quinta-feira, 11 de outubro de 2018

Dead Train in the rain LVI

    Até a próxima, Europa. A estação 56 tem boas surpresas para quem já tinha perdido as esperanças. Enxuguem as lágrimas e embarquem, o trem vai partir.


Voam para Madri assim que saem da arena, prometendo voltar algum dia. Dormem um pouco no avião e, após a recepção calorosa de um dos países mais quentes da Europa, vão para o hotel. Desta vez não tem chocolates, mas uma mesa com pisto e gazpacho (...) Amanhã poderão comer uma porção pequena de algum prato extravagante, por hoje só a delícia nutritiva e comparativamente leve que têm à frente. Um pudim de pêra para arrematar e vão todos dormir.

Se as figuras de pai e filha impressionam de longe, treinando caratê elas intimidam. O facto de serem grandes não é desculpa para lentidão de reflexos, a criadagem do hotel inteiro pára para vê-los treinando pesado. Da sacada interna os outros vêem finalmente o que aqueles dois fazem tão cedo. Rebeca desce correndo (...) para ver de perto e tentar aprender um pouco, seguida de pronto pelos quatro. Nem querem pensar no perigo de uma Rebeca faixa preta. Eles terminam...

- Ora, ora, ora! Look, dad!

- Caíram da cama ou havia formiga no colchão?

- Mulher, mas você é boa de porrada! Eu quero aprender!

- E te transformar em uma arma de destruição em massa? Nem pensar! Vamos pra cima.

Com muita insistência e promessas de acompanhamento rente de Zigfrida, Rebeca consegue que ela pense no caso, mas é só isso, ela vai pensar se o risco será compensado pelos benefícios disciplinares de uma arte marcial...

- Além, do mais... Ok, assim que voltarmos para casa eu te ensino.

- Uhuuuuuuuu!!!

- Não se iluda mocinha, só farei isso porque sei que você vai procurar alguém que te ensine, e não quero que um incauto ponha em suas mãos bárbaras, uma habilidade cujos riscos potenciais desconhece. Você é perigosa. Mas assevero que caratê não é o que você está pensando, encrenqueira.

- Eu, encrenqueira? Imagina...

Vão se aprontar, que a agenda de hoje está lotada. O desjejum precederá uma coletiva demorada (...) Para compensar, o cardápio é mais flexível e farto, consumido com a alegria de uma etapa da turnê estar sendo encerrada. Depois terão Istambul, Ankara e Beirute, para então viajarem ao Japão.

O treinamento de pai e filha motiva a primeira pergunta. A repórter de uma revista feminina a questiona se uma arte marcial não afetaria a feminilidade. Patrícia se levanta, vai em seu vestidinho pink com uma faixa marfim no centro e lhe serve um café, depois volta ao seu lugar e rebate...

- Isso responde à sua pergunta?

- Si, señorita Petty, estoy convencida – diz sorrindo. Ah, su novio lo sabe?

- Si, lo sabe. Dejamos todo claro desde el princípio. Las japonesas son famosas por su feminidad.

É um alívio falar com americanos fluentes no espanhol, sem precisar ouvir “olé” a cada frase (...) sim, eles estão cansados. A parte que vai à mídia é a menor do trabalho. Se voltam para o amorzinho das balzaquianas com perguntas indiscretas, tentando a todo custo extrair algo comprometedor, mas ele se esquiva e não cita um nome sequer, nem que as novatas já se aproveitaram da proximidade privilegiada. É um cavalheiro, escorregadio, mas um cavalheiro.

Começam o passeio oficial pela Plaza Mayor. Andam um pouco a pé, entre edifícios antigos por ruas estreitas, chamando a atenção do público. Quando entram é como se as paredes de uma casa se afastassem repentinamente, é realmente enorme. Renata jura que quer um vestido com a estampa daquele piso (...) Se hoje sua imensidão impressiona, imaginem quando foi construída! Richard conversa discretamente com um homem cabisbaixo, se pudessem ouvir, os garotos ficariam assustados...

- E “ai” de seu presidente, se ele tentar alguma gracinha. Nós não estamos sós. Agora vá.

Lembrando o traçado de um campo de baseball, a Plaza Colón é de uma época em que um governante só dependia de verba para fazer algo, não tinha que dar muitas satisfações de seus gastos. As esculturas do monumento, em posição de rebatedor, narram o que os livros escolares ensinam (...) mentem um pouco, é claro. Enquanto passeiam atendem a população, sua fama e simpatia correm a cidade. Poderiam facilmente passar uma semana só para conhecer os monumentos de Madri, mas não têm esse tempo. Precisam conhecer a arena do show ainda hoje e ensaiar.

