terça-feira, 30 de outubro de 2018

Dead Train in the rain LXXIV

     A esperança em forma de menino. A estação 74 tem coisas boas, para variar, porque a vida não é só peleja. Podem babar e embarquem, o trem vai partir, mas em silêncio.


Patrícia passa a cuidar de Renata com o mesmo esmero (...) em exercícios leves de respiração, alguns alongamentos e um pouco de correção postural. Vão ao casamento de Enzo e Silvia já pesadas (...) Daniel aproveita a oportunidade para anunciar que a enteada perderá o posto de filha única. Como reza a tradição, Laura é carregada pelos que ainda podem carregar alguém, inclusive pela noiva.

A barriga de Laura também aparece e ela é incluída na ginástica matinal (...) Os compromissos da banda se tornam mais tênues (...) as três têm suas evoluções registradas em photos. Laura já foi descoberta pela imprensa como a linda e jovem sogra de Enzo Crepaldi. Patrícia tem as mãos firmes e os olhos clínicos do pai para o seu registro, que infelizmente não pode ser diário (...) mas há um espesso álbum destinado exclusivamente a isso (...) Richard não esconde o quanto quer ter novamente um bebê nos braços.

A gestação avançada não é, entretanto, desculpa para folgar (...) As duas ensaiam com a banda, que mantém contacto e troca figurinhas com colegas de profissão. Supertamp e Slade têm sido parceiros freqüentes, as três bandas trocando experiências e experimentando novas sonoridades (...) Houve uma cooperação com The Mamas and The Papas, mas naufragou rapidamente. Bee Gees, Beatles e Rolling Stones são confrades de longa data, enquanto Beach Boys tiveram a primazia e ainda são os mais assíduos (...) Os irmãos Carpenters têm sido os xodós dos seis, mas também uma fonte de preocupações, pelo excesso de trabalho e pelo gênio arredio de Karen.

Renata vai com Matthew à casa de Patrícia, tem um recado do tio Quimbim...

- O neto de que ele falou tem previsão para chegar?

- Primeira metade do ano que vem. Ele tá desgostoso, Patty, aconteceu tudo do jeito mais torto possível!

- Ele me disse que seria assim. Os nossos vão nascer direitinho! Planejados, bem amparados, bem quistos e esperados por todo mundo... Dá vontade de chorar, quando sei de uma criança gerada nessas condições!

- Seremos bem maduras, quando chegar a hora de conversar com ele.

- Não precisamos esperar. Seu tio me deu recomendações bastante pormenorizadas, podemos fazer o serviço desde já, cantando.

- Me desculpem, mas, do que estão falando?

- Matt, você conhece algum homem que deveria ter nascido já castrado?

- Um monte. Quer ordem alphabética, cronológica ou por graduação de caráter?

- É mais ou menos disso que estamos falando – continua Patrícia. Queira Deus que essa criança resista até receber nossas mensagens! Vou consultar vovó.

À noite (...) procura algo no diário de Naomi que possa servir para o caso. Encontra uma pequena passagem em 1933, sobre a curiosidade de Nancy quando Fester nasceu, eles não têm nem um ano de diferença “Não sei que épocas terríveis esperam esses bebês, sei que os tornarei fortes para atravessá-las, porque não há outra forma de proteger que não o fortalecimento” (...) Foi o que ela fez com os dois e depois consigo, o exacto oposto do que se faz nos dias correntes. A anotação seguinte é um desabafo “Esses bosquímanos tratam seus filhos como escravos! Eles pensam mesmo que uma criança maltratada será um adulto forte? A quantidade de palermas amedrontados que aparecem todos os dias não serve de lição?” Ela olha para Arthur, que era um rapaz amedrontado até começar a cuidar dele (...). Estende a mão, lhe alisa a face direita...

- Já pensou de que vai brincar com o bebê?

- Eu custo a acreditar que vou ser pai!

- Então decida logo, porque não demora muito.

- Vou começar brincando de ser pai... Acordar no meio da noite, trocar fraldas, dar banho, ir trabalhar morrendo de sono...

- Ra, ra, ra, ra, ra, ra...

Renata vai dormir um pouco mais cedo (...) Medita sobre o que Naomi lhe disse, durante as preces. Pediu que não deixasse patrícia sozinha na tarefa que lhe foi confiada, pediu ainda que considerasse a abertura de um centro espírita kardecista na cidade, já que (...) muitos aderiram à doutrina...

- Mas que médium assumiria os serviços?

- Você.

