segunda-feira, 22 de outubro de 2018

Dead Train in the rain LXVI

    As duas mães de Arthur. A estação 66 dá uma amostra do brilho que Hollywood perdeu com a banalização. Vistam-se com glamour e embarquem, o trem vai partir.


Josephine termina de ler o relatório sobre os Queixada. O histórico é quase aterrador, eles foram terríveis (...) É difícil para ela e Bart ligarem esse histórico violento a Arthur, o meigo e tímido Greg, que pegaram à beira de um abismo e cercaram de todos os cuidados necessários (...) liga para Patrícia e avisa que antecipará a visita, para conhecer a família do rapaz...

- Ok, vou prepará-la para a visita. Aviso que ela vai cair de joelhos assim que te ver, ela fala de você a cada vez que o assunto é cinema, e olha que nem se deu conta de que somos amigas.

- Mas ela sabe da ligação que temos! Ou não?

- Não tenho certeza... Quando falamos de você, ela parece acreditar que é uma homônima, mesmo com as descrições que fazemos. Vou fazer uns testes e depois mostrar um de nossos álbuns de photos.

Ela o faz, com cuidado. Avisa aos presentes que Jose irá visita-los amanhã e quer conhecer Carolina. A mulher fica curiosa por saber quem é essa Jose (...) homônima da diva. Os sete a olham com caras de quem não entendeu a brincadeira, Patrícia sobe à sua suíte para buscar um álbum. A escada de vão suspenso é ladeada pela porta da cozinha e a da biblioteca (...) A sala de pé direito duplo, com paredes de vidro para fora e para o interior do lote, dá paisagem para o balcão e o corredor das suítes, que podem ser ocultados pelas persianas automatizadas de alumínio (...) Desce com o álbum mais recente (...) um desses álbuns que só se mostram para amigos e parentes mais próximos, por terem cenas de afeto explícito e momentos em que gente forte demonstra a fragilidade que esconde dos estranhos...

- Estamos tendo um problema de comunicação. É esta a Jose a que nos referimos; Josephine Delacroix, aka Jose De Lane.

As photographias coloridas deixam Carolina atônita. Ela custa a acreditar em seus olhos, mas reconhece aquele olhar, aquele sorriso, aquela expressividade magistral, aquele brilho ofuscante...

- É a Jose De Lane...

- E você pensou que fosse quem? A mulher que acolheu e praticamente criou meu marido, seu filho, é Jose De Lane. Ela é praticamente madrinha dele.

- Ela quer me ver?

- Sim ela... Carolina!

Ela (...) desmaia. Robert a carrega nos braços, para não perder a tradição, e a coloca no sofá próximo ao piano, que encheram de almofadas. Ela acorda em menos de cinco minutos, Arthur chega dez minutos depois e decide se prevenir, tão logo a água com açúcar faz efeito...

- Você não me disse que essa Jose era a Jose De Lane!

- Mamãe, que Jose estrela do cinema seria?

- Não sei, é que vocês falam dela com tanta intimidade, que parecem falar de uma pessoa comum, não da Jose De Lane!

- Ah, ok. Vamos combinar umas coisas, para evitar maiores constrangimentos amanhã cedo;

  •          Em primeiro lugar, ela se considera uma pessoa comum. Não faz questão nenhuma de esconder seus defeitos e não hesita em ser dura com alguém, embora as pessoas relevem e considerem isso uma demonstração de autenticidade, em uma profissão que preza o oposto;
  •          Em segundo lugar, evite dizer “minha musa, minha diva, meu ídolo” mais do que três vezes por minuto; isso a irrita. Ela gosta de gritinhos, de abraços, de todo tipo de festejo, mas não aceita ser bajulada;
  •          Terceiro: Olhe nos olhos dela. Sempre, impreterivelmente nos olhos dela, quando estiverem conversando. Ela vai te analisar da cabeça aos pés, se hesitar em olhar para ela, a luzinha de alerta se acenderá em sua cabeça;
  •          Quarto: Elogie à vontade, mas não tente agradá-la. Jose é uma kardecista de primeira linha, ela acredita piamente que as pessoas devem servir umas às outras, não simplesmente serem servidas, é para isso que ela tem um palacete, para acolher a família e pessoas próximas;
  •          Quinto e último, mas não menos importante: Ela foi minha mãe durante todos esses anos em que eu fui Gregory, não tente tirar esse direito dela, por favor!