Enquanto os garotos ensaiam, Richard lê de cenho franzido uma notícia sobre separatistas do País Basco. Ele vê um bando de jovens revoltados e bem intencionados tentando transformar o mundo em um milhar de países pequenos, fracos e rivais, fáceis de serem dominados, como aconteceu com a África durante o Século XIX. Deborah e Zigfrida interrompem a conversa (...) ela conhece aquela expressão...

- Ritchie?

- Freud estava entristecido com a humanidade no começo do século, hoje ele choraria só de abrir um jornal.

- Oh, não! Separatistas! Nossa experiência com isso é muito ruim, Frida.

A sueca olha seu companheiro de organização, ele compreende e diz que a estupidez está fazendo com o mundo o que Hitler falhou em conseguir. Reitera o que disse...

- Estão colocando os tais “orgulhos nacionais” acima da sobrevivência das próprias nações. É como uma reação nuclear, após a primeira divisão atômica, outras acontecem até não sobrar nada do elemento original, sempre com efeitos danosos. Os próximos cinqüenta anos serão tristes para o mundo inteiro. Se ao menos a ONU fosse uma entidade de facto!

- Você carrega responsabilidades demais, gênio.

- Responsabilidades não me assustam, me assusta é a perspectiva que elas oferecem.

Deborah manda que ele se sente e começa a fazer massagem (...) tentando relaxar aquele corpanzil tenso. Mas ele só relaxa mesmo quando a filha aparece, se senta em seu colo e o abraça...

- Não pensem que estou desligada dele, por estar no palco. Deixa pra salvar o mundo depois, descansa um pouco.

Volta ao ensaio assim que consegue tirar a mente dele dos conflitos do velho mundo. Se as pessoas querem se matar, não é responsabilidade dele evitar um suicídio com rótulo de nobreza, ainda mais com governos insuflando tudo por debaixo do pano.

Ensaiam novamente na manhã seguinte e se despedem da Europa com um monte de portugueses presentes no show. Dali eles começam a entrar em culturas muito mais diferentes da sua em uma região que, segundo Richard, é um barril de pólvora prestes a explodir.

&

Istambul deixou de ser capital, mas não perdeu a majestade (...) O clima faz Renata se lembrar do Brasil. Richard adverte, especialmente os novatos, que a convivência pacífica entre religiões e etnias não significa que podem se dar a liberdade que tiveram até agora. Dependendo do lugar, é melhor que não entrem para não se arriscarem a ofender os presentes, que pode acontecer mesmo quando tiverem a melhor das intenções. Todos devidamente advertidos, podem descer do ônibus e ouvir de perto a gritaria dos fãs, à entrada do hotel (...) a hospitalidade turca é das melhores do mundo. São recebidos com o mesmo calor que fez todo mundo usar roupas bem confortáveis, mas evitando barras altas e decotes profundos.

Sim, existem biquínis na Turquia, e é na piscina que a banda faz o planejamento para o show. Queriam incluir um monte de pontos, mesquitas e lugares históricos no passeio, mas não vai dar. Haia Sophia e o Grande Bazar são os mais cogitados. Sempre sob orientação de Richard, põe os roupões atoalhados e voltam para as suítes, têm muito o que fazer; os garotos têm que estudar, os novatos têm que se inteirar dos roteiros, Deborah e Zigfrida têm satisfações a dar para Josephine, Matthew e os repórteres da revista precisam registrar tudo, e Richard toma conta de todo mundo.

A coletiva não tinha sido agendada, alguns periódicos elegem um representante para negociar de última hora. Patrícia até admite, mas avisa que não será fácil encaixar, em todo caso vai falar com os outros (...) Consegue espaços nos intervalos do ensaio, amanhã cedo, no local do show. Volta imediatamente porque estranhou uma coisa, os novatos...

- O que estão fazendo aqui? Vocês têm grana e tempo livre para andar.

- A gente conversou, depois da conversa do Ritchie, e preferiu ficar no passeio da banda mesmo.

- Ok, eu reconheço, exagerei. Me desculpem. Venham comigo, acompanho vocês. É meu antigo problema com religiões, só pode ser isso...

Matthew assume a responsabilidade pelos seis. Richard os leva de cara para o Grande Bazar, que poderia facilmente ser considerado um dos shopping centers mais antigos do mundo. Ele mesmo (...) compra algumas luminárias para casa e longas batas típicas para os garotos, que as usam no ensaio para contornar o calor. Os jornalistas locais chegam, são poucos, registram o ensaio e são registrados (...) A primeira pergunta chega a estranhar, um repórter questiona o motivo de terem aceitado tocar na Turquia...