- Eu não sou tão graduada só porque minha mediunidade é plena. Além do mais, eu viajo muito, chego a ficar mais de um mês trabalhando fora!

- Você tem meia razão, providenciaremos gente para dividir os serviços com você, mas está errada quanto à sua graduação. Você não desceu directo de uma colônia próxima. Planeje com cuidado, Richard não vai se negar a ajudar.

Adormece aos poucos, enquanto medita. Na manhã seguinte o ateu novamente não a decepciona, se prontifica a ajudar assim que ela souber o que realmente quer. Como profundo conhecedor da doutrina, aliás, ele dá sugestões para assegurar a credibilidade do centro, alertando que a moda de cantores famosos seguirem gurus picaretas (...) combinam de manter segredo, conversando só com pessoas próximas e confiáveis, como os amigos da banda. Ligam para Josephine, ela se prontifica como colaboradora eventual, quer levar a família inteira para a inauguração, mas reitera o alerta de Richard para que só conte às pessoas mais próximas (...) Ainda assim, em um só dia ela consegue mais de duzentos interessados em freqüentar o centro, Inclusive os policiais da divisão Street Warriors. Naomi lhe aparece com um olhar de “Viu como não foi tão difícil?” e ela procura um local para servir de sede. Os amigos se ofereceram para caso precise gravar discos espíritas, se é que existem...

- Eu agradeço muito! Existem, mas ainda são pouco divulgados.

- Eu pensei em algo aqui, uma letra, mas acho que seria meio debochado de minha parte...

- Você é debochada assumida, nós estamos acostumados. Diz o que é.

- Ok, não me bata por isso: Nós nos encontramos em uma esquina do mundo, trombamos, brigamos por pouco. Noutra esquina eu te vi chorando, eu ri, me senti vingada e virei as costas, mas logo tropecei e me vi sozinha, sucumbindo ao frio. Eu mereci, não cultivei sua piedade, não tive piedade de você, não tive piedade para receber de volta. Um dia, mancando, te vi a chorar em outra esquina, desta vez ofereci meu lenço, você se afastou, demorou a aceitar meu amparo. Que amparo pode oferecer uma pessoa manca, se nem a si pode amparar direito? Mas com o tempo você aceitou, curou meu coração da culpa, curou meu espírito da vergonha, tirou o rancor que mantinha meus ossos fraturados... Bobby... Pensei no Bobby, agora...

- Estou aqui, Rebby. Vem.

- Meu Bobby... Fiquei tão feliz quando ele e a Miko se acertaram!

Patrícia olha para a médium, que lhe diz em sigilo “Mãe e filho”.  Isso explicaria o amor exacerbado que ela tem pelo irmão, e o respeito imenso que ele tem pela caçula encrenqueira, que o imobiliza em um abraço como se (...) enfiá-lo no ventre. A letra será aproveitada. Renata explica, depois, que (...) ela preferiu não estragar a vida dele outra vez e escolheu ser sua irmã, devidamente equipada para protegê-lo como não conseguiu da última vez...

- Qual o meu papel nessa história?

- Vai saber no tempo oportuno. Posso adiantar que sem você, nada anda. Ah-ah! Nem que eu precise usar um ferro de passar roupa, você não vai franzir esse cenho de novo! Vou chamar o seu pai...

- Não precisa, eu ouvi tudo. Acreditar não vem ao caso, mas é certo que sem ela as coisas estariam muito piores; você não faz idéia do quanto. Vamos, mocinha, vamos falar bobagem e rir um pouco. Venha, Renata, vamos nós três para a piscina, de roupa mesmo.

Ele pula na água com Patrícia nos braços, Renata vai logo atrás, com mais calma. Aproveitam para um pouco de hidroginástica.

&

Não dá para se fazer segredo. Viram o Corvair Monza indo para o hospital (...) A notícia correu o país e a organização se pôs de prontidão, porque ainda há gente esperançosa de impedir esse parto. Josephine chega já com o parto em andamento. Sunshadow fica coalhada de gente, jornalistas e paparazzi de toda parte. Os fã-clubes do mundo inteiro trocam informações por telephone, apoiados pelo escritório central, mantendo as mídias locais informadas. Sabendo quem realmente é Patrícia Petty Gardner, alguns golpes de Estado têm uma pausa (...) Richard obviamente não acredita em milagres, mas o parto placentário dá uma aura especial ao nascimento do neto. Richard Petty Gardner do Prado Ribeiro chora ao mesmo tempo em que a agente Firehair sai da sala de parto para avisar...

