças coíbe alguns termos mais adultos, mas dá uma alegria imensa.

Os dezenove conhecem o Morumbi (...) Como Richard já disse, os estádios brasileiros são enormes, infelizmente a serviço da alienação da população, mas darão um fim útil na noite seguinte; não só musical, mas alguns acordos internacionais serão selados enquanto o público se diverte (...) Começam a ensaiar com Blues nº1. Interrompem por um segundo, Lucille está se destacando muito das outras. Blues é a sua área! Robert vai a ela, sorridente e a puxa para o piano...

- Mas eu...

- Você pode! Você pode! Sente-se e pense só no seu coração. Respire fundo... Isso! Agora vamos... Dom, faça um solo com a gente.

- Were you are? This home is so big whitout you. The night is so cold and so long, because my clock stoped the time, and so... About me, I’m still in the else sad place were I’m since alone from last time, my love, remembering the sweet good times, wen we was two and the bad time was good...

As duas vozes não se misturam, a interpretação dela é mais visceral. Ronald observa, deixa uma lágrima escorrer e se sente como se fosse o pai da irmã, explodindo de orgulho (...) Logo após encantarem os operários com sua humanidade e humildade, fazem o passeio oficial no mesmo OM 364 pela Avenida Paulista, entrando por alguns bairros, esticando até o Pinheiros e voltando ao hotel.

Enquanto isso, Nancy está com as filhas e os bebês, conversando com suas fãs. Ela age como se fosse um sonho e fala como se estivesse em um, porque tudo lhe parece muito maluco para ser verdade. Ela detalha os métodos utilizados na educação de Patrícia (...) vêem que não se trata de nenhum castigo perene, todas as descrições da americana estão repletas de ternura...

- Eu basicamente mantive Patrícia ocupada o máximo possível. Richard ajudou muito, levando-a para a oficina, onde ela acabou pegando gosto pela mecânica, como estas duas também. As crianças precisam se sentir úteis, precisam ter ciência de que sua contribuição na casa faz a diferença...

Elas anotam como se o hall do hotel fosse uma sala de aula. Há paparazzi por todos os lados, procurando evidenciar a beleza da americana e suas jovens filhas. As duas, aliás, atiçam as fantasias dos homens ao redor (...) Mas são pouco mais do que crianças, por isso Nancy as mantém sempre por perto. Chega Matthew, com uma assistente a menos, mal acostumado (...) os três trocam sorrisos e começam a prestar atenção ao episódio. Será um belo bônus para a divulgação.

&

Dois generais e uma garota. Patrícia ouve o que os militares têm a dizer, até aceita receber um desabafo por conta da “frustração pelo que a revolução se tornou”, estão indisfarçavelmente contrariados com a situação. Nos dois fica uma impressão confusa, poderiam ser avós dela, tudo nela é lindo e refinado, mas sabem que (...) é mais seguro receber uma injeção de cianureto do que tocar nela. Ela sabe muito bem no que o golpe (ou revolução, que seja) se tornou, mas se poupa de dizer que não poderiam esperar mais do que isso, não com o tipo de apoio que conseguiram. No final das contas, acabam acertando as mortes que forjarão para que os alvos possam sair vivos e seguros para uma vida nova, longe dos canalhas que se aproveitaram da intervenção militar. Ela comunica imediatamente Josephine (...) É muita gente que vai trocar de identidade e país, para o quê haverá um ano de treino (...) Agora volta para sua banda e sua família, está quase na hora de almoçar e Nancy falou sério quando disse que mandaria buscar quem se atrasasse. Dois oficiais levam um elemento à presença dos generais, antes que Patrícia tenha a chance de se afastar muito. Normalmente não poderia interferir, mas o alvo da pichação era justo a sua banda...

- Senhores, temos nosso primeiro voluntário.

- Você acha que ele serve?

- Sim, veja a carinha de indignação dele. É sincera.

- Eu só queria me manifestar contra a invasão da cultura americana!

- Você quer ajudar a cultura nacional, rapaz?

- Foi pra isso que eu vim...

- Chamem meu pai, ele vai servir direitinho. Vamos fazer uma encenação. Um carro da polícia virá, levará um dos policiais sem a farda e todos pensarão que é você.

Ele tenta disfarçar, mas fica molinho na presença da moça, ainda mais que ela o tranqüiliza e lhe dá garantias de integridade. Richard chega, estuda o garoto e concorda, é perfeito. Contam-lhe algumas coisas que ele precisa e pode saber, falam de algumas conspirações, que esquerda e direita estão mancomunadas para forjar uma falsa democracia no futuro e tudo mais (...) então ele vê que alguns blocos de suas teorias acadêmicas começam a se encaixar muito melhor  (...)Todo doutrinado faz nos outros, mesmo sem querer, a mesma lavagem cerebral que porventura tiver sofrido (...) Patrícia e Richard concluem a programação neurolinguística para ele mesmo se livrar de qualquer doutrina, para raciocinar por conta própria, sem lentes ideológicas. Um agente se aproxima e avisa que dois elementos seguiram o camburão...

- Você reconhece a descrição?

- Reconheço. Mas eles deveriam estar em Minas Gerais!

- Como se diz no Brasil, você foi usado como boi de piranha. Aqueles dois estavam esperando um desfecho trágico para te transformar em um mártir. As coisas poderiam estar muito piores, Ricardo, muito mesmo. Não fossem pessoas com intenções sinceras e pés no chão, como os generais aqui, os muitos canalhas que tomaram carona em 1964 teriam instituído a execução em praça pública. A pouca liberdade de expressão que vocês têm, seria nenhuma, como nos países da cortina de ferro. Mas você vai ajudar a gente, não vai? Não queremos nomes, tudo de que não precisamos é de um herói acidental para eles, queremos que você trabalhe contra o regime, mas também contra os ideais fascistas que o partido comunista russo divulga como a alvorada do paraíso.

- O que eu tenho que fazer?

Tentam ser rápidos, porque Nancy está acompanhando os ponteiros do relógio.  Ele sai com os militares pelos fundos (...) os dois acertam o passo, precisam chegar para o almoço antes das doze...

- Seis, cinco, quatro... Muito bem, salvos por três segundos! Vocês não poderiam ter salvado o mundo mais cedo?

- O mundo é imprevisível, mommy.

- Às vezes temos que mostrar por A mais B os riscos que ele corre, é difícil convencê-lo!

- Ok, vocês chegaram na hora. Vão lavar suas mãos.

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