- Não vejo motivos para não termos aceitado – diz Ronald.

- Vocês recusaram alguns.

- Porque exigiram absurdos – diz Patrícia – como ocultar o máximo possível os negros da banda, outros ainda queriam que mudássemos algumas letras que consideraram subversivas, enfim, coisas absolutamente fora de propósito.

Há tempo para várias perguntas, eles são bem objectivos (...) estão lá mais para compreender o fenômeno da banda, conseguem pistas disso vendo o esmero com que trabalham. Noutro intervalo, Enzo lhes diz que fazer menos do que o seu melhor, é pior do que não fazer nada. Rebeca fala da importância de ser grato e receptivo aos fãs...

- Então é por isso que você faz questão de estar no meio deles?

- Também por isso. Eu gosto do que eu faço, lidar com o público é parte disso. Quem não estiver disposto a lidar com o povo, é melhor escolher outra profissão.

O término do ensaio é também o da coletiva. Voltam para o hotel, já está na hora de mandarem notícias para casa, de onde Patrícia tem informações sobre os livros da avó...

- Não, eu não conheço hebraico... Ainda. O que a Jose disse?

- Havia uma torat completa enxertada na enciclopédia, nos outros livros havia obras de iniciação a mistérios, inclusive a tal kabbalah, de que nunca ouvi falar.

- A Rê me falou dessa kabbalah. Se a minha avó leu isso então ela escondia o jogo, tinha muito mais sabedoria do que a gente pensa!

- Ela leu. Desculpe a interrupção, mas me foi dito que ela leu sim.

- Mom, I have bombastic revelations about your mother! A Rê disse que ela leu tudo.

Assim que desliga, vai ver no diário se há alguma menção sobre ter lido aqueles livros. Até a hora de dormir, não encontra qualquer anotação a respeito.

&

O show começa no início da noite, com o vento do mediterrâneo atenuando o calor. Começam com “Dead Train”, para animar o público com o solo de baixo que inicia a canção. De lá o ônibus já os leva para Ankara (...) As notícias de Istambul atiçaram a sanha dos fãs, especialmente pela receptividade que a banda tem com eles, tanto é que Rebeca se joga assim que desce do ônibus, eles vão ao delírio, os paparazzi também.

Dormem como se não houvesse outra coisa a fazer na vida. A profissão diverte, mas cansa. Patrícia sonha que acorda e desce ao hall do hotel, onde parece haver uma festa temática da bélle époque. Se vê no espelho que não estava lá quando chegou, está em um volumoso vestido branco de época que não sabe como vestiu, nem como está agüentando aquela cinturinha de vespa (...) A luz amarelada das lâmpadas de época doura e aquece todo o ambiente, ela desce e é cumprimentada; natural, é uma pessoa pública. No meio de toda aquela gente, uma dama concentra as atenções, como se fosse a dona da festa. A reconhece, está muito rejuvenescida, mas a reconhece...

- Grandma? Vovó!!

Nunca pensou que fosse abraçá-la outra vez. Não sabe o que está acontecendo, só sabe que aquela é sua avó e chora abraçada a ela. Naomi a leva para uma varanda (...) sempre acariciando a neta. O calor cedeu lugar a um clima muito ameno, lá dentro um pianista toca uma versão em valsa de “Resignation”, embalando o diálogo que ela mal ouve, só compreende. Só ouve mesmo o piano e o timbre juvenil da avó, que a acalma como quando era criança, como quando é criança, agora, no colo amoroso e seguro de sua avó, onde a menina se acalma, feliz, e aos poucos adormece. Quando dorme, acorda. É hora de começar o dia.

Para Richard foi um sonho, apenas um sonho providenciado pelo subconsciente, para ajudar a filha a suportar a pressão que sofre desde que estreou. Para Zigfrida é mais material para estudar, acreditar ou não é irrelevante para ela. Para Nancy é motivo para chorar mais, tem saudades da mãe. Para Renata o buraco é mais embaixo, ela se surpreende mais a cada vez que Naomi entra na conversa (...) Para Patrícia, simplesmente o mundo ficou mais colorido, e é assim que ela comanda o Show da noite seguinte. Para o mecânico não importa se sua explicação é a verdadeira, importa que a filha está feliz (...) Voam para Beirute na manhã seguinte, deixando os turcos absolutamente encantados.

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