terça-feira, 9 de outubro de 2018

Dead Train in the rain LIV

    O entrosamento. A estação 54 tem as nuances que o trabalho de uma líder humana e determinada produz, o respeito é a mais brilhante delas. Na próxima estação tem mais bagunça; embarquem, o trem vai partir.


No começo era um porto, e o porto se fez a capital da Dinamarca. Copenhagen parece uma aquarela desenhada e pintada por Renata, quando tinha nove anos e sonhava com um país de bonecas. Vão para o hotel pelo caminho mais longo, um tour pela cidade. Até agora não sentiram mau cheiro nenhum, pelo contrário, sentiram mais cheiro de chocolate, que lota o ônibus. O reino cheira muito bem, mas o chocolate será regulado assim mesmo.

Alguns fãs os aguardam no hotel, com mais chocolate, sem qualquer constrangimento. Eles acreditam que Patrícia gostou dos chocolates que a banda ganhou na Suíça. Ela gostou, tanto que mandou para casa a maior parte (...) Mas deixar toda aquela massa de cacau à disposição dos fominhas da banda, está fora de cogitação. Novamente serão três barras para cada um e uma cesta de uso coletivo, o resto vai atravessar o Atlântico. Tiram photographias com os fãs e se aboletam em seus aposentos.

Zigfrida aproveita o dia de descanso para reunir todo mundo, quer que cada um solte o que está sentindo. Falta de casa é unânime, especialmente entre os novatos (...) Embora não reclamem do trabalho, sentem falta de sair cedo e tomar o café pelo caminho, comer um hot-dog no meio da tarde e beber com os amigos no anoitecer. Patrícia ouve atenta e impassível, sabe que esta turnê é uma emergência nacional, acabando por descobrir que é também para a banda, porque a fama já estava do lado de fora da cerca. O caso é simples e uma concessão de sua majestade pode ajudar...

- Você mesma. Você conseguiu a admiração e o respeito de todo mundo, vestiu a carapuça e agora é a líder da banda e de todos os que trabalham para ela. Eles estão esperando uma concessão sua.

- Ok! Parem de fazer essas caras de meninos pidões. Quero todo mundo aqui uma hora antes da coletiva, em condições de dar declarações. Podem ir passear até a tarde e não me tragam mais chocolates, pelo amor de Deus!

É festa. Os doze enchem Patrícia de beijos e se mandam pelas ruas de Copenhagen (...) Agora ela vai cuidar dos oito, especialmente dos seis pivôs de tudo o que está acontecendo. Os repórteres da revista anotam isso também. Fora o que aconteceu em Berna, vai tudo para a edição de fim de ano.

Eles voltam no horário combinado, nas condições combinadas, só falharam por trazerem chocolates (...) também trouxeram frutas cristalizadas e oleaginosas (...) vai tudo para casa. Têm uma coletiva para hoje, um show amanhã, depois mais cinco dezenas de compromissos até o fim da turnê, o que não significa o fim dos trabalhos para o ano. Há um disco para ser gravado e todos terão que participar dele.

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Patrícia descansa (...) relendo trechos do diário da avó. As últimas páginas se referem à injeção de vida que o nascimento da neta lhe deu, e o quanto cuidar dela reduziu sua dependência de medicamentos. Naomi comentou o quanto ela começava a se parecer consigo. Patrícia se olha em um espelho próximo, enrola os cabelos, fecha a gola da camisa e quase vê a avó à sua frente. Decide voltar às primeiras páginas, encontra uma anotação de 1931, quando chegou a haver uma romaria de desesperados por ocasião da crise persistente (...) Isso explica o respeito que ela conseguiu na cidade. Descobre que ela deu nome a nada menos do que três mil crianças, a pedido dos pais, de Sunshadow e arredores, inclusive ao Conde de Marselha, pai de Ronald. É quase isso que lhe acontece hoje, quando até Daniel pede para conversar quando está em apuros.

Voltando um pouco mais, chega a sete de Fevereiro de 1927, uma segunda-feira. Sozinha e desamparada, criando os irmãos menores, Naomi relata uma conversa que teve com Gerald, seu pretendente...

