Até a próxima, Europa. A estação 56 tem boas surpresas para quem já tinha perdido as esperanças. Enxuguem as lágrimas e embarquem, o trem vai partir.
Voam para Madri assim que saem da arena,
prometendo voltar algum dia. Dormem um pouco no avião e, após a recepção
calorosa de um dos países mais quentes da Europa, vão para o hotel. Desta vez
não tem chocolates, mas uma mesa com pisto e gazpacho (...) Amanhã
poderão comer uma porção pequena de algum prato extravagante, por hoje só a
delícia nutritiva e comparativamente leve que têm à frente. Um pudim de pêra
para arrematar e vão todos dormir.
Se as figuras de pai e filha impressionam de
longe, treinando caratê elas intimidam. O facto de serem grandes não é desculpa
para lentidão de reflexos, a criadagem do hotel inteiro pára para vê-los
treinando pesado. Da sacada interna os outros vêem finalmente o que aqueles
dois fazem tão cedo. Rebeca desce correndo (...) para ver de perto e tentar aprender um
pouco, seguida de pronto pelos quatro. Nem querem pensar no perigo de uma
Rebeca faixa preta. Eles terminam...
- Ora, ora, ora! Look, dad!
- Caíram da cama ou havia formiga no colchão?
- Mulher, mas você é boa de porrada! Eu quero
aprender!
- E te transformar em uma arma de destruição
em massa? Nem pensar! Vamos pra cima.
Com muita insistência e promessas de
acompanhamento rente de Zigfrida, Rebeca consegue que ela pense no caso, mas é
só isso, ela vai pensar se o risco será compensado pelos benefícios
disciplinares de uma arte marcial...
- Além, do mais... Ok, assim que voltarmos
para casa eu te ensino.
- Uhuuuuuuuu!!!
- Não se iluda mocinha, só farei isso porque
sei que você vai procurar alguém que te ensine, e não quero que um incauto
ponha em suas mãos bárbaras, uma habilidade cujos riscos potenciais desconhece.
Você é perigosa. Mas assevero que caratê não é o que você está pensando,
encrenqueira.
- Eu, encrenqueira? Imagina...
Vão se aprontar, que a agenda de hoje está
lotada. O desjejum precederá uma coletiva demorada (...) Para compensar, o cardápio é mais flexível e farto, consumido com a alegria de
uma etapa da turnê estar sendo encerrada. Depois terão Istambul, Ankara e
Beirute, para então viajarem ao Japão.
O treinamento de pai e filha motiva a
primeira pergunta. A repórter de uma revista feminina a questiona se uma arte
marcial não afetaria a feminilidade. Patrícia se levanta, vai em seu vestidinho
pink com uma faixa marfim no centro e lhe serve um café, depois volta ao seu
lugar e rebate...
- Isso responde à sua pergunta?
- Si, señorita Petty, estoy convencida – diz
sorrindo. Ah, su novio lo sabe?
- Si, lo sabe. Dejamos todo claro desde el
princípio. Las japonesas son famosas por su feminidad.
É um alívio falar com americanos fluentes no
espanhol, sem precisar ouvir “olé” a cada frase (...) sim, eles estão cansados. A parte que vai à mídia
é a menor do trabalho. Se voltam para o amorzinho das balzaquianas com
perguntas indiscretas, tentando a todo custo extrair algo comprometedor, mas
ele se esquiva e não cita um nome sequer, nem que as novatas já se aproveitaram
da proximidade privilegiada. É um cavalheiro, escorregadio, mas um cavalheiro.
Começam o passeio oficial pela Plaza Mayor.
Andam um pouco a pé, entre edifícios antigos por ruas estreitas, chamando a
atenção do público. Quando entram é como se as paredes de uma casa se
afastassem repentinamente, é realmente enorme. Renata jura que quer um vestido
com a estampa daquele piso (...) Se hoje sua imensidão impressiona, imaginem quando foi construída! Richard
conversa discretamente com um homem cabisbaixo, se pudessem ouvir, os garotos
ficariam assustados...
- E “ai” de seu presidente, se ele tentar
alguma gracinha. Nós não estamos sós. Agora vá.
Lembrando o traçado de um campo de baseball,
a Plaza Colón é de uma época em que um governante só dependia de verba para
fazer algo, não tinha que dar muitas satisfações de seus gastos. As esculturas
do monumento, em posição de rebatedor, narram o que os livros escolares ensinam (...) mentem um pouco, é claro.
Enquanto passeiam atendem a população, sua fama e simpatia correm a cidade. Poderiam
facilmente passar uma semana só para conhecer os monumentos de Madri, mas não
têm esse tempo. Precisam conhecer a arena do show ainda hoje e ensaiar.
Enquanto os garotos ensaiam, Richard lê de
cenho franzido uma notícia sobre separatistas do País Basco. Ele vê um bando de
jovens revoltados e bem intencionados tentando transformar o mundo em um milhar
de países pequenos, fracos e rivais, fáceis de serem dominados, como aconteceu
com a África durante o Século XIX. Deborah e Zigfrida interrompem a conversa (...) ela conhece aquela expressão...
- Ritchie?
- Freud estava entristecido com a humanidade
no começo do século, hoje ele choraria só de abrir um jornal.
- Oh, não! Separatistas! Nossa experiência
com isso é muito ruim, Frida.
A sueca olha seu companheiro de organização,
ele compreende e diz que a estupidez está fazendo com o mundo o que Hitler
falhou em conseguir. Reitera o que disse...
- Estão colocando os tais “orgulhos
nacionais” acima da sobrevivência das próprias nações. É como uma reação
nuclear, após a primeira divisão atômica, outras acontecem até não sobrar nada
do elemento original, sempre com efeitos danosos. Os próximos cinqüenta anos
serão tristes para o mundo inteiro. Se ao menos a ONU fosse uma entidade de
facto!
- Você carrega responsabilidades demais,
gênio.
- Responsabilidades não me assustam, me
assusta é a perspectiva que elas oferecem.
Deborah manda que ele se sente e começa a
fazer massagem (...) tentando relaxar aquele
corpanzil tenso. Mas ele só relaxa mesmo quando a filha aparece, se senta em
seu colo e o abraça...
- Não pensem que estou desligada dele, por
estar no palco. Deixa pra salvar o mundo depois, descansa um pouco.
Volta ao ensaio assim que consegue tirar a
mente dele dos conflitos do velho mundo. Se as pessoas querem se matar, não é
responsabilidade dele evitar um suicídio com rótulo de nobreza, ainda mais com
governos insuflando tudo por debaixo do pano.
Ensaiam novamente na manhã seguinte e se
despedem da Europa com um monte de portugueses presentes no show. Dali eles
começam a entrar em culturas muito mais diferentes da sua em uma região que,
segundo Richard, é um barril de pólvora prestes a explodir.
&
Istambul deixou de ser capital, mas não
perdeu a majestade (...) O clima faz Renata se lembrar do Brasil.
Richard adverte, especialmente os novatos, que a convivência pacífica entre
religiões e etnias não significa que podem se dar a liberdade que tiveram até
agora. Dependendo do lugar, é melhor que não entrem para não se arriscarem a
ofender os presentes, que pode acontecer mesmo quando tiverem a melhor das
intenções. Todos devidamente advertidos, podem descer do ônibus e ouvir de
perto a gritaria dos fãs, à entrada do hotel (...) a hospitalidade turca é das melhores do mundo. São recebidos
com o mesmo calor que fez todo mundo usar roupas bem confortáveis, mas evitando
barras altas e decotes profundos.
Sim, existem biquínis na Turquia, e é na
piscina que a banda faz o planejamento para o show. Queriam incluir um monte de
pontos, mesquitas e lugares históricos no passeio, mas não vai dar. Haia Sophia
e o Grande Bazar são os mais cogitados. Sempre sob orientação de Richard, põe
os roupões atoalhados e voltam para as suítes, têm muito o que fazer; os
garotos têm que estudar, os novatos têm que se inteirar dos roteiros, Deborah e
Zigfrida têm satisfações a dar para Josephine, Matthew e os repórteres da
revista precisam registrar tudo, e Richard toma conta de todo mundo.
A coletiva não tinha sido agendada, alguns
periódicos elegem um representante para negociar de última hora. Patrícia até
admite, mas avisa que não será fácil encaixar, em todo caso vai falar com os
outros (...) Consegue espaços nos
intervalos do ensaio, amanhã cedo, no local do show. Volta imediatamente porque
estranhou uma coisa, os novatos...
- O que estão fazendo aqui? Vocês têm grana e
tempo livre para andar.
- A gente conversou, depois da conversa do Ritchie,
e preferiu ficar no passeio da banda mesmo.
- Ok, eu reconheço, exagerei. Me desculpem.
Venham comigo, acompanho vocês. É meu antigo problema com religiões, só pode
ser isso...
Matthew assume a responsabilidade pelos seis.
Richard os leva de cara para o Grande Bazar, que poderia facilmente ser
considerado um dos shopping centers mais antigos do mundo. Ele mesmo (...) compra algumas luminárias para casa e longas batas
típicas para os garotos, que as usam no ensaio para contornar o calor. Os
jornalistas locais chegam, são poucos, registram o ensaio e são registrados (...) A primeira
pergunta chega a estranhar, um repórter questiona o motivo de terem aceitado
tocar na Turquia...
- Não vejo motivos para não termos aceitado –
diz Ronald.
- Vocês recusaram alguns.
- Porque exigiram absurdos – diz Patrícia –
como ocultar o máximo possível os negros da banda, outros ainda queriam que
mudássemos algumas letras que consideraram subversivas, enfim, coisas
absolutamente fora de propósito.
Há tempo para várias perguntas, eles são bem
objectivos (...) estão lá mais para compreender o fenômeno da banda, conseguem pistas disso
vendo o esmero com que trabalham. Noutro intervalo, Enzo lhes diz que fazer
menos do que o seu melhor, é pior do que não fazer nada. Rebeca fala da
importância de ser grato e receptivo aos fãs...
- Então é por isso que você faz questão de
estar no meio deles?
- Também por isso. Eu gosto do que eu faço,
lidar com o público é parte disso. Quem não estiver disposto a lidar com o
povo, é melhor escolher outra profissão.
O término do ensaio é também o da coletiva.
Voltam para o hotel, já está na hora de mandarem notícias para casa, de onde
Patrícia tem informações sobre os livros da avó...
- Não, eu não conheço hebraico... Ainda. O
que a Jose disse?
- Havia uma torat completa enxertada na
enciclopédia, nos outros livros havia obras de iniciação a mistérios, inclusive
a tal kabbalah, de que nunca ouvi falar.
- A Rê me falou dessa kabbalah. Se a minha
avó leu isso então ela escondia o jogo, tinha muito mais sabedoria do que a
gente pensa!
- Ela leu. Desculpe a interrupção, mas me foi
dito que ela leu sim.
-
Mom, I have bombastic revelations about your mother! A Rê disse que ela leu tudo.
Assim que desliga, vai ver no diário se há
alguma menção sobre ter lido aqueles livros. Até a hora de dormir, não encontra
qualquer anotação a respeito.
&
O show começa no início da noite, com o vento
do mediterrâneo atenuando o calor. Começam com “Dead Train”, para animar o público
com o solo de baixo que inicia a canção. De lá o ônibus já os leva para Ankara (...) As
notícias de Istambul atiçaram a sanha dos fãs, especialmente pela receptividade
que a banda tem com eles, tanto é que Rebeca se joga assim que desce do ônibus,
eles vão ao delírio, os paparazzi também.
Dormem como se não houvesse outra coisa a
fazer na vida. A profissão diverte, mas cansa. Patrícia sonha que acorda e
desce ao hall do hotel, onde parece haver uma festa temática da bélle époque.
Se vê no espelho que não estava lá quando chegou, está em um volumoso vestido
branco de época que não sabe como vestiu, nem como está agüentando aquela
cinturinha de vespa (...) A luz
amarelada das lâmpadas de época doura e aquece todo o ambiente, ela desce e é
cumprimentada; natural, é uma pessoa pública. No meio de toda aquela gente, uma
dama concentra as atenções, como se fosse a dona da festa. A reconhece, está
muito rejuvenescida, mas a reconhece...
- Grandma? Vovó!!
Nunca pensou que fosse abraçá-la outra vez.
Não sabe o que está acontecendo, só sabe que aquela é sua avó e chora abraçada
a ela. Naomi a leva para uma varanda (...) sempre acariciando a neta. O calor cedeu lugar a um clima muito ameno, lá
dentro um pianista toca uma versão em valsa de “Resignation”, embalando o
diálogo que ela mal ouve, só compreende. Só ouve mesmo o piano e o timbre
juvenil da avó, que a acalma como quando era criança, como quando é criança,
agora, no colo amoroso e seguro de sua avó, onde a menina se acalma, feliz, e
aos poucos adormece. Quando dorme, acorda. É hora de começar o dia.
Para Richard foi um sonho, apenas um sonho
providenciado pelo subconsciente, para ajudar a filha a suportar a pressão que
sofre desde que estreou. Para Zigfrida é mais material para estudar, acreditar
ou não é irrelevante para ela. Para Nancy é motivo para chorar mais, tem
saudades da mãe. Para Renata o buraco é mais embaixo, ela se surpreende mais a
cada vez que Naomi entra na conversa (...) Para Patrícia, simplesmente o mundo ficou mais colorido, e é assim que
ela comanda o Show da noite seguinte. Para o mecânico não importa se sua
explicação é a verdadeira, importa que a filha está feliz (...) Voam para Beirute na manhã seguinte, deixando os turcos
absolutamente encantados.
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