- Ela é kardecista? Como a gente? Isso explica ela ser tão caridosa e sensível, pelo menos é o que dizem as revistas...

- Ela é, mas prefere não alardear o que não for realmente necessário (...) antes que pergunte, ela tem muitos segredos, eu não sei metade e do que sei não posso contar um décimo. Só posso garantir que toda a admiração que tiver por ela é justificada, se não pouca. Lembre-se de que ela me tirou da sarjeta e me criou por mais de dez anos, não me poupou de eu me manter com meu trabalho, mas sem ela eu não estaria aqui.

- Se eu beijar os pés dela, não vai ser suficiente pra agradecer por ter cuidado de você, Arthur.

- Diga isso e ela se desmancha toda.

- Só de pensar que eu não o teria hoje, já me embarga a voz – diz Patrícia, abraçando o marido por trás. Esfria a cabeça, você vai ver que ela não é difícil de lidar.

Ela espera que sim. A índole de fã se mescla à gratidão por ter cuidado e educado tão bem o filho. Na manhã seguinte, bem cedo, ela acorda com um barulho vindo do quintal. Vai à janela e vê Patrícia de camiseta e moletom, treinando caratê, após ter feito exercícios ordinários. Ao lado dela, de modo meio desajeitado, está Arthur, tentando aprender um pouco. Após a sessão, ela o empurra para a piscina e pula logo em seguida. Os dois olham para cima e acenam para a mulher atônita, convidando para um mergulho, antes de começarem o dia.

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Richard busca Josephine, Grant e Bartholomew. Ela não faz mais questão de se disfarçar, mas é bastante discreta usando um coque indefectível, em seu vestido médio, preto de gola quadrada, cinturado e minimalista. Ela está ansiosa por conhecer a mãe biológica de seu filhote postiço. Entram no Corvair Sedan azul, último tipo, e seguem para a cidade, conversando amenidades de agentes de vida dupla; golpes, conspirações, malucos tentando dominar o mundo e outros piores acreditando neles, nada além do trivial. Vão com calma, os seis estão conversando sobre participações em clipes de outros músicos, outra no The Muppets Show, além de algumas entrevistas que abordarão o problema das crianças órfãs (...) A frente sem muro mostra imediatamente a chegada do carro de Richard, a janela traseira revela a visita, Patrícia deixa o piano para correr saltitante e abraçar a diva. A sogra vê e fica paralisada, afinal não é qualquer actriz, não é um simples rosto bonito na tela do cinema.

Ela é Jose De Lane, nascida Josephine Delacroix em Champagne, interior da França, de onde emigrou com a família (...) Ela é Jose De Lane, a garota que deu uma joelhada nos testículos de um figurão do cinema e mandou usar a carreira prometida como supositório, preferindo ser garçonete a meretriz de cinema, foi reconhecida por David Grant quando lhe servia panquecas e suco de limão, em uma tarde fria no inverno californiano (...) Entrou pela porta da frente nos estúdios e mostrou rapidamente o que os concorrentes perderam, por faltarem com o respeito. Salvou centenas de empregos atraindo o público de volta aos filmes da companhia e ganhou a gratidão eterna de milhares, mas o desafeto de dezenas que queriam desmembrar e vender o espólio da massa que não faliu.