- “Sem meus irmãos não vou a lugar algum, com ninguém, sob hipótese alguma”. E mesmo assim ele aceitou... Cara, meu avô era demais!

No mesmo dia uma pequena nota de rodapé, onde ela comenta o medo de ficar sozinha (...) A anotação seguinte é sobre os preparativos para o casamento simples, a gravidez e depois a felicidade pelo nascimento de Nancy. Há sempre um comentário sobre mudanças de costumes, de moda, novas tecnologias, carros diferentes e até gente de muito longe que de vez em quando entra por engano em Sunshadow. Decide ir à primeira página, onze de Agosto de 1911, uma sexta-feira. A juvenil Naomi relata a surpresa de uns e choque de outros, por uma garota saber ler e escrever tão bem com tão pouca idade, o que a levava a não mostrar a qualquer um sua real bagagem intelectual, que acabou colocando-a nos trilhos do magistério. Mais de cinqüenta anos e nada mudou tanto quanto as pessoas pensam. A anotação seguinte é sobre a proteção que deram a um casal judeu, que estava fugindo de fundamentalistas “Em pleno século XX! Meu Deus, a humanidade não aprende!”...

- Infelizmente não, vovó.

A anotação seguinte fala de uma torat e alguns livros iniciáticos (...) desmontados e enxertados em alguns livros de sua biblioteca particular...

- Esses livros hoje são meus!

Termina lendo uma passagem que diz simplesmente “A cultura judaica é riquíssima! Quem nos dera nossas mentes fossem mais abertas do que nossas bocas, e nossa conduta mais rígida do que nossos dedos”. Agora ela acredita ter encontrado o “segredo” da imensa sabedoria de sua avó, ela deve ter lido e absorvido com facilidade todo o arcabouço que está naqueles livros. Falará com o pai amanhã cedo, agora é hora de dormir.

Na manhã seguinte (...) Richard confessa desconhecer essa biblioteca oculta. Ligam para Nancy, que quase tem orgasmos em ouvir as vozes deles, ela diz que a mãe falava em tesouros ocultos em sua biblioteca, mas nunca houve sincronicidades que permitissem a revelação desses tesouros. Hoje mesmo ela vai ver isso (...) Patrícia verá se Renata sabe algo a respeito do judaísmo (...), ela sabe bastante a respeito e se mostra surpresa...

- Vixe! Eu quero ver esses livros!

- Eu mais ainda! Você não imagina as coisas pelas quais ela passou e viveu pra contar! Acredita que a casa dela era a única em que havia fartura, durante a crise de 1929?

- Ei, desenvolve isso! Dá uma música, sério! “Na casa de vovó nunca faltou uma refeição”.

- Vou trabalhar nisso, depois da turnê; “The grandma’s home”.

Terminam o intervalo e voltam ao ensaio. O prazo é apertado, ainda têm uma visita de cortesia ao rei Frederico IX logo mais à tarde. O tom de conciliação da banda o agrada (...) O prestígio da banda, em paralelo, é muito interessante ao Estado dinamarquês. Nada com que bla-bla-bands possam contar em seu currículo.

&

Estocolmo e uma psicóloga feliz. Zigfrida fica esfuziante de poder conversar com alguém em sua língua materna, assim que descem do avião...

- God morgon, kära!

- God morgon, fröken! Välkommen till ditt land!

É a única fluente em sueco no grupo, que a olha com cara de “Exibida!”...

- Gente, com todos os defeitos culturais da Suécia, eu amo este lugar! Quase chorei quando precisei emigrar para ter a formação específica de que precisava. Vocês precisam andar em um Saab e em um Volvo! São coletes à prova de balas sobre rodas. Patty, eu te arranjo umas revistas automotivas, pra você ter uma noção do que estou falando.

Mesmo com o mar de fãs na frente, ela consegue reconhecer sua cidade natal. Ainda é capaz de passear por suas ruas sem se perder (...) Faz questão de se sentar na primeira poltrona do ônibus e ciceronear (...) nunca viram um sorriso assim naquele rosto de boneca de louça. Apesar do caráter forte, fisicamente Zigfrida é uma mulher frágil e delicada. Quando chegam ao hotel ela tem uma surpresa...