- Is a boy named Richard.

O avô começa a rir para as paredes, gargalhar de felicidade como nunca na vida. Pela primeira vez precisa ser amparado pela esposa (...) Zigfrida explica as circunstâncias raras em que o menino nasceu, que pouparam bastante a ele e à mãe. Ela e o pai abobalhado aparecem logo em seguida, encaminhados com o pequerrucho para o apartamento (...) O facto de ter sido uma circunstância muito benéfica, não significa que não estejam ambos cansados, afinal a criança não sai espirrando da vagina para as mãos do médico (...) ela não é panda! Lá fora, enquanto isso, Matthew dá início a uma festividade que toma conta do mundo inteiro em pouco tempo. Cerca de um bilhão de pessoas fica sabendo do nascimento, quem não conhecia o Dead Train passa a saber o tipo de pessoa que é sua líder, o que ela faz pelas pessoas e passa a abençoar esse nascimento. O escritório central adia sua festa particular, vira um pandemônio, precisa chamar emergencialmente alguns candidatos que tem na lista (...) assim que todo mundo já babou pelo seu rebento, ela permite uma photographia oficial da jovem família. No mesmo dia a imagem ganha o mundo e já é de domínio público. Patrícia olha para a mãe e só diz “Now I’m mommy too, mommy”.

Em seu primeiro lar fora do ventre, Richard recebe visitas constantes de gente muito próxima aos pais, mas com calma, som moderado, reações civilizadas, tudo para o pequeno não se assustar em seu soninho pueril. O grande Richard, um homenzarrão para qualquer padrão (...) torna-se um gigante épico, próximo do neto. As gêmeas(...) observam com voracidade o sobrinho, recebendo paralelamente o carinho da irmã, ela lhes diz que terão a oportunidade de ajudar a cuidar dele. Enquanto isso, já em seu palacete, Josephine suspira pelo neto postiço. Quer acompanhar de perto o crescimento do menino, auxiliar em tudo o que lhe for possível a sua formação (...) Já é avó sem jamais ter posto alguém no mundo. Quando Anita chega (...) é puxada para o sofá, abraçada e enchida de beijos pela patroa, que a mima como se fosse ela o menino. Josephine fala sem parar, não se cansa de dizer o quanto aquela carinha de joelho é linda...

- Você tem que ver! É o joelhinho mais fofo do mundo!

- Ah, yo quiero ver ese hijo hermoso!

- Liga a televisão, já devem estar noticiando!

Não demora para mostrarem aquela criaturinha minúscula no colo de sua imensa mãe, com o pai ao lado. Anita se desmancha mesmo, ainda mais lembrando que está ficando para a titia. Já tem tudo o que tinha prometido à madresita, exceto a primeira promessa; (...) fez a vida na América, mas não lhe deu um neto. Manda presentes em todas as datas festivas, para todo mundo, mas não mandou o convite para seu casamento. Apresentou à mãe vários artistas famosos, inclusive sua patroa, mas não apresentou um pretendente. Começa a chorar...

- Anita, por que esse desespero?

- Señora, yo sempre quis tener my família! E fiz a besteira de prometer a my madre, que já está vieja! Acho que, a essa altura do campeonato, aceitaria qualquer coisa com um pênis.

- É com esse tipo de desespero que os cafajestes contam, chérie. Se qualquer um serve, se faz mesmo tanta questão, eu vou lhe arranjar um bom marido. Com a condição de ele não te levar daqui... Tobby, tenho uma missão para você.

- “Tobby, tenho uma missão para você”? Jose? É você mesma?

- Oui, mon ami, c’est moi. Preciso de um favor muito especial.

- Claro, já terminei de gravar a notícia do nascimento do pequeno Richard, estou indo.

Ela se vira para a empregada, leva-a para sua suíte e a despe. Não é uma modelo internacional, mas o sangue latino faz maravilhas pelas curvas de uma mulher. Procura umas peças de emergência (...) que servirão bem nas escassas medidas da mexicana, apenas 1,58m de altura. Uma cigarrete tamanho médio (...) vai até os tornozelos dela, em cima vai uma blusa de crochê, com uma fina blusinha de alças em baixo, tudo preto. Aqueles cabelos indígenas são presos em um coque e a maquiagem leve realça a sensualidade natural da baixinha. Tobby chega, sai do Mercury Cougar e vai ver o que sua amiga, diva e líder deseja. Ele as vê descendo e arregala os olhos...

- Bonsoir, Tobby. O que acha? Comprometa-se a casar e pode comer, o que me diz?

- Eu pensei que fosse uma emergência, algo desagradável, mas... Anita, maldita! Me escondendo esse material esses anos todos, debaixo daquele uniforme??? É claro que eu topo!

- Pensando melhor, não fica bem a esposa de Tobby McGinnes fritar ovo pra mim! Você já me assessorou muitas vezes e muito bem, está promovida a secretária particular. Tobby, me arranje duas empregadas, para fazerem o serviço dela. É pra hoje, senão não tem casamento!

Ele sai e volta em menos de três horas, com três domésticas que já estavam traumatizadas com artistas canastrões (...) Agora vão trabalhar para Sua Majestade a Diva Jose De Lane. O tempo é suficiente para ela chamar um buffet emergencial, um juiz de paz, artistas amigos e a equipe de filmagem; porque isso vai para o Boa Noite Mundo (...) poderão sair em lua de mel, assim que Anita concluir o treinamento das substitutas. Josephine liga para Sunshadow, para jogar mais lenha na fogueira...

- Nancy, eu sabia que te encontraria na casa da Patty. Quero que espalhe a fofoca do ano! Anita, minha secretária, acaba de se casar com o Tobby!

- Meu Deus... Onde? Quando? Como?

- Em minha casa, hoje, de uma forma que você nem imagina! Te conto depois, agora tenho que gerenciar a festinha improvisada, enquanto eles se atiram às núpcias... Queria ver a cara dele, quando descobrir que ela é virgem.

Ele fica pasmo, mas não confuso, sabe muito bem o que fazer...

- É simples. Eu sou seu marido, você é minha esposa. A gente tira a roupa, você abre as pernas e deixa o resto comigo.

- Só isso?

- Sim, vai ver como é simples! Eu te ajudo.

Enquanto ela descobre cores novas no universo, Nancy sobe à suíte da filha e conta para todo mundo. Arthur (...) que explique a piada, porque está entorpecido com o nascimento do filho e não entendeu coisa alguma. Conversam em voz bem baixa, à meia luz, para não incomodarem o pequeno, mas isso não reduz a estupefação dos três.

Na manhã seguinte, duas bombas no show business, o nascimento do herdeiro de Patrícia Petty e o casamento surpresa de um dos maiores apresentadores de televisão do mundo (...) com poucas horas de diferença. Em um gueto de uma metrópole qualquer, um grupinho vê as duas notícias no jornal, enquanto viaja sem passaporte...

- Patty Petty e Tobby McGinnes, no mesmo dia??!

- Cara, a gente tá abusando das drogas!

- É isso aí, sister! Brothers, vamos parar por hoje que já tá dando overdose, aí!

- Então pede pro jacaré azul aí guardar pra mais tarde.

- Eu?? Por que eu? A droga é de vocês! Vocês que a guardem!

Em Sunshadow, Richard conhece sua primeira alvorada, em seu adorável lar. É levado ao jardim onde os pais pretendem que brinque a maior parte do tempo (...) O menino começa a acordar e explorar o ambiente, sentindo odores e sons. O motor de um Corvette Stingray ao fundo se mescla à queda d’água (...) Um La Sale vermelho conversível 1938 passa com o rádio ligado, tocando “I’m no more child”. Arthur conversa com Patrícia, esperam o pequeno se acostumar ao ambiente cheio de sons e saem à calçada (...) carros e pessoas param para eles passarem. Os populares se aproximam e se desmancham com o pequeno, no percurso. O jardim da praça tem outras flores, outras ervas e outros cheiros, deixando o pequenino atento. Quando Richard vai ver a caixa de correios (...) vê filha, genro e neto chegando a passos lentos e cuidadosos. Ele cuida de abrir o portão e verificar se há algo no caminho deles até a porta da sala. Nancy vai levar o lanche do marido e é pega de surpresa. O cheiro da madeira nobre que forma a casa, também impressiona o cérebro do bebê. Como tudo lhe é apresentado sob os cuidados e calor dos pais, os odores acabam sendo agradáveis. Entram e as gêmeas largam suas palavras cruzadas para recepcionar o sobrinho. O cheiro delas lhe é familiar. Patrícia põe o filho sobre as coxas unidas, puxa as irmãs, uma de cada lado e começa a costumá-las ao seu rebento. Não se diz muita coisa, apenas fica a casa dos avós ao redor daquela criaturinha frágil e repleta de esperanças.

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