Jose De Lane, a actriz que faz a personagem mais insossa ganhar brilho e carisma, a executiva mais respeitada de Hollywood, o rosto que desde a adolescência encanta o mundo. Profissional tão fria e calculista quanto é acolhedora e caridosa como pessoa. Jose De Lane, o mito que esconde Josephine e sua vida dupla, a diva de milhões, a musa de gerações inteiras, a majestade de uma espécie de estrela que está escasseando rapidamente, a quem a palavra “Hollywood” remete imediatamente. Desde o primeiro papel fazendo actores consagrados parecerem novatos, directores veteranos parecerem amadores e roteiristas de renome parecerem acanhados. Não importa o quanto os textos a desafiem, ela sempre se sobressai. O ídolo, o mito, a rainha inconteste na terra do voto livre. Ela é...

- Jose De Lane...

Carolina não consegue falar mais do que isso. Tenta seguir os conselhos do filho, mas a aproximação da estrela magna é intimidadora (...) ela a analisa ainda no caminho da larga calçada para a ampla porta de vidro, conversando com sua pupila. Usa o fascínio que desperta como neurotoxina, inibindo gestos dissimulados. Seu olhar firme e atrevido é a presa afiada que inocula a peçonha. O que vê à frente, em primeira análise, é uma fã ardorosa que está prestes a cair de joelhos, cena que já aconteceu várias vezes em público e a constrangeu muito, por isso toma a iniciativa e vai a ela...

- Mon dieu, la mère de mon cher Arthur!

A brasileira, vendo os braços abertos, dispara para o abraço e chora copiosamente, agradecendo por ela ter cuidado de seu filho e (...) que nem em mil encarnações poderá pagar por isso. Josephine se desmancha (...) se lembra do menino de recados que, após entregar-lhe tulipas enviadas por Clark Gable, sentou-se em um caixote e contou moedas, para ver se compraria o almoço do dia com elas. Vendo que seria insuficiente, perguntou se tinham algum trabalho que pudesse fazer, e ela o mandou carregar sua frasqueira até o trailer, depois o mandou ler algumas falas e com ele ensaiou as suas (...) lhe deu a chance que ele não desperdiçou, com a condição de que também estudasse. Ela até pensa em agradecer pelo empréstimo do filho, mas se ocupa em acolher a cabeça da fã chorosa (...) Nunca se sentiu tão perto do paraíso. Ama aquele rapaz como sabe que teria amado o filho que o atentado lhe tomou, por isso sempre foi tão dura e exigente com ele.

Bart, Grant e Richard observam (...) é a primeira e provavelmente a última vez que vêem uma fã ardorosa agradecê-la assim. Os três (...) sabem que essa gratidão não é exagerada, embora pareça. Para o idoso, o que vier é lucro, acha que já deu o que precisava dar ao mundo (...) poucas vezes viu a amiga tão emotiva e acolhedora, a última foi quando os garotos sofreram o atentado em Dallas.

As duas se sentam no sofá que dá para a piscina, abraçadas a Arthur (...) é um alívio poder ser carinhosa, após tantos anos de rigor professoral com ele. Carolina sacia a curiosidade de Josephine sobre como se deu a revelação da identidade do rapaz, a brasileira não poupa detalhes e discorre fartamente sobre seu velho tio...

- Parece ser um homem sábio!

- Muito! Ele tem mais autoridade em Rio Verde do que o prefeito.

- Isso me lembra uma jovem senhora de Sunshadow. É engano meu ou haverá uma ligação espiritual forte entre a América e o Brasil? Joanna De Angelis deve estar por trás disso...

- É mesmo! A Renata sugere que eles passem a lua de mel em Rio Verde, na mesma época em que meu tio me avisa de um presente de aniversário atrasado a caminho, depois ele vai visitar o Daniel e eu passo por acaso na igreja...

- Conspiração espiritual! Oh la la! Grant, nós somos amadores! Ele falou algo mais a respeito?

- Só que “Cristo vai abraçar a liberdade e unir duas nações amantes”. De vez em quando ele profetiza, mas ninguém entende bulhufas!

- Pois eu entendi. Entendi e gostei! Qualquer dia desses, quero falar com monsieur Quimbim.

- Ei, sobrou um pouquinho de Arthur pra mim? Sou a esposa.

Ela chega por trás e se agarra ao pescoço do marido, a única parte disponível.

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