domingo, 14 de outubro de 2018

Dead Train in the rain LIX

   Mudanças, mas não muitas. A estação 59 traz a triste constactação de que a idade não traz maturidade, principalmente quando há dor de cotovelo no meio. Contem até dez e embarquem, o trem vai partir.


Patrícia chega de Los Angeles e vê a mãe com as duas pequerruchas à sua espera. O aeroporto é pequeno, mas atende bem às necessidades da cidade. Agora tem que dar três abraços a cada retorno (...) esperava dar um descanso ao Fusca da mãe, quando comprou seu Corvair Monza conversível, mas com uma cidade tão pequena e viajando tanto a trabalho, ele mal rodou duzentas milhas até hoje. Aproveitou para comprar os últimos detalhes que faltavam ao Cadillac...

- Hoje mesmo eu termino esse carro!

- Greg está melhor?

- Está, foi só um susto. Descobrimos a doença a tempo.

- Cardiopatia mesmo?

- Moderada, mesmo assim tomamos algumas providências, ele agora mora com Bart, para ter a Jose sempre por perto.

- Patty! Look...

- Patty! Rebby made, Patty!

As gêmeas pedem sua atenção. Não vão dizer muita coisa, só querem sua atenção mesmo. Ela as deixa chamar até encontrar um bom lugar para estacionar (...) apenas mostram os lacinhos que ganharam da “tia Rebby”. São apenas lacinhos simples, que Rebeca fez com fitas que embrulhavam um presente de São Valentin, acrescentando apenas grampos de cabelos. Elas não têm noção do quanto são ricas, e os adultos da casa preferem que continuem sem saber até terem juízo (...) Mikomi foi morar com Emily e Theodore, a convite do casal, que tem um quarto sobrando e um cômodo que ela agora usa como escritório.

Os outros cinco a esperam para terem notícias detalhadas de Gregory. São tranqüilizados, mas não muito. O rapaz terá que mudar bastante sua rotina diária (...) mas nada se comparou ao pedido encarecido da namorada. O clima fica meio triste no jardim, até Rebeca notar um brilho estranho...

- Rê! Isto é uma aliança?!

- Eu ia esquecendo... O Matt foi hoje cedo, lá em casa, com os pais dele. Agora estamos noivos.

Abrem o berreiro e carregam a amiga pelo jardim (...) então Richard vai cobrar uma dívida...

- Já ligou para o Tobby, Romeu?

- Ei, calma, eu estou ligando agora!

O sorrisão sem-vergonha estampa o rosto do grandalhão. Tobby conta imediatamente para todo mundo (...) avisa que vai hoje à noite para Sunshadow, para gravar a entrevista prometida. A imagem dos seis garotos de Sunshadow dá paulatinamente lugar à do sexteto adulto e experimentado, o anúncio do noivado vai consolidar de vez a fase adulta no show business. Rebeca é muito precoce e dona de si para ser chamada de “menina”.

O escritório (...) fica lotado de gente querendo informações detalhadas, inclusive apressados perguntando onde será o casamento. Mikomi manda a notícia para Tóquio, ainda que isso signifique acordar um colega exausto (...) Patrícia cumpre sua promessa, coloca os últimos emblemas no Cadillac e faz sua estréia com a banda a bordo, e saem fazendo barulho, chamando a atenção da cidade inteira para aquele aniquilador de gasolina. Renata (...) quer chegar ao local do casamento naquele carro.

À noite, na discrição do quarto que ocupa desde criança, Patrícia volta a ler um dos livros que estavam camuflados, um talmud comentado. Não é uma leitura de entretenimento, se cerca de alguns livros extras para consulta e conferência. Nancy bate à porta...

- Mikomi está na sala, quer falar com você.

- O que houve?

- Aquela garota estúpida, lembra-se?

- Eu não acredito que ela tenha voltado! É muito descaramento!

Descem e encontram a japonesa aflita, com um envelope amassado em mãos. Robert o jogou fora, não fez questão de ler, mas Mikomi leu...

- Nas primeira linhas parecia apenas um pedido de desculpas, mas no decorrer da leitura ela relembra os bons momentos e pede uma nova chance, me ofendendo.

- Deixe eu ver isto... Faz muitos anos que ela sumiu, mas lembro que tinha uma caligraphia entre sofrível e razoável, esta aqui é quase perfeita! Rebeca viu isto?

- Não, ela está na casa de Ron.

- Tanto melhor... Ron, é Patty, desculpe incomodar. Pode trazer a mascotinha, por gentileza? Sim, é relativamente urgente, diz respeito a Bobby.

Ela não espera Ronald terminar, se enfia no P50 dele e dispara, ele vai atrás, no Cadillac Fletwood 1965 do pai. Rebeca confirma a desconfiança da amiga, aquela letra caprichada não é daquela relapsa, é da mãe dela...

- Ela sempre foi imbecil, mas nunca teve esse nível de babaquice, nunca ofendeu ninguém de graça. Fica tranqüila, Miko, é a cobra da mãe dela tentando arranjar um genro rico e famoso.

- Como saber se ela não está de acordo com isso?

- É até provável que esteja, mas a chance dela é zero. Vai namorar, amanhã contamos pra ele.

Enquanto saem, Rebeca faz sinal para Patrícia, amanhã quer continuar o assunto (...) Ronald põe o P50 no porta-malas do Cadillac e conduz as duas. Patrícia se antecipa, conversa com o pai e ele conversa com os agentes carteiros, não demoram a descobrir algumas coisas interessantes. Na manhã seguinte, na universidade, os seis e Silvia se reúnem e Robert se aborrece com o conteúdo, mas fica atento ao que Patrícia diz sobre as brigas entre mãe e filha, que saiu de casa assim que fez dezoito anos. Como raramente, ele faz uma cara severa, explicitando sua indignação. Respira fundo, desfranze o cenho e dá seu recado...

- O nome do casal é Mikomi e Robert – diz com voz grave. O que está no passado, fica por lá. Agora vamos, nossas faculdades nos esperam, depois a Renata tem coisas a nos contar.

Silvia cutuca Enzo, que confessa jamais ter visto Robert fazer uma expressão desse tipo. Vão ambos para a faculdade de administração, Ronald e Robert vão para a de relações exteriores, Rebeca para a de direito, Renata para a de psicologia e Patrícia para a de engenharia mecânica. Como no colégio, eles são estranhados em seus cursos (...) e Rebeca responde no mesmo tom; rosnando. Novamente eles estudarão juntos no fim de semana, conciliando como puderem suas áreas tão distintas. Mas nenhuma turma estranha mais seus colegas famosos do que a de Patrícia (...) é uma mulher fazendo engenharia mecânica, não bastasse isso demonstra mais intimidade com as máquinas do que seus colegas, que raramente ou mesmo nunca sequer desmontaram um simples compressor de ar. As aulas teóricas quase nivelam, mas as práticas são totalmente dominadas por uma moça com mais de dez anos de prática...

- Você vai montar essa máquina ou vai fazer ensopado de metal?

Alguns começam a rir, quando ela despeja água quente no compressor que foi usinado com as medidas demasiadamente próximas, inviabilizando a montagem manual que a aula exige. Após lubrificar pistão e cilindro, ela despeja meio litro de água quente no segundo e enfia o outro lá dentro, calando as risadas, deixando queixos caídos e ganhando aplausos de alguns colegas (...) a solução simples poupou tempo e dinheiro da usinagem de outro kit...

- As leis da física também valem para as máquinas.

Diz e se retira altiva, ficando entalada em algumas gargantas orgulhosas, mas os outros a ovacionam...

- Patty, eu já era seu fã! Agora sou muito mais!

- Uma garota que entende de motores é um sonho!

- É verdade que você restaurou um Cadillac 1931?

- Sim, é verdade. Levei alguns anos, mas o Fletwood Sedan Imperial V16 já está trabalhando.

Ela detalha os serviços de usinagem, funilaria e electricidade que fez, arregimentando mais um punhado de seguidores, inclusive seu professor de metrologia.

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Em sala, Rebeca mostra aos colegas e professores um exemplar da constituição brasileira (...) em português, então ela mesma lê e mostra os absurdos que a deturpação da democracia pode produzir...

- Mas é horrível! Essa constituição tem mais brechas do que uma parede com infiltração!

- Quem redigiu esses textos, ou não conhece bem o próprio idioma, ou fez de propósito!

- Para o colega ver o risco que nós mesmos estamos correndo, com a população desinteressada por política e pouco atenta ao que os congressistas fazem no cotidiano. Sabiam que até 1962, uma mulher brasileira só poderia trabalhar se o marido deixasse? Mal faz quatro anos que essa lei caiu.

Legislação internacional não faz parte da licenciatura, mas a discussão que ela levantou acrescenta muito à aula (...) A mascote da turma fala ainda, sabido pela amiga, da farra dos cartórios no Brasil, que são um verdadeiro pesadelo para os advogados brasileiros, que têm que apelar para o chamado “jeitinho brasileiro”, muitas vezes com propinas e favores políticos.

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Renata, por sua vez, conquista a turma com sua simpatia e sua “tropical beauty”. Os professores também, mas (...) ela não é frágil como aparenta e os outros alunos acreditam. Em uma conversa reservada...

- Ra! Ra! Ra! Ra! Ra! Ra...

- Você, sua cobrinha em pele de colibri, é das nossas!

- Não fui eu quem alimentou estereótipos e começou a arrotar civilidade.

- Eu sei... Mas agora fiquei curioso, a que conclusões você chegou?

Ela analisou com cuidado e discrição todos os colegas (...) O egoísmo camuflado foi a tônica de suas observações. Já tinha alguma literatura, antes da faculdade, mas a convivência com a equipe da banda e a ajuda de Zigfrida são a base de seu desenvolvimento. A sueca sempre repete que toda a literatura do mundo não substitui o contacto com o paciente, ela simplesmente despreza psicólogos famosos que vivem de palestras, mas não têm a experiência prática de um estagiário...

- Muita gente tacaria pedras em mim, se ouvisse isso, mas eu concordo com sua amiga.

- Ah, esses intelectuais de ar condicionado! Por que eles não morrem?

A brasileira ri. Eles descobriram alguém de fora da docência com quem podem conversar coisas impublicáveis.

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Enzo e Silvia despertam um tipo a mais de antipatia, porque eles são o único casal da turma (...) podem namorar à vontade sem negligenciar os estudos. Enzo não só é um estudante bem sucedido, como trabalha duro e é bem sucedido, ele já é empresário, a banda é uma marca valiosa e ele estuda porque quer. A inveja corre solta na faculdade de administração de empresas. Professores invejosos lhe dão trabalhos que só seriam comuns nos últimos semestres do curso, mas como empresário de sucesso ele tem relações com executivos experientes e tira tudo de letra, levando a namorada de carona no aprendizado...

- Enzo Crepaldi... A+...

E os despeitados desabam em suas cadeiras. Não dá para dificultar ainda mais a vida do rapaz, está ficando muito na cara! Professores de outras áreas e disciplinas já comentam que há perseguição. Ele sai com sua namorada (...) para a biblioteca. Os outros vão (...) sozinhos, sem perspectivas de alguém para abraçar e repousar em seu ombro a cabeça cheia.

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Robert e Ronald agem como quando crianças, sincronicamente. Ver um negro no curso é um acinte para muitos naquela sala. Esse negro já ser bem sucedido é um tapa na cara. Já ter experiências diplomáticas na bagagem chega a ser humilhante. O pior, porém, é aquele terno com o brasão de família, que não os deixa esquecer que ele é um nobre, herdeiro de algo que nenhum deles jamais será. Mas também há os simpatizantes (...) que acabam recebendo da dupla um pouco da experiência em viagens laborais internacionais...

- Só imagine o seguinte – diz Robert – que um país pequeno já não precisa mais conquistar território para ser próspero. Ele não precisa sequer ter muitas fábricas, nem recursos naturais. A habilidade administrativa e a ação conjunta dos empreendedores desse país, podem facilmente fazer com que o fluxo do capital internacional passe por lá.

- Não que recursos naturais – diz o nobre – infraestrutura e um território não façam a diferença, fazem muita. Mas não são mais essenciais. Eu posso, por exemplo, sediar um negócio no México, aproveitando a mão de obra mais barata, usar os centros de pesquisa japoneses, uma engenharia saxônica para a estrutura física e um bom marketing americano. Os motivos para conflitos hoje, são outros, a diplomacia não pode mais se apegar aos argumentos de antes da guerra.

Citam bibliogaphias, sim, mas se apoiam mais em sua experiência, já são habitués em eventos internacionais, são amigos de monarcas e premières, conhecem bem os bastidores de muitos governos, como todos da banda, inclusive os músicos de apoio.

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