- Pai! Mãe...

Muito emotiva para os padrões nórdicos, ela chora abraçada aos pais. Eles temiam que o sucesso e o status a tivessem tornado mais fria (...) Foram eles que a convenceram a tentar a sorte na América, onde as cabeças são mais duras e não existe a velha racionalidade sueca para facilitar soluções padronizadas. A brasileira trata de (...) levar o casal consigo para as suítes, eles nem percebem que estão sendo arrastados (...) Envolve os suecos de um modo como eles não conheciam e logo eles soltam pérolas sobre a filha. Uma delas é emblemática: “O prazer é uma conseqüência maravilhosa, mas como foco de busca ele só traz frustrações”...

- UAU! Vou pintar uma placa com isso, no portão de casa!

- Vocês não imaginam como ela foi estranhada, quando soltou isso na faculdade – diz a mãe.

- As pessoas acreditam que ter prazer é tudo, que se sentirem prazer serão automaticamente felizes, mas os índices de suicídio comprovam justamente o contrário – diz o pai.

- Fui execrada de muitas turmas acadêmicas que integrava. Sabem quando algo que é bom em princípio vira vício e seus viciados passam a defender como se fosse um deus? Entendeu minha preocupação, Rebeca? Por isso precisei emigrar, eu tive a sorte de encontrar Audrey assim que pisei em Los Angeles, literalmente no aeroporto. Ela gostou da minha linha de pensamento e me ajudou em tudo.

A conversa rende, Patrícia adora ver os pormenores da vida de sua psicóloga vindo à tona (...) Chega por trás e a abraça, para ver se amolece mais um pouco e solta mais coisas; funciona de imediato, logo os relatos da infância passam a ser de domínio da banda. Matthew e os repórteres estão registrando tudo. Sentem um cheiro familiar, olham para a porta e vêem empregados do hotel chegando com chocolates. Bem, já sabem o que fazer. Prometem uma visita à casa da família, assim que terminarem com o primeiro ensaio.

Deixam a ruiva à vontade com seus pais, matando saudades (...) Depois vão conhecer o estádio do show e fazer o primeiro ensaio. Parece que os suecos aprenderam com os shows nos outros países, está tudo muito próximo do ideal (...) podem partir rapidamente para a parte musical. Não deixam de notar que os operários param completamente quando ensaiam uma canção.

Cumprem com a promessa, e a casa onde Zigfrida viveu até a adolescência vira alvo da imprensa e dos paparazzi (...) parecem brotar do chão, feito zumbis! Os álbuns de photographias da família rendem uma farra, a todo momento alguém aperta as bochechas dela, vendo suas imagens de primeira infância. Lá fora, Richard conversa com um agente disfarçado de repórter, as informações que o fugitivo da Alemanha Oriental passou (...) foram preciosas.

A noite seguinte aprofunda as relações diplomáticas da banda, o rei Carl Gustav vai conhecê-los nos bastidores (...) uma sueca como psicóloga da banda passa a ser motivo de orgulho para o reino (...) Após o show de hoje, se refugiarão em um castelo no interior da Inglaterra, em segredo, para (...) os seis poderem se dedicar um pouco mais aos estudos.

“They can’t every time be wrong, because then they could not exist. Dont take this as a rebuke, I only say this because I love you . Today may not look it, but I love you. Today I may seem distant, but I need you...”

Patrícia acorda no meio na noite com a canção na cabeça e se apressa em anotar. Na manhã mostra aos parceiros. Ronald acha a canção a cara da Cher (...) É diferente do que se toca hoje, nesse meio dos anos sessenta, mas está mesmo na hora de alguém começar a renovar a música popular, não podem deixar tudo nos ombros dos Beatles. De “Stop and listen” nascem mais três canções, que os dezoito ensaiam descompromissadamente (...) “The grandma’s home” acaba nascendo antes do tempo. Para os novatos é uma honra e um ponto precioso no currículo. Para os outros adultos é um gosto doce ver que os seis não perderam o afã pelo ofício, apesar do ritmo pesado dos últimos dois anos. As próximas turnês serão bem mais amenas, estas são para desbravar seu